BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – As críticas que produtores de soja e o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, passaram a direcionar à moratória da soja, acordo privado do setor que entrou na mira do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), não são unanimidade dentro do próprio Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária).
A reportagem teve acesso a uma nota técnica elaborada na semana passada pela Secretaria de Comércio e Relações Internacionais do Mapa, para orientar a pasta sobre como se deve lidar com o tema em suas relações externas.
No documento, o ministério alerta para os efeitos que a suspensão da moratória da soja pode ter sobre o produtor nacional devido aos riscos comerciais e diplomáticos que o caso pode gerar.
Mais do que isso, a Coordenação de Negociações Internacionais de Sustentabilidade do Mapa diz que a paralisação da iniciativa poderia implicar em outras sanções ao Brasil, como a Lei Antidesmatamento da União Europeia (EUDR), que entra em vigor no início de 2026.
“A eventual fragilização da moratória pode gerar riscos reputacionais e ampliar pressões externas, favorecendo a aplicação de medidas unilaterais como o EUDR e o Environmental Act do Reino Unido, com potenciais impactos comerciais”, afirma a nota técnica.
A moratória da soja foi criada em 2006, em resposta a pressões de consumidores, organizações não governamentais e investidores internacionais preocupados com a associação entre desmatamento e produção agrícola na amazônia. O acordo adota o dia de 22 de julho de 2008 como a data de corte, alinhada ao Código Florestal, proibindo a compra de soja cultivada em áreas do bioma desmatadas posteriormente a esse dia.
A avaliação de parte do ministério vai além dos riscos de sanções. Na nota técnica, a secretaria reconhece que, embora a moratória seja um acordo privado e voluntário, sua aplicação tem funcionado como um importante selo de credibilidade para a soja brasileira nos mercados internacionais.
“Do ponto de vista comercial, a moratória consolidou-se como um instrumento reconhecido de comprovação da sustentabilidade da produção de soja no Brasil, o que contribui para a aceitação em mercados externos. Sua suspensão ou fragilização pode ser interpretada como retrocesso, elevando a percepção de risco sobre o agronegócio nacional e levando importadores a considerar a adoção de exigências unilaterais adicionais de rastreabilidade e auditorias privadas”, afirma o documento.
O posicionamento técnico contrasta com declarações públicas que o próprio ministro Carlos Fávaro tem feito sobre a moratória da soja, ao lado de produtores e representações do setor.
“Não dá para admitir quando entes privados resolvem estabelecer regras que vão além da legislação. É um desrespeito à soberania brasileira, é um desrespeito aos parlamentares que legislaram. Se precisar mudar, que leve proposta ao Congresso Nacional”, disse Fávaro, na semana passada.
Para evitar perder mercados e sofrer boicotes, as empresas se comprometeram em 2006 a monitorar por satélite e por auditorias independentes toda a produção da Amazônia e a criar uma lista negra de fazendas consideradas irregulares. Assim, qualquer produtor enquadrado nessa lista ficava automaticamente impedido de vender sua safra para mais de 30 tradings que assinaram o pacto, entre elas gigantes como Cargill, Bunge, ADM, Amaggi e Louis Dreyfus.
O acordo envolve tradings, processadoras, associações setoriais e organizações da sociedade civil. Os critérios técnicos e regras sobre a moratória, como a verificação de sobreposição de produção de soja com áreas desmatadas, se dão por meio do Grupo Técnico da Soja, que tem participação de entidades governamentais brasileiras, como Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Ibama e o MMA (Ministério do Meio Ambiente), para fornecer dados oficiais de monitoramento ambiental.
Na nota técnica do Mapa, a pasta afirma que o Código Florestal é “a principal referência legal e regulatória para aferição da sustentabilidade da agricultura brasileira”, mas diz que a moratória é um instrumento complementar de governança, que reforça a imagem de sustentabilidade do agronegócio nacional.
No dia 18 de agosto, a superintendência-geral do Cade decidiu suspender os efeitos da moratória da soja, sob o argumento de que a autorregulação ambiental poderia ter levado a um cartel de compra. A tese é a de que, ao agir de forma conjunta e padronizada, as tradings estariam impondo regras próprias aos produtores, acima das exigências do Código Florestal, que é a lei brasileira.
Uma semana depois, porém, a Justiça Federal concedeu um mandado de segurança contra a suspensão do Cade e classificou a decisão como “desproporcional” e “prematura”. Na prática, portanto, a moratória segue ativa até que um inquérito administrativo que corre no Cade decida sobre uma suposta formação de cartel de compras no setor e de violações à legislação ambiental.
A reportagem questionou o Mapa sobre a sua nota técnica, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.
O presidente da comissão nacional de cereais, fibras e oleaginosas da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), André Dobashi, criticou duramente a moratória.
“O Cade está investigando a formação de cartel dentro de um acordo comercial privado, que causa uma concorrência desleal. Sustentabilidade e produção são temas que não têm nada a ver com isso. Se formos falar disso, vamos falar de código florestal, não de um acordo privado. A nossa avaliação é de que a moratória não deve existir”, diz Dobashi.
A Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais), que coordena a moratória e participou da criação do acordo em 2006, ao lado de organizações ambientais, afirmou que “reforça a legalidade da Moratória da Soja e seu papel na construção da credibilidade e sustentabilidade da soja brasileira no mercado internacional”.
“A Abiove seguirá acompanhando atentamente todos os desdobramentos relativos à moratória da soja, mantendo sua postura institucional de diálogo construtivo e respeito às normas vigentes”, declarou.
A coordenadora de florestas do Greenpeace Brasil, Cristiane Mazzetti, afirmou que o acordo é “reconhecido pela sua eficácia em conter o desmatamento na cadeia produtiva da soja na Amazônia” e que, conforme declarou o Ministério do Meio Ambiente, os resultados positivos da moratória são “inegáveis” e comprovam que é possível expandir a sojicultura no Brasil sem desmatamento e violações socioambientais.
“Graças aos critérios estipulados pela moratória da soja, este grão brasileiro hoje é reconhecido internacionalmente como um exemplo de produção sem desmatamento”, disse.