BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – As medidas de ajuste adotadas pela equipe do ministro Fernando Haddad (Fazenda) vão ajudar a cumprir as regras fiscais nos próximos anos, mas são insuficientes para estabilizar a dívida pública, mostra estudo do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) antecipado à Folha de S.Paulo.
Essa é uma percepção que já tem permeado o debate entre economistas, mas agora foi traduzida em números por meio de um modelo de projeções fiscais de médio prazo recém-desenvolvido pelo CPFO (Centro de Política Fiscal e Orçamento Público), ligado à instituição.
A ideia dos autores é mostrar como as decisões de agora influenciam o comportamento das contas públicas nos próximos dez anos.
“Tem várias políticas que se decide adotar porque cabem no Orçamento hoje, mas não necessariamente elas vão caber no Orçamento amanhã”, afirma o economista Manoel Pires, coordenador do CPFO e professor da UnB (Universidade de Brasília). O mesmo raciocínio vale para as medidas de ajuste, que podem resolver problemas atuais sem surtir efeito estrutural.
Para analisar a trajetória das contas públicas brasileiras, Pires e outros cinco pesquisadores do FGV Ibre Fábio Goto, Bráulio Borges (colunista da Folha de S.Paulo), Pedro Avelino, Giosvaldo Teixeira Júnior e Isabela Duarte traçaram dois cenários para a próxima década.
O primeiro deles considera apenas medidas já aprovadas até o fim de agosto deste ano. O segundo inclui a MP (medida provisória) de aumento de impostos e as mudanças no IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física), ambas ainda em tramitação, e a nova regra para sentenças judiciais, aprovada em definitivo no início de setembro. O projeto de corte em benefícios fiscais, apresentado apenas em 31 de agosto, não entra nos cálculos.
No caso da MP, foi aplicado um redutor nas estimativas de arrecadação do governo com a medida que limita o uso de créditos para abater tributos.
Já no caso do Imposto de Renda, os especialistas consideraram também os efeitos indiretos das mudanças. A isenção de contribuintes que ganham até R$ 5.000 tende a impulsionar o consumo e a economia, ampliando as receitas tributárias em pelo menos R$ 24,8 bilhões ao ano a partir de 2026.
Os resultados mostram que o cenário sem as medidas exige esforço maior da atual administração e de futuros governos para garantir a sustentabilidade da dívida. Mas essa é uma conclusão até esperada.
O que chamou a atenção dos pesquisadores é que o cenário com as medidas recentes até melhora as condições de cumprir o limite de gastos do arcabouço fiscal e a meta de resultado primário, mas traz mudanças pouco significativas na trajetória de médio prazo um indício claro de que as ações adotadas não representam esforço fiscal estrutural.
A comparação foi feita por meio do chamado “fiscal gap”, uma medida do ajuste necessário para estabilizar a dívida pública. Foram feitas simulações com premissas variadas para taxa de juros, que determina o custo de financiamento do país, e crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), que influencia o denominador da relação dívida/PIB e também dita a tendência da arrecadação.
Para manter a dívida líquida estável em 65,8% do PIB, com juro real a 5% ao ano e crescimento de 2% ao ano, o governo precisaria de um resultado primário acumulado equivalente a 12,5% do PIB em dez anos (via recuperação gradual de superávits, ano a ano).
“Pensa assim: eu quero comprar uma casa. Qual é a poupança que tenho que fazer para pagar as prestações e não ter que ir ao banco fazer uma dívida? É mais ou menos essa conta”, explica Pires. “Outra forma de pensar o fiscal gap é quanto a dívida sobe com essa trajetória fiscal se não fizer nenhum esforço [adicional].”
Hoje, as estimativas do FGV Ibre indicam que o resultado real no período analisado deve ser negativo em 5,5% do PIB ou seja, o gap fiscal, ou o esforço requerido, é da ordem de 18% do PIB.
A inclusão das medidas pouco altera essa perspectiva: o resultado real deve ser um déficit de 4,5% do PIB. A necessidade de ajuste cai a 17% do PIB, uma mudança muito tímida para o horizonte de uma década.
Pires ressalta que ambos os resultados já incorporam uma importante fonte de arrecadação para a União nos próximos anos: as receitas de exploração de petróleo, que devem subir fortemente até 2030. “Se não houver esforço fiscal exógeno [adicional] do governo, a gente não tem uma perspectiva de recuperação dos resultados fiscais”, alerta.
A mudança nas premissas altera os números finais, mas não a conclusão. Para o mesmo patamar de dívida líquida e crescimento do PIB, mas um juro real maior (6% ao ano), a poupança necessária para estabilizar a dívida seria de 16,4% do PIB, muito acima do desempenho real esperado. O gap fiscal ficaria em 21,7% do PIB sem as medidas recentes e 20,8% do PIB com a inclusão delas na conta novamente uma mudança pequena.
Pires afirma que os resultados decorrem da forma como alguns impasses estão sendo resolvidos. Ele cita a PEC (proposta de emenda à Constituição) dos precatórios, que tira as despesas com sentenças judiciais do limite de gastos e incorpora o valor gradualmente na conta da meta fiscal.
Na prática, em 2027, o governo vai pagar R$ 107,5 bilhões em sentenças fora do limite, mas com aumento da dívida. Em 2035, esse valor deve encostar nos R$ 153 bilhões, nos cálculos do FGV Ibre.
“Ao fazer a conta, vemos que as medidas afastam um cenário de incerteza fiscal mais imediato”, diz o economista. Ele lembra que, sem a PEC, os precatórios precisariam ficar integralmente sob o limite, achatando as demais políticas e colocando em xeque a própria viabilidade do arcabouço.
“Mas o modelo mostra também que a questão de longo prazo permanece, porque esses ganhos fiscais não são suficientes para ter uma melhora mais consistente do resultado primário a longo prazo”, afirma.
“Estamos em uma situação preocupante, porque o governo apresentou medidas que geraram um mal-estar enorme, um estresse político, em alguns casos estresse econômico, mas isso tudo é para ter um déficit”, acrescenta.
Pires observa que as preocupações com o endividamento público saíram um pouco do foco do mundo político, tanto no Brasil quanto no exterior. No entanto, ele avalia que o quadro brasileiro deixa o país vulnerável ao que se costuma chamar de mau humor do mercado financeiro, que se traduz na cobrança de taxas mais elevadas para financiar o governo.
A intenção do CPFO é atualizar periodicamente o modelo de projeções de médio prazo, incorporando mudanças de cenário econômico e também novas medidas que estejam no radar. O intuito é fomentar o hábito de elaborar, discutir e planejar políticas de olho nos impactos de longo prazo.
“À medida que isso vai amadurecendo, pode-se pensar numa reforma da Lei de Responsabilidade Fiscal em que essas considerações comecem a entrar para pautar a decisão”, afirma.