Acervo da Livraria Calil tem mais de 300 mil títulos (Acervo pessoal)

A Calil fará 80 anos. Esse marco do universo livreiro paulistano se moderniza sem perder a essência

  • Há quase 80 anos, a livraria localizada na Rua Barão de Itapetininga se dedica à venda de livros usados. O acervo físico ultrapassa 300 mil exemplares e a loja online oferece 60 mil títulos
  • Maristela Montesanti Calil Atallah, herdeira do espaço, é bibliotecária e passa o amor pelos livros aprendido com o pai a seu filho: a terceira geração a caminho
Por Rebecca Vettore 26 de Fevereiro, 2025 - 14:52
Atualizada às 19 de Março, 2025 - 12:30

[AGÊNCIA DC NEWS]. Quem resiste às adversidades, se fortalece, sobrevive e ajuda a contar a história. E este é o caso da Livraria Calil Antiquária. Fundada em 1945, o espaço resistiu às aventuras ou desventuras políticas e sociais de São Paulo e do Brasil. Seus fundadores observaram e contribuíram, por trás do balcão, para a história do Centro ser construída. Hoje à frente do negócio (e desse mesmo balcão) está Maristela Montesanti Calil Atallah, de 63 anos, que herdou do pai (Líbano Calil) o amor pelos livros e a confiança em seu produto. “Essa ideia de que o brasileiro não lê é mentira. Se fosse verdade, essa livraria não estaria aberta há quase 80 anos”, afirmou.

Com essas oito décadas de existência, o negócio da família está entre os mais antigos da cidade de São Paulo. Maristela conta que todo esse tempo exigiu que, mais recentemente, eles se adaptassem, mas sem mudar o propósito do negócio. Para isso, passou a vender também por meio do site da empresa. Além de atender compradores do Brasil, vende para diversos países, entre os quais ela destaca Estados Unidos, Alemanha, Hungria, Japão, Israel e Líbano. “Os livros exportados são edições em português, mas não só. Há também em árabe e várias línguas.” Entre os títulos nacionais mantidos na Calil é destaque um exemplar da primeira edição de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

É um lugar para iniciados, e de certa maneira escondido. Ela fica no 9º andar de um prédio comercial no número 88 da Rua Barão de Itapetininga. No térreo fica a Galeria Ita. Ao nível da rua, duas pequenas prateleiras de vidro num ângulo de 90 graus fazem as vezes de vitrine da Calil. Busca chamar a atenção de pessoas distraídas e apressadas que circulam pela Barão de Itapetininga. Lá ficam expostos uns 30 a 40 livros antigos. É uma espécie de convite para entrar no mundo mágico da livraria, a porta simbólica para o mundo das palavras – basta apenas avisar na portaria do prédio que deseja ir à livraria que o acesso ao elevador é liberado. Ao adentrar o antiquário, lá no alto, se veem as obras de valores inestimáveis. E não é de hoje que se diz isso. Já em 1958, o jornalista Affonso Schmidt (1890-1964) elogiava em um artigo no jornal O Parafuso a livraria. “O acervo da Calil poderia ser considerado um dos mais completos entre empresas privadas do Brasil”, afirmou. “E está acima da média de 80% dos acervos públicos.”

SEM CRISE – Com o passar dos anos, a vocação de minerar bons livros nunca deixou de ser a marca da Calil e é justamente por essa capacidade, diz Maristela, que eles nunca enfrentaram problemas de demanda. “A verdade é que nunca sentimos crises financeiras. Em nenhum momento. Sempre tivemos compradores.” Até na pandemia, quando outros ramos do varejo enfraqueceram, a procura por livros aumentou. “Foi um dos momentos em que mais vendemos.”

Na época da fundação, em 1945, era comum observar, entre os principais compradores dos livros raros e jurídicos, os colecionadores. Também era comum encontrar aspirantes a escritores, buscando inspiração em obras antigas, ou em primeiras versões de autores renomados. Presente em um bairro cercado por butiques e restaurantes, o local era movimentado. “Em uma época que não existia computador e televisão, o livro tinha um papel ainda mais determinante na formação cultural”, afirmou. “É claro que as pessoas continuam lendo bem, mas esse público mudou muito.” E hoje, com a era digital, há clientes de todo o canto do mundo.

