[AGÊNCIA DC NEWS]. Era uma quinta-feira, dia 1º de junho de 1893, 16h45. Aportava no recém-inaugurado porto de Santos o barco Giulio Cesare, vindo de Verona, na Itália. O percurso demorou 31 dias para ser finalizado e, à época, isso era pouco. A embarcação a vapor era uma novidade tecnológica que se tornou mais acessível neste período, reduzindo pela metade o tempo do trajeto. A bordo da embarcação estavam Domenico, de 35 anos, Carmela (23) e M. Anna (31), todos da família Albanese, que deixaram a cidade de Reggio di Calabria, no sul da Itália, após a reunificação nacional, que culminou em grande crise econômica. Carregavam três malas e cinco sacos, segundo o descritivo encontrado na folha de entrada deles, digitalizada pelo Museu do Imigrante.
Corta para 2025. Era quinta-feira, 20 de fevereiro. Victor Albanese, de 34 anos, chega apressado à Padaria São Domingos, localizada na rua de mesmo nome, número 330, bairro da Bela Vista, o popular Bixiga, no centro de São Paulo. À sua espera estavam um fotógrafo, uma jornalista, seus familiares, e a expectativa por sua chegada tinha um motivo: pela primeira vez, ele seria apresentado como o comandante do empreendimento. Victor é tataraneto de Domenico, a quinta geração da família Albanese a comandar o negócio – e, neste momento, a ponte que precisa conectar o passado e o futuro da padaria. “A padaria carrega as raízes dos meus ancestrais, e nós tentamos manter muito forte as tradições. Isso é importante para nós”, disse Victor, formado em Gastronomia e Administração de Empresas.
Ao lado dele, dentro da São Domingos, outro protagonista dessa história: Silvio Albanese, pai de Victor e quarta geração da família a assumir o controle da padaria. Apaixonado por história e a memória viva do lugar, Sílvio, aos 64 anos, é casado com Leonice, e juntos formam hoje o cinturão na linha de frente da padaria. Além dos três, a família Albanese é composta por mais dois filhos do casal: Silvio Junior e Stephanie. “Todos os meus filhos cresceram aqui, assim como eu cresci. É impossível não desenvolver amor pelo negócio. Hoje, apenas o Victor e a Stephanie trabalham diretamente aqui, mas os três estão muito envolvidos emocionalmente com tudo”, disse Silvio.

Segundo ele, a escolha de Victor para o comando se deu de forma natural, até pelo interesse do filho em cursar áreas que agregaram ao serviço. “Ele está pronto para o negócio”, afirmou. Esse movimento começou em 2023, quando os filhos assumiram a mudança da comunicação visual da padaria. “Nesse processo, eu vou largando o bastão aos poucos.” Silvio reconhece a complexidade da troca de comando em empresas familiares. “A saída do pai é sempre um momento delicado. A sucessão é um desafio. Eu tento deixar que eles escolham algumas coisas, decidam pelo futuro, mas aconselho.”
Antes da mudança se completar (e ela ainda não tem data definida), Silvio diz que ainda irá contribuir bastante com o negócio. “Tenho desenhado o projeto do que eu quero para o futuro da padaria. Vou passar para eles e torcer para que estejam olhando para o mesmo lugar”, afirmou. Sobre as ideias para o futuro, o plano é modernizar e resgatar memórias. Sim, tudo ao mesmo tempo. “Podemos anexar à padaria um negócio com mais cara de restaurante, talvez lanches ou pratos rápidos”, disse.
A padaria carrega as raízes dos meus ancestrais, e nós tentamos manter muito forte as tradições. Isso é importante para nós

Também há estudos para ampliar as opções de massas prontas, com uma pequena rotisserie, além de incluir pizzas congeladas. “Eu queria ter mais produtos nossos aqui”, disse ele. Hoje, além dos tradicionais pães italianos, a padaria tem pastéis, pães recheados e diversos antepastos, todos de fabricação própria. “A nossa marca vende. Penso que é hora de peneirar aquilo que vende mais e fabricar mais coisas. Eu acho que é o caminho.”
Para dar sustentação ao negócio, o plano é usar a unidade da padaria que está sendo levantada no Ipiranga, na Zona Sul. Segundo Silvio, o plano é abrir a operação de lá focada na área industrial, para testagem de receitas e novos produtos. “Lá será a central de produção.” E a centenária unidade na rua São Domingos?

