Casa de Dona Yayá hoje é a sede do Centro de Preservação Cultural (CPC) (USP/Acervo)

As loucuras (ou não) de Dona Yayá. Uma mulher muito à frente do seu tempo numa São Paulo muito aquém

  • Sem família ou herdeiros, Sebastiana de Mello Freire ficou aprisionada em sua própria casa na rua Major Diogo por décadas
  • Casarão, na Bela Vista, onde Yayá viveu abriga atualmente o Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo
Por Paula Cristina 20 de Janeiro, 2025 - 15:52
Atualizada às 10 de Julho, 2025 - 15:14

[AGÊNCIA DC NEWS]. Uma jovem herdeira de um expoente produtor de café, empresário e político renomado. Perdeu os quatro irmãos que tinha. Os pais morreram em um intervalo de dois dias. Nunca se casou. Louca. Deve seguir confinada em casa, onde já se encontra há 13 meses, já que o trato com outros cidadãos pode agravar seus episódios de paranoia e histeria. Estes são trechos do laudo assinado por Hugo Victor de Oliveira Ribeiro, médico que fez o parecer de incapacidade de Sebastiana de Mello Freire, ou Dona Yayá, em 28 de janeiro de 1920, uma semana depois de ela completar 33 anos. Mas essas palavras nem de longe bastam para descrever a complexidade, profundidade e mistérios que envolvem a vida de uma mulher que viveu aprisionada em sua própria casa por mais de 40 anos. 

Nascida em Mogi das Cruzes (a 60 quilômetros da capital paulista) em 1887, Yayá era filha mais nova de Josefina Augusta de Almeida Mello e Manuel de Almeida Mello Freire, empresário, fazendeiro e senador da Primeira República. Quando a menina estava com 7 anos, a família deixou o interior rumo a São Paulo, onde havia expectativas de que os filhos fossem educados formalmente. Seu pai, inclusive, cursou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e entrou de vez na carreira política antes da virada do século. No entanto, em dezembro de 1900, às vésperas de a menina completar 14 anos, o pai e a mãe morreram – e com apenas dois dias de diferença. Jornais da época, como O Parafuso e o Correio da Tarde, deram informações atravessadas sobre o episódio. Citaram possíveis causas completamente diferentes: acidente de trânsito, envenenamento por arsênio e tuberculose. 

A essa altura, Yayá tinha apenas um irmão mais velho. Os outros três morreram ainda crianças, dois por doenças da primeira infância e uma sem ar após se engasgar com um milho de pipoca. Órfã, Yayá permaneceu apenas com Manuel de Almeida Mello Freire Júnior, agora com 17 anos, e seu único irmão, também conhecido como Nhonhô. Para lidar com as questões financeiras de uma imensa fortuna, a tutela dos dois ficou sob responsabilidade de Manuel Joaquim de Albuquerque Lins, outra figura política relevante e que poucos anos depois seria governador de São Paulo. Sob a gestão de Lins estavam dinheiro, ações, terrenos, propriedades rurais e imóveis urbanos alugados tanto em São Paulo como em Mogi das Cruzes.

Em 1906, outra tragédia: Nhonhô morreu durante viagem a Buenos Aires, na Argentina. Em um passeio de navio com amigos e políticos, ele disse que não se sentia bem, e foi para seu aposento. Depois de algumas horas, quando o procuraram no quarto, notaram a janela aberta e nenhum sinal do rapaz. O caso foi dado como suicídio e nunca investigado mais profundamente. Rodeada pela morte, Yayá chegou aos 18 anos sem nenhum familiar direto, apenas com a companhia de Eliza Grant, que chamava de madrinha – era uma amiga da família que morava na casa e ajudava os Mello desde a vinda de Mogi. 

Com o falecimento de Nhonhô, a figura de Albuquerque Lins, tutor legal de Yayá, recebeu ainda mais poder e importância no curso da vida da garota, definindo inclusive suas saídas de casa e o uso de seu dinheiro. Não demorou para que a população local começasse a especular sobre o papel do político na rotina da jovem herdeira e suas ambições com tal aproximação. Quando os rumores começaram a crescer, ele chegou a enviar uma carta ao jornal O Parafuso dizendo que tinha “as melhores intenções” de cuidar de Yayá como a família fazia. “Qualquer ilação é mera especulação e será enfaceada pela Justiça.”