Meu pai era um grande admirador de livros e gostava de ler desde pequeno. Falava português, inglês, francês e árabe e estava sempre com um livro na mão

Maristela Montesanti Calil Atallah

Hoje, Maristela diz que o público na loja física também é mais plural. Em gênero, em idade, em classe social. E a Calil segue pronta para atender qualquer demanda. “Mas os livros com procura constante são as literaturas antigas brasileiras.” Além do acervo, a livraria também oferece serviços complementares, sempre no universo da manutenção e perpetuação da cultura. “Também prestamos outros serviços. Encadernamos e restauramos livros”, disse Maristela. Entre os produtos mais antigos do acervo estão livros do ano 1500. O acervo físico ultrapassa os 300 mil exemplares e para venda online são 60 mil títulos.

Livraria oferece serviços de restauração de obras antigas
(Acervo pessoal)

INÍCIO – A história da Calil começou com o pai de Maristela, Líbano Calil Atallah, que morreu em 1993. O patriarca, de origem libanesa e nascido no interior paulista, na cidade de Catiguá, próxima a Catanduva, se tornou leitor assíduo muito cedo. Ainda criança, guardava o dinheiro para gastar com livros. Pensou em se tornar médico, mas uma lesão ocular fez com que deixasse essa vocação para trás.

Determinado a viver entre os livros, abriu seu primeiro sebo já na capital paulista, em 1944, na rua Venceslau Brás – um ano depois nasceria a Calil. Mudou-se para a avenida Rangel Pestana, na Zona Leste. Em 1968, percebendo a ebulição do Centro novo, onde havia dezenas de livrarias e sebos (e a circulação da população mais intelectualizada), ele instalou uma segunda loja, na galeria do térreo da Rua Barão de Itapetininga, 88. 

Em 1976, decidiu deixar a sede na avenida Rangel Pestana e transferiu todo o acervo para o lugar onde está atualmente, na Barão de Itapetininga. A loja do térreo foi fechada em 1983. “Meu pai era um grande admirador de livros e gostava de ler desde pequeno”, disse Maristela. “Falava português, inglês, francês e árabe e estava sempre com um livro na mão.”

A segunda geração no comando é a de Maristela. Ela nasceu na cidade de São Paulo e começou a trabalhar na livraria do pai aos 22 anos. Nunca mais parou. Para aprender mais sobre o mundo dos livros, decidiu fazer o curso de biblioteconomia. “Inspirada por um trabalho de faculdade, resolvemos criar o site da livraria em 1997”, disse a proprietária. “Eu fui chamada de louca pela minha família, porque nenhuma livraria de livros usados tinha site na época.” Mas a saída na vanguarda rendeu frutos.

Sr. Calil, fundador da livraria. Registro dos anos 1980
(Acervo pessoal)

O acervo construído por seu pai foi colocado à venda. A biblioteca pessoal do patriarca tem cerca de 15 mil exemplares raros, uma coleção comparável em termos de qualidade às bibliotecas de José Mindlin (hoje na Cidade Universitária) e da família Safra. Ainda que não haja um valor de compra dos itens, alguns livros podem custar milhares de reais. Muitos milhares. Algo em torno de R$ 38 mil cada um, em média.

Entre os livros que já estiveram ou estão ainda com a família – o tema é delicado porque navega entre o sigilo e a segurança – enumeram-se edições da obra de Machado de Assis, a primeira edição autografada por Guimarães Rosa de Grande Sertão Veredas e uma coleção completa de artistas modernistas como Oswald de Andrade, Pagu e Mário de Andrade. Fora obras do Padre Antônio Vieira, originais do século 18. Todo o acervo autenticado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Hoje, na livraria, Maristela coordena as vendas ao lado do filho Murilo, de 31 anos. “Estou ficando velha e um dia vou querer me aposentar. Por isso é importante que ele aprenda o negócio, que não é fácil”, disse Maristela. “Ele faz o trabalho de forma diferente. Faço mais devagar, analisando os livros. Ele, não.” Apesar dessa diferença, o amor pelos livros tem sido passado pelas gerações da família. A Calil não é apenas um negócio prestes a fazer 80 anos. É um marco paulistano. Um endereço singular, que só se encontra nas maiores metrópoles. Uma peça de resistência e resiliência. E que sabe se modernizar sem perder a essência.

LIVRARIA CALIL ANTIQUÁRIA
Rua Barão de Itapetininga, 88, 9º andar (conjunto 917).
Segunda a sexta-feira, das 10h às 17h.
Telefones: (11) 3255.0075 e (11) 3255.0716.
Site: www.livrariacalil.com.br.