Cairê Aoas pegou o legado do pai para transformar seu negócio (Divulgação)

Cairê Aoas, da Fábrica de Bares: “Não há revitalização sem olhar para o comércio”

  • “São estabelecimentos vistos muitas vezes como marginalizados, quando na verdade movem a economia criativa, geram empregos e criam identidade cultural”
  • “Nossa estratégia é sempre entender o que o lugar representa para seus frequentadores e buscar um equilíbrio entre inovação e respeito à história”
Por Letícia Franco 24 de Fevereiro, 2025 - 17:38
Atualizada às 24 de Março, 2025 - 17:34

[AGÊNCIA DC NEWS]. O empresário Cairê Aoas, de 40 anos, é frequentador do Centro de São Paulo desde criança, quando visitava o avô Mamede Aoas, que tinha uma loja de conserto de canetas e relógios próximo à Bolsa de Valores, na rua Quinze de Novembro. Essas visitas marcaram sua infância e estabeleceram um vínculo afetivo com o Centro, que se tornaria parte importante de sua trajetória. Mais tarde, ele acompanharia de perto o trabalho do pai, Álvaro Aoas, que montou, ainda jovem, uma pastelaria e, posteriormente, gerenciou outros negócios como bares e lanchonetes na região. “Meu pai foi o meu exemplo de empreendedorismo e dedicação. Ele mostrou que o Centro sempre foi um território de oportunidades, mesmo em tempos difíceis”, destaca Cairê. Esse histórico familiar de empreendedores e comerciantes consolidou sua conexão com o coração da cidade.

Esse vínculo se fortaleceu aos 14 anos, quando começou a trabalhar com o pai no extinto Café São Paulo Antigo, na Santa Cecília. Ali, ele aprendeu desde cedo sobre os desafios e as recompensas do setor de bares e restaurantes. Entre servir mesas, organizar o caixa e preparar sucos, Cairê entendeu o papel crucial da hospitalidade e da qualidade na experiência dos clientes. “A lanchonete do meu pai era mais do que um negócio: era um ponto de encontro para a comunidade local. Essa vivência me mostrou o quanto um espaço bem gerido pode ser transformador para a região”, afirma. Essa visão foi decisiva anos mais tarde, quando a reabertura em 2001, do icônico Bar Brahma (fundado em 1948), na esquina das avenidas Ipiranga e São João, reacendeu a paixão da família por revitalizar espaços históricos. O bar havia sido fechado anos antes, em 1998. Foi aí que a Fábrica de Bares (leia-se Bar Brahma, Bar Léo, Riviera e outros) começou a sair do papel. 

Fundada por Cairê, em 2014, a empresa se especializou na compra e gestão de clássicos da boemia paulistana, contribuindo para a restauração dos espaços. Atualmente, administra 13 estabelecimentos, a maioria deles no Centro. O projeto mais recente foi a reabertura do Café Girondino, em novembro do último ano, um dos bares mais tradicionais da cidade, fundado em 1875. Essa é o contribuição da Fábrica de Bares para a revitalização do Centro, segundo ele. “Não dá para falar de revitalização do Centro sem falar dos bares e restaurantes, que ainda são vistos muitas vezes como marginalizados, quando na verdade movem a economia criativa.” Na entrevista a seguir, ele fala sobre a trajetória da empresa, a importância do setor para a região e de políticas públicas que incentivem o empreendedorismo.

AGÊNCIA DC NEWS – Como se deu sua relação com o Centro de São Paulo? 
Cairê Aoas Eu sou do estado de São Paulo, nascido no Guarujá, mas nunca morei lá. Sempre morei aqui [na capital]. Minha relação com o Centro é de família, de gerações. A minha família é da Zona Norte, mas com uma conexão muito forte com o Centro, porque meu avô era comerciante na região, tinha uma pequena “barraca” perto da Bolsa de Valores, onde consertava canetas e relógios.

AGÊNCIA DC NEWS – É daí que vem a paixão pelo empreendedorismo? 
Cairê Aoas Sim. Isso passou do meu avô para o meu pai, Álvaro Aoas. Ele também foi comerciante no Centro, abriu sua primeira pastelaria aos 18 anos. Comecei a trabalhar com ele muito jovem, aos 14 anos, no extinto Café São Paulo Antigo, na região do Largo Santa Cecília. Ali, fiz de tudo um pouco. Ajudei no caixa, na cozinha. Essa conexão com o Centro sempre esteve presente na minha vida.

As pessoas cada vez mais buscam arquitetura e história dos lugares. É o momento daqueles locais com identidade

Cairê Aoas

AGÊNCIA DC NEWS E como surgiu a Fábrica de Bares?
Cairê Aoas O pontapé inicial foi a reabertura do Bar Brahma, em 2001. Fundado em 1948, o bar sempre foi um símbolo da história da cidade e encerrou as atividades na década de 1990.

AGÊNCIA DC NEWS Como foi esse processo?
Cairê Aoas Resgatar a marca foi um marco, como um divisor de águas na trajetória de empreendimento da família. Quando meu pai decidiu reabri-lo em 2001, o objetivo era revitalizar o espaço, mantendo sua essência histórica, mas modernizando a experiência para atrair novos públicos.

