Vavá do Bixiga é o carisma por trás do Bar Guanabara (Acervo pessoal)

As muitas faces de Vavá do Bixiga. 'Homem de confiança' do Bar Guanabara, ele é também ator e cordelista 

  • Há mais de cinco décadas trabalhando na região central, o baiano testemunhou momentos históricos e conviveu com personalidades do mundo político e artístico
  • Nascido com "veia artística", como diz, Vavá não esqueceu das raízes. Dez anos atrás, montou um centro cultural na sua Uauá, no sertão da Bahia
Por Rebecca Vettore 28 de Fevereiro, 2025 - 15:18
Atualizada às 19 de Março, 2025 - 14:51

[AGÊNCIA DC NEWS]. Sou matuto do Nordeste/ Criado dentro da mata/ Caboclo cabra da peste/ Poeta cabeça chata/ Por ser poeta roceiro/ Eu sempre fui companheiro/ Da dor, da mágoa e do pranto/ Por isto, por minha vez/ Vou falar para vocês/ O que é que eu sou e o que canto.

Estes versos, escritos pelo cordelista cearense Patativa do Assaré, podem ser vistos como um dos retratos do brasileiro, em especial daquele que sai dos rincões do Nordeste para tentar uma vida mais próspera no Sudeste. Mas, aqui, vamos usá-las para descrever um nordestino específico: Edivalson Ferreira da Silva. Ou como é conhecido na região central de São Paulo, o Vavá do Bixiga. Aos 71 anos, é uma espécie de lenda viva dos bares e restaurantes do Centro. Já tem quase 55 anos trabalhando na região. Atualmente desempenha a função de “homem de confiança do restaurante Guanabara”, como ele mesmo se define. Mas Vavá também é jornalista, é ator, comunicador – e cordelista. 

Cenas para inspirar seus poemas não faltam. Foi no bar que encontrou todos os tipos de personalidades, que transitavam na noite paulistana. Artistas como os cantores Raul Seixas e Geraldo Vandré. Ou políticos. Ele conheceu, por exemplo, Mario Andreazza, ministro dos governos Costa e Silva e Médici, durante o regime militar. O atual vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, ex-governador. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira. O ex-presidente (e ex-governador e prefeito) Jânio Quadros. A lista inclui até o ex-governador Ademar de Barros Filho. “Jânio inventou o lanche de atum da casa [Guanabara] e o Alckmin vinha para tomar café preto sem açúcar.” O bar, que se apresenta como o mais antigo de São Paulo – foi aberto em 1910 – recebeu este nome em homenagem à capital federal da época, o Rio de Janeiro.

DE 14 PARA 18 Baiano de Uauá, nascido em 1953, filho do meio, Vavá cresceu com seis irmãs e cinco irmãos em uma fazenda. A rotina: trabalho e estudo. De manhã, ia para a escola, criada pelos próprios pais. À tarde, capinar na roça. Mas a cultura também apareceu na vida do menino sertanejo. Além das lições e da lavoura, sua infância foi marcada por outra descoberta: o talento para a arte. “Nasci com veia artística. Aos 5 anos aprendi a tocar cavaquinho”, disse Vavá. Sem influência ou aulas de ninguém, começou a tocar violão aos 8. Desde então, o instrumento virou seu companheiro de vida. Inspirado pelos sertanejos baianos, ao chegar a São Paulo ele também trabalharia como ator para contar suas histórias, sem largar as artes do cordel e da música.

Com a viola a tiracolo, mas sem perspectiva de trabalho, Vavá decidiu ir para São Paulo. A mudança rendeu um episódio curioso. O primeiro passo foi tirar a certidão de nascimento. Segundo ele, ao chegar ao cartório, ainda na Bahia, o escrivão perguntou sua idade, que ele confirmou: 14 anos. O problema é que um menor de idade não poderia viajar sozinho. A solução do escrivão foi alterar a data de nascimento. Com isso, em alguns dias, Vavá saiu do sertão da Bahia com 14 anos e chegou a São Paulo com 18.

Jânio inventou o lanche de atum da casa e o Alckmin vinha para tomar café preto sem açúcar

Edivalson Ferreira da Silva

Irmãos mais velhos, que já estavam por aqui, eram empregados da rede de restaurantes dos donos do Bar Guanabara e o ajudaram a conseguir o primeiro emprego. Assim, em 1º de abril de 1970, ele entrou na cozinha da cantina La Távola, onde já trabalhava, informalmente, desde 1968. O restaurante, na rua 13 de Maio, na Bela Vista (Bixiga), pertencia aos mesmos donos do Guanabara, que na época ficava na rua Boa Vista – o imóvel foi desapropriado para a construção da estação São Bento do metrô e o bar desceu para o 128 da São João, bem juntinho ao Vale do Anhangabaú. “Depois de alguns anos trabalhando como faz-tudo, fui pro Guanabara.” Era 1984. Vavá foi para lá, onde bate ponto até hoje. E com a mesma rotina. Às 5h30, abre o bar, recebe fornecedores e confere se os 236 itens vendidos no local estão em ordem. Até as 14h30, quando termina sua jornada, ele ainda faz atendimento no caixa e resolve problemas do dia a dia.

Vavá do Bixiga em seu reduto, no caixa do Bar Guanabara
(Acervo pessoal)

Enquanto se divide entre resolver os problemas do bar e gerenciar sua vida pessoal, Vavá também se preocupou com as origens. Conseguiu montar em 2014 um centro cultural em Uauá, na casa que seu pai deixou de herança. A ideia era levar cultura para crianças que, assim como ele, tiveram pouco ou nenhum acesso às artes. “Lá eu coloquei mais de 4 mil livros, a maior parte deles de cordel”, disse. Além da biblioteca recheada, o espaço tem quadra, palco para apresentações, salas para encontros e discussões. Fica em uma fazenda ampla, que antes de ser de seu pai, fora do avô de Vavá. “Tenho muito orgulho da Fazenda Curundundun, e da história que ela carrega.”  

“Como ator, fiz um filme chamado Urubuzão Humano [Noite do Urubuzão Humano, dirigido por Diomédio de Morais e lançado em 1996] e participei de peças de teatro e festivais.” Enquanto não estava trabalhando, ele fazia curso de teatro, tocava ou recitava poesias em bares do Centro. “As histórias de sofrimento dos meus familiares viraram material para minhas poesias.” Ao acompanhar a história do Brasil de dentro do Bar Guanabara, Vavá foi capaz de unir a efervescência cosmopolita de São Paulo às lembranças de sua infância na Bahia. “No cordel eu retrato o sertão.” Na visão de Vavá, ajudar a encontrar “soluções” para o mundo, ainda que atrás de um balcão ou escrevendo um cordel, coloca sentido em suas vivências.