Miguel Romano sempre foi um apaixonado pelo Centro, que frequentava desde criança, já que seu pai tinha uma lotérica na região (Andre Lessa)

Casa Godinho e a história da tasca que São Paulo perdeu (ou ainda não ganhou)

  • Plano para fazer um pequeno restaurante no fundo da loja foi engavetado na pandemia. Projeto previa cozinha no subsolo e vitrais inspirados no filme Bastardos Inglórios
  • Miguel Romano, o atual dono, se pudesse encontrar o fundador da Casa Godinho diria a ele: "Espero não ter decepcionado e ter mantido o que ele imaginava que a Casa Godinho deveria ser"
Por Edson Rossi 20 de Março, 2025 - 18:08
Atualizada às 22 de Março, 2025 - 16:27

[AGÊNCIA DC NEWS]. Miguel Romano é canhoto. Isso diz muito. Esse grupo compõe 10% da população. Nos esportes individuais, eles podem levar vantagem. Por uma razão aritmética. Destros lutam contra poucos canhotos. Canhotos lutam contra muitos destros. Então, os canhotos quase sempre enfrentam a maioria, o mainstream, e tendem a ser preparados para mais situações. De certa forma, Romano, 66 anos, é alguém moldado a enfrentar esse número maior de variáveis. O que ajuda a explicar por que ele conduz com maestria e leveza um desses tesouros que toda cidade guarda: uma loja histórica, a Casa Godinho. O que o move? “Sonhos.”

Um deles, bem guardado. Romano afirmou à Agência DC NEWS que planejava ter junto a sua loja centenária uma tasca. É difícil imaginar que algo tenha de mudar na Casa Godinho. Mas depois de ouvi-lo, é difícil não imaginar o quanto seria irresistível ter uma tasca nos fundos da loja. Até porque originalmente esses espaços nasceram para o convívio e a confraternização. Uma definição precisa é dada pelo site Taste of Lisboa: “O que começou por ser um lugar onde os trabalhadores podiam aquecer sua própria comida, em troca da compra de vinho e café, tornou-se um templo de comida acessível e bem-feita, com um ambiente acolhedor”. No caso paulistano, “a parte do fundo da Casa Godinho seria uma tasca”, afirmou Romano. O projeto estava pronto, com a escolha das mesas, cadeiras, louças, o cardápio em andamento, o investimento contabilizado. “Mas veio a pandemia… Infelizmente, ela acabou com esse sonho.”

Voltaremos a ele. Até porque Romano é movido por sonhos e não cansa de realizá-los. Ele chegou à Casa Godinho como sócio há 30 anos, e desde 2001 comanda sozinho esse lugar mítico, fundado em 1888 pelo português José Maria Godinho na Praça da Sé. Ali ficou 36 anos, até se mudar 600 metros, para o térreo do 340 da rua Libero Badaró, no Edifício Sampaio Moreira. Era o ano de 1924 e a loja está lá até hoje. Tudo continua igual. Romano enumera: a balança de prata que pesa frutas secas e frios, o piso de ladrilho hidráulico, as prateleiras de imbuia do século 19, todos os itens ainda são embrulhados em papel e os temperos são vendidos a granel. E principalmente duas características indefectíveis: a qualidade dos produtos, a excelência do atendimento. Um binômio que faz a Casa Godinho ser um dos dez primeiros contemplados com