AGÊNCIA DC NEWS Como isso se transformou na empresa atual?
Cairê Aoas A partir desse processo, observamos a necessidade de profissionalizar a gestão de bares e restaurantes, incluindo a demanda de resgate de estabelecimentos históricos. Em 2014, criamos a Fábrica de Bares. Foi algo natural. O sucesso na reabertura do Bar Brahma mostrou que havia um mercado para isso e nos incentivou a assumir outros projetos. Porém, não é um caminho fácil.

AGÊNCIA DC NEWS Quais são as principais dificuldades?
Cairê Aoas Ainda não há reconhecimento o suficiente. Bares e restaurantes são vistos muitas vezes como marginalizados, quando na verdade movem a economia criativa, geram empregos e criam identidade cultural. Não dá para falar de revitalização do Centro sem falar dos bares e restaurantes. Precisamos mudar essa percepção e valorizar mais o setor, que é, inclusive, peça importante para fomentar o turismo.

AGÊNCIA DC NEWS E a legislação? É um empecilho, ou ajuda?
Cairê Aoas A legislação tributária e fiscal no Brasil é extremamente desafiadora, especialmente para o nosso setor. Recentemente, o governo estadual assinou um decreto que elevará de 3,2% para 12% o ICMS sobre o setor de alimentação. Isso inviabiliza muitos negócios e dificulta o crescimento do setor. A falta de políticas públicas consistentes também contribui para essa realidade desafiadora.

AGÊNCIA DC NEWS Como a empresa atua no resgate de estabelecimentos históricos?
Cairê Aoas Atualmente, temos cerca de 500 funcionários que trabalham em nossas 13 operações. São elas: Bar Brahma, Bar Brahma Granja Viana, Riviera, Orfeu, Bar Léo, Jacaré, Café Girondino, Café Girondino CCBB, Notiê, Abaru, Blue Note, Love Cabaret e Bar dos Arcos. Em muitos casos atuamos como sócios, e também temos parcerias. Além disso, criamos também o FabLab Hub, um hub de inovação para bares e restaurantes no Brasil. 

Love Cabaré, no centro de São Paulo, é uma das casas administrada pela Fábrica de Bares
(Divulgação)

AGÊNCIA DC NEWS Quais são as principais estratégias para o resgate de bares e restaurantes?
Cairê Aoas Nossa estratégia é sempre entender o que o lugar representa para seus frequentadores e buscar um equilíbrio entre inovação e respeito à história. Mas também varia de acordo com cada caso.

AGÊNCIA DC NEWS Pode dar exemplos?
Cairê Aoas No Bar Brahma, focamos em preservar sua essência, respeitando a memória cultural e atualizando a experiência para atrair novos públicos. No Girondino, que reabrimos em novembro, buscamos manter a tradição e melhorar a qualidade do cardápio e do serviço, isso envolveu pesquisa para entender o que tornava a marca icônica, enquanto no Love Cabaret, antigo Love Story, criamos um conceito totalmente novo.

AGÊNCIA DC NEWS No que consiste esse conceito novo?
Cairê Aoas Compramos a massa falida em leilão judicial, mantivemos alguns elementos do imaginário do antigo espaço, mas desenvolvemos uma nova identidade e proposta. É um exemplo de ressignificação, onde buscamos romper com o passado para criar algo completamente novo. Cada caso é único. 

AGÊNCIA DC NEWS Há empreendimentos fora do escopo de revitalização?
Cairê Aoas Sim. Neste caso apostamos em experiências, tendências. As pessoas buscam, cada vez mais, por experiências. Com isso em mente, entendemos que a arquitetura de determinado lugar, localização, história, vista é muito importante. É momento daqueles locais com identidade.

AGÊNCIA DC NEWS Quais são os bares de vocês dentro desse escopo?
Cairê Aoas Nesse sentido, temos o Espaço Priceless no Shopping Light, que contempla os restaurantes Notiê e Abaru, o qual nos associamos em 2024. É um projeto que nos orgulha muito, está no rooftop do Shopping Light, um prédio centenário e tombado, com uma vista incrível para o Vale do Anhangabaú e o Centro Histórico de São Paulo. O espaço combina alta gastronomia com experiências únicas, como expedições conduzidas pelo chef Onildo Rocha, que pesquisa ingredientes e culturas brasileiras para criar cardápios sazonais.

AGÊNCIA DC NEWS Há outros?
Cairê Aoas – Outro exemplo é o Bar dos Arcos, que está no subsolo do Theatro Municipal, um dos espaços culturais mais importantes de São Paulo. O projeto foi desenhado para respeitar completamente a arquitetura original, com mínima intervenção. Exemplo disso é a estrutura do bar, que se limita a elementos como mesas iluminadas, que valorizam os arcos do teatro. O conceito nasceu de uma concorrência pública, onde conhecemos nosso sócio, Facundo Guerra, que teve a visão inicial para o espaço. Desde sua abertura, em dezembro de 2018, o bar tem sido um ponto de referência cultural e gastronômica no Centro. 