André Lessa
LASTRO FAMILIAR – Bom, a padaria, que completa 112 anos em 2025, também se conectará com o futuro. “Aqui eu quero restaurar, melhorar o ambiente e anexar um espaço”, disse Silvio. A ideia não é fazer nada muito grande, para não perder a tradição da empresa de ser um ambiente acolhedor. “Aqui será um espaço de visitação, de fomento ao turismo”, afirmou. Para isso, a ideia é erguer um centro de memórias, com fotos, diplomas e prêmios, além de maquinários antigos, cartas e documentos. “Isso daria uma dimensão da história que essas paredes exalam.”
As histórias a serem exaltadas por Silvio começam ainda em 1893, quando Domenico, ao lado da esposa, seu filho Felipe (que tinha menos de 3 anos), e sua cunhada, deram entrada na Hospedaria dos Imigrantes, uma espécie de pousada para receber os viajantes antes de partir para seus destinos em fazendas ou outras regiões. O local, onde hoje fica o Museu do Imigrante, na Mooca, Zona Leste, esteve aberto entre 1887 e 1925, período de alto fluxo de imigração. “Meu bisavô era extrovertido, sempre muito elegante”, afirmou Silvio.
Depois do período de adaptação à língua, costumes e cultura, Domenico tomou sua primeira decisão: não iria para as lavouras de café. Ficou por São Paulo, ali mesmo na região central. Ao lado de familiares que chegaram ao Brasil e abraçado pela comunidade italiana que já ocupava as ruas do Bixiga, o bisavô de Silvio percebeu a demanda que havia por massas na região, em especial o pão. Isso aconteceu porque, até a virada do século 20, a farinha no Brasil ainda era integral, de mandioca, muito grossa e difícil de manusear para fazer o pão. Com a chegada da corte portuguesa ao solo tupiniquim, a demanda pelo pão italiano, francês e outras variedades cresceu, mas o preço da farinha de trigo refinada era alto, inviabilizando a venda para as classes menos abastadas, incluindo os imigrantes.
O cenário muda quando Francesco Matarazzo, em 1898, consegue autorização para a construção de um moinho, que foi inaugurado em 1900 e melhorou a oferta do grão. Nessa toada, Domenico decidiu montar um forno. Depois, transformou o entorno do forno em uma espécie de cozinha industrial. Lá, ele fazia os pães, enchia as carroças e vendia para a comunidade. “O forno antecede a inauguração da padaria.”
Com o bom resultado das vendas de pão, Domenico, agora mais capitalizado, une a comunidade italiana em outro objetivo: construir um prédio para abrigar uma padaria. Em 1913, é oficialmente lançada a Padaria São Domingos. Nas décadas seguintes, o negócio continuou a crescer, com alguns percalços. Em 1924, durante o movimento conhecido como Tenentismo, um conflito entre o governo federal e os militares de São Paulo resultou em bombardeios na cidade. Neste período, segundo Silvio, tentaram invadir a padaria algumas vezes, mas Domenico conseguiu contornar. “Havia muita tensão. Mas meu bisavô falava ‘não precisa invadir’. Ele dava todo o pão que tinha. Quem antes ia invadir terminava fazendo fila para pegar o pão.” Isso teria acontecido algumas vezes durante o mês de julho, quando foi deflagrado o conflito.

