Conhecida como Morena, Débora Checchia trabalha como guardadora de motos no Centro desde 2013 (André Lessa)

A mulher das motos – Morena é uma celebridade do Centro

  • Conhecida por ser guardadora de motos no Centro Histórico, Débora Checchia faz do negócio da família seu sustento, em uma jornada que já dura mais de 30 anos
  • Oficialmente, o espaço tem vagas para 38 veículos de duas rodas, mas ela chega a colocar 100 delas em dias de maior concorrência
Por Letícia Franco 24 de Fevereiro, 2025 - 17:00
Atualizada às 20 de Março, 2025 - 5:53

[AGÊNCIA DC NEWS]. “Até as dez para as cinco!” Uma voz feminina ecoa na rua Boa Vista, no Centro de São Paulo. Diante de um dos cenários mais tradicionais da cidade, a alguns passos do Pateo do Collegio e sobre a ladeira General Carneiro, a boa e velha entropia de ruídos se esvai. E ouço de novo: “Até as dez para as cinco!”. Vou em direção à fonte do som, e lá está Débora Checchia. Frequentadores locais, em especial os que transitam sobre duas rodas, a conhecem apenas como Morena. E o que parecia só mais uma excentricidade da região central ganha novos contornos. Naquele momento, rodeada de motoqueiros e suas máquinas, ela se torna uma autoridade equivalente ao poder público e tão importante quanto o privado. É respeitada pelos trabalhadores civis. E pelos guardas, policiais e agentes de trânsito.

Faz algo que só cabe em poucas cidades do planeta. Organiza o fluxo dos motociclistas que precisam fazer algum trabalho no Centro Histórico. Como há poucas vagas para estacionar na região, ela usa um bolsão na rua e encaixa as motos enquanto eles fazem suas entregas ou retiram suas encomendas. Tudo num reduto de pouco menos de 40 metros. E ela quem organiza – no sentido mais literal da palavra – o fluxo do bolsão de motos. E os números impressionam. Em uma das ruas mais movimentadas do Centro, entre a Praça da Sé e o Largo São Bento, ela desdiz a Lei de Newton que determina que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. Oficialmente, o espaço tem vagas para 38 veículos de duas rodas, mas ela chega a colocar 100 delas em dias de maior concorrência. Em poucos minutos, mais um motociclista chega e pergunta se há vagas, e a resposta vem acompanhada de um sorriso: “Até no meu coração”. 

É assim, entre uma brincadeira e outra, que Morena, 46 anos, busca facilitar a vida de motociclistas que circulam diariamente no Centro. Como guardadora de motos, terapeuta ou analista, como ela mesma diz. O espaço é um ponto de encontro de velhos conhecidos, e o clima amigável pode ser percebido por quem passa por ali. Mas só até às dez para as cinco, como ela reforça quase como um mantra. E, por falar em tempo, esta saga começou há 30 anos, na figura do pai de Morena. Segundo ela, o jeito carinhoso e descontraído de trabalhar é uma herança de Jorge Checchia, um dos precursores no trabalho como guardador de motos do Centro.

A princípio, ele atuava como motoboy em São Paulo, profissão marcada pelos riscos à segurança e na corrida contra o tempo. Entendendo as dificuldades do profissional da área, Jorge tomou a decisão que, nos núcleos endinheirados de São Paulo, é conhecida como insight business. Visualizou a demanda – e apresentou a solução. Ele iria começar a guardar as motos. O objetivo era sustentar a família, e de quebra atender a uma ampla carteira de potenciais clientes. Segundo a Companhia de Energia de Tráfego (CET), 1,3 milhão de motocicletas circulam na cidade. Quando Jorge começou, três décadas atrás, eram 157,5 mil.

Foi assim que o ofício passou para toda a família. Por dez anos, Jorge acordava cedo e saía sozinho de casa, na Freguesia do Ó, na Zona Norte, para atravessar a cidade e organizar o fluxo de motos no Centro, à época no bolsão do Largo São Bento. Depois de um tempo, Humberto, o filho mais velho, passou a acompanhá-lo. Enquanto o pai cuidava das motos no Largo, ele era responsável pelo bolsão na rua Boa Vista, onde hoje Morena trabalha. Foi assim durante mais 20 anos. Até o filho mais novo de Jorge, Jefferson, trabalhou um tempo por ali. 

É um trabalho gratificante. Sou muito feliz em seguir os passos do meu pai e poder ajudar tantos motoboys todos os dias

Débora Checchia

JORNADA – Morena tentou desviar dessa rota de trabalho, mas o pai queria que a família continuasse no caminho das motos. Ela conta que tinha medo. Suas experiências profissionais eram em lojas, escritórios e telemarketing. Resistiu até meados de 2013, mas no mesmo ano Jorge começou a adoecer e ela decidiu acatar a vontade do pai. Trabalharam juntos até 2019, quando seu pai precisou parar de trabalhar. Porém, nesse período juntos, ela aprendeu a ser muito mais que guardadora de motos. Aprendeu a escutar, falar, brincar, agradecer – como ele.

A leveza para lidar com o público também virou marca. Inclusive nos momentos mais difíceis. Por algum tempo, ela precisou se dividir entre a Boa Vista e os cuidados com o pai, que enfrentava problemas de saúde. Seu Jorge morreu em 2022. Nesse período, outro obstáculo: a pandemia de covid-19 mudou a rotina das pessoas, mas não a dela. Todos os dias, ela aguardava seus clientes e, segundo Morena, não faltou trabalho. “Até as dez para as cinco!”