AGÊNCIA DC NEWS Como é o trabalho em prédios tombados? 
Cairê Aoas A arquitetura e o tombamento são parte da história dos lugares. Por exemplo, o Bar dos Arcos, localizado no subsolo do Theatro Municipal, foi projetado para ter o mínimo de intervenção, valorizando os arcos originais. Esse cuidado também existe em outros projetos, como o Priceless, no Shopping Light. O trabalho nesses espaços exige adaptações rigorosas para preservar o patrimônio. E é esse o diferencial. 

AGÊNCIA DC NEWS Como você enxerga o papel dos bares e restaurantes na revitalização do Centro?
Cairê Aoas
Essenciais. Esses espaços atraem pessoas, geram empregos e movimentam a economia local. É fundamental para ajudar na transformação de uma região. No Bar Brahma, por exemplo, recebemos 22 mil pessoas por mês e empregamos quase 100. Muitos desses colaboradores passam a morar no Centro, criando uma economia real, com consumo local e uma maior sensação de segurança. 

Inaugurado em 1949 o Bar Riviera fica entre a av. Paulista e a Consolação
(Divulgação)

AGÊNCIA DC NEWS – Há outras cidades que podem ser referências para a transformação do Centro?
Cairê Aoas Sim, por exemplo, Las Ramblas, em Barcelona, tem aquela rua que é ativa e viva pelo centro. Puerto Madero, em Buenos Aires, era um lugar abandonado, assim como muitas áreas do nosso Centro, foi transformado através de um projeto estratégico ancorado na economia criativa, bares e restaurantes. Tudo isso contribui para a economia, traz imobiliário, moradores, turistas, etc. 

AGÊNCIA DC NEWS As oportunidades de negócios cresceram depois da pandemia?
Cairê Aoas A pandemia foi muito difícil, especialmente para bares, onde o delivery é praticamente inviável. Mas também gerou oportunidades, como o FabLab Hub. Além disso, o consumo eufórico pós-pandemia em 2022 e 2023 ajudou na retomada, embora com desafios relacionados aos passivos [dívidas] acumulados.

AGÊNCIA DC NEWS Quando o jogo virou?
Cairê Aoas Em 2024, percebemos a acomodação dessa euforia, mas mesmo assim muitas oportunidades vieram disso. O próprio Girondino veio de uma oportunidade pós-pandemia. Porém nem todos os projetos funcionam. O Bar Filial é um exemplo. Apesar de nossos esforços, ele não atingiu as expectativas. Aprendemos que é fundamental analisar profundamente o contexto antes de assumir uma operação, desde o público até a localização e os custos operacionais.

AGÊNCIA DC NEWS Há estabelecimentos que procuram a Fábrica de Bares para revitalizá-los?
Cairê Aoas Sim, cada vez mais. Nossa história no Centro, com projetos como o Bar Brahma e o Girondino, nos tornou uma referência em resgatar marcas históricas. Muitas vezes somos procurados para assumir operações que já foram encerradas ou que precisam de revitalização. O processo varia, mas geralmente fazemos uma análise profunda do espaço, da história e do público para criar um conceito que respeite o passado, mas traga modernidade e qualidade.

AGÊNCIA DC NEWS Como você vê o desenvolvimento do setor de bares e restaurantes no Centro? 
Cairê Aoas O Centro tem bares e restaurantes muito importantes e isso tem crescido. A Casa do Porco é um exemplo de como um restaurante pode se tornar um ícone cultural e gastronômico.

AGÊNCIA DC NEWS Quem frequenta o Centro hoje?
Cairê Aoas Temos públicos muito variados, dependendo do bar. A região tem se tornado um destino importante, com potencial para turismo gastronômico, cultural e de eventos.

AGÊNCIA DC NEWS O que ainda falta para atrair a população para esse espaço?
Cairê Aoas Eu acredito que o Centro está se transformando, tem muita coisa legal acontecendo como a abertura ou reabertura de novos restaurantes, retrofit residencial e mais hoteis. O mercado imobiliário, para mim, é um termômetro muito importante, porque quando as construtoras investem em um empreendimento imobiliário isso significa que tem demanda. Se tem demanda, as pessoas estão vindo. Mas ainda falta uma estratégia mais clara, uma visão de longo prazo de construção, que vai além do urbanismo.

AGÊNCIA DC NEWS No que carece a estratégia atual?
Cairê Aoas A gente tem que ter segurança e a rua tem que estar limpa e iluminada. É o básico. As questões de segurança tem melhorado muito, porém não temos uma política pública clara, não há um plano completo para isso. 

AGÊNCIA DC NEWS Quais os planos da Fábrica de Bares para 2025?
Cairê Aoas Temos projetos muito legais em desenvolvimento, especialmente para o Centro de São Paulo. O que posso adiantar é que um deles é um projeto transformador para o eixo próximo à avenida Ipiranga, no qual estamos investindo muito tempo e buscando parceiros. Talvez ele não fique pronto no ano que vem, mas queremos lançá-lo e apresentá-lo em breve.