DPH/SMC
No início da década de 1940, abriram um ponto industrial na rua Cardeal Arcoverde (Pinheiros, Zona Oeste), tamanha a demanda por pão italiano. Em 1945, no entanto, o patriarca da família, aos 86 anos, morreu. Em seu lugar, assumiu seu filho Felipe, avô de Silvio. “Ele era mais fechado, mas um trabalhador fora de série”, afirmou. À essa altura, o segundo andar da padaria era o lar da família Albanese, e alguns irmãos moravam no entorno, fortalecendo a comunidade. A avó de Silvio era muito presente na padaria, mas morreu jovem, aos 39 anos. Quando ficou doente, inclusive, aconteceu algo inusitado. “Antes de ir ao hospital, ela pediu para descer na padaria. Quando viu meu pai e minha mãe, fez questão de dizer que havia comprado ternos para todos os funcionários da São Domingos irem ao casamento deles”, afirma Silvio. Aos pais dele, que serão apresentados em breve na história, ela afirmou fazer questão do casamento na igreja e pediu que acelerassem o casório no civil para que ela pudesse participar. “Vocês vão me dar a maior felicidade do mundo. Eu estou indo embora, eu não volto mais”, disse. Mesmo abalado, o jovem casal cumpriu o combinado.
RADIAL LESTE – Os anos foram passando e a história da família Albanese se mistura com a evolução de São Paulo. Na década de 1960, já estava no comando da padaria Domingos Albanese, pai de Silvio. Ao lado dele, na linha de frente, uma mulher chamada Anita, a mesma que estava no triste episódio da morte da mãe de Domingos. “Minha mãe assumiu a função da minha avó na padaria com muita honra. Ela vivia por isso”, disse Silvio. E os desafios continuaram a aparecer.
Em 1966, o então prefeito de São Paulo, José Vicente Faria Lima, tirou da gaveta um projeto de melhoria da infraestrutura viária da cidade, desenvolvido em 1945 por um de seus antecessores, Francisco Prestes Maia. A ideia era criar uma via de acesso entre as zonas Leste e Oeste da cidade, melhorando o fluxo do trânsito. Em 1968, uma carta de desapropriação chegou ao edifício onde ficava a Padaria São Domingos.
Para a construção do acesso ao Elevado Presidente João Goulart, também conhecido como Minhocão, seria preciso derrubar todas as casas que ocupavam a rua São Domingos. A possibilidade foi um balde de água fria nos novos comandantes, mas Anita não esmoreceu. “Minha mãe foi fora de série. Ela brigou com todo mundo pra não derrubar. Ela brigou com todo mundo. O que mais tinha eram reportagens de jornal com foto dela muito brava”, disse Silvio. Neste período, além dos jornais, Anita falava com artistas, políticos e a comunidade, sempre no intuito de evitar a desapropriação. “Ela falou até com o general Costa e Silva [presidente de 1967 a 1969], porque ele vinha aqui. Ele deu um cartão pra minha mãe e falou: ‘Olha, pouca gente tem esse cartão. Mas o meu vou dar pra senhora, vou fazer tudo pra ajudar.’”
Com toda a repercussão, conseguiram desviar dois metros a Radial Leste. “E nós ficamos aqui. Foi um período complicado. Muitas máquinas e pouco acesso para os clientes”, disse Silvio. Para compensar a redução no movimento, Domingos e o irmão mais velho de Silvio, Felipe Neto, iam vender os pães na rua. Foi assim até 1970. “Mas minha mãe acabou fazendo amizades. Os engenheiros almoçaram aqui. Não havia hostilidade.” Quando a rua foi reaberta, outra surpresa – desta vez, positiva. Com a maior visibilidade da região e facilidade de acesso, o número de clientes triplicou. As outras casas da rua, no entanto, foram demolidas, e muitas delas ainda eram de membros da família Albanese. “Meu pai ficou muito chateado na época. Todos os irmãos dele moravam por aqui e tiveram que sair.”
FAMOSOS – Com mais movimento, não faltaram também clientes ilustres. Entre eles, a atriz Laura Cardoso, que era frequentemente vista nas instalações. “O Adoniran [Barbosa] sempre vinha comer o fusilli da minha mãe.” Outro episódio marcante para Sílvio se deu quando um cliente ligou pedindo os famosos pastéis da padaria. Ele disse que o presidente à época, José Sarney, estava em sua casa e queria experimentar. Sem acreditar na história, Silvio não deu muita bola. Até que ele recebeu uma ligação. “Então o telefone tocou de novo: ‘Olá, tudo bem? É o José Sarney que está falando. O Jorge aqui está falando dos pasteis’. Na hora eu disse que mandaria.” Por falar em presidentes, Dulce Figueiredo, esposa do general João Figueiredo, também era cliente.
E quando o famoso não ia até a padaria, Silvio garantia que ele conhecesse o sabor da São Domingos. Foi o que aconteceu em 1980, quando o papa João Paulo II desembarcou. Era a primeira visita de um papa ao Brasil. “Nós descobrimos em qual hotel ele estava e fizemos uma cesta para enviar a ele. Era nossa única oportunidade”, afirma. Oportunidade, inclusive, é algo que a família Albanese nunca perdeu.
São Domingos
Rua São Domingos, 330
Segunda a sexta das 08:00 às 19:00, aos sábados das 07:30 às 20:00 e aos domingos e feriados das 07:30 às 15:00
(11) 3104-7600
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Instagram : @padariasaodomingos

Domenico Albanese era conhecido na comunidade por ser muito elegante e extrovertido. Era querido pela comunidade italiana

Registro da fachada da Padaria São Domingos, nos anos 1970, após a obra da Radial Leste

Adoniran Barbosa era um cliente fiel da padaria. Ele sempre almoçava a massa feita por Anita Albanese

Giulio Cesare, o barco à vapor que trouxe os primeiros membros da família Albanese em 1893, atracou no Porto de Santos