Sempre tive as melhores intenções em cuidar de Yayá como sua amada família fazia. Qualquer ilação é mera especulação e será levada ao rigor da Justiça

Albuquerque Lins
Retrato de Yayá em 1916
(USP/Acervo)

VIDA ADULTA – Amante da fotografia, em um tempo que mulheres tinham pouco ou nenhum espaço no mercado de trabalho, Yayá fez registros históricos importantes, entre eles o da sua primeira casa em São Paulo, na rua 7 de Abril, local que anos depois foi a primeira sede da Biblioteca Municipal de São Paulo. Neste local ela vivia com duas afilhadas, além de parentes e agregados, e possuía uma vida recheada de luxos. Yayá era descrita como uma mulher independente, que dirigia, promovia missas e fazia romarias para ajudar os desafortunados.

A vida amorosa também tem nuances de mistério. O único interesse de Yayá teria sido Edu Chaves, filho de Elias Chaves, um rico fazendeiro do ramo do café e conhecido na elite paulista. O amor não teria sido correspondido. Também houve especulações sobre um casamento arranjado entre Yayá e um dos filhos de seu tutor, Albuquerque Lins. Desta vez, teria sido Yayá a recusar a proposta. Depois disso, os relatos sobre o comportamento de Yayá davam conta sobre uma mudança de postura da herdeira.

Ela viajou à Europa para passar seis meses, mas com a eclosão da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), precisou residir por lá por dois anos. Foi quando aprendeu francês e ampliou seus conhecimentos de piano. Para historiadores, esse período rendeu a Yayá a característica de uma mulher à frente de seu tempo. “Ela é símbolo de uma resistência feminina que era muito mais forte na Europa do que na América do Sul”, disse Maria Cecília França Lourenço, professora aposentada titular da USP e criadora do Grupo Museu/Patrimônio.

A data de retorno de Yayá ao Brasil coincide com os primeiros registros do suposto abalo psicológico da herdeira. Em 1919, com 32 anos, Yayá teria apresentado recorrentes sinais de desequilíbrio emocional que levaram à sua internação em uma instituição hospitalar. Laudos médicos atestaram sua condição de paciente psiquiátrica e a necessidade de cuidados especiais para tratamento. Foi internada uma segunda vez, em 1920, e considerada incapaz de administrar sua própria vida e seus bens, recebendo interdição judicial. Nunca conseguiu recuperar a gestão sobre a própria vida.

Na imprensa, o jornal O Parafuso começou uma série de reportagens que acusavam Lins de ter criado a narrativa da loucura de Yayá, depois de não ter conseguido concretizar a união com seu filho, como forma de ampliar sua riqueza e garantir ainda mais proeminência na política. As alegações, no entanto, nunca saíram do plano da teoria da conspiração. Com o aval de Lins, Yayá, em março de 1920, foi levada para a casa onde ficou até sua morte, em 1961, aos 74 anos. O casarão fica na rua Major Diogo, 353, no bairro da Bela Vista, o popular Bixiga.

Inicialmente pensada para ser um lugar de tranquilidade e conforto, com amplo jardim, muito sol e arejada, a casa aos poucos foi se tornando cada vez algo próximo de uma clausura. O banheiro, por exemplo, tinha uma espécie de olho mágico, e as torneiras e fechaduras podiam ser manipuladas do lado de fora. Em seu quarto, a cama era cimentada no chão e as luzes tinham telas. As amplas janelas deram lugar a basculantes fixos, que mal se moviam.

Com a saúde mental de Yayá se deteriorando rapidamente, laudos médicos da época citam a necessidade de uso de camisa de força para realização de procedimentos simples, como higiene pessoal, além de fortes sedativos durante o período da noite. Havia ainda registros de episódios de terror noturno, em que Yayá pedia que trouxessem de volta o filho dela. Não há, no entanto, qualquer citação ou registro sobre eventual gravidez da herdeira. Em 1961, Yayá morreu em consequência de cirurgia para remoção de um câncer no útero. Foi enterrada no Cemitério da Consolação, ao lado dos pais.

Em 1968, após processo judicial que concluiu que ela não tinha herdeiros, a casa foi destinada à Universidade de São Paulo. Em 1990, a USP fez as obras de recuperação e restauro do imóvel. Desde 2004, o local é a sede do Centro de Preservação Cultural da instituição. O imóvel foi tombado pelo estado de São Paulo (Condephaat) em 1998 e pelo município (Conpresp) em 2002. Em respeito à história de uma mulher que, parafraseando o filósofo Erasmo de Roterdã, viu que a loucura tem tantos atrativos que, “de todos os males, é ela o único que se estima como um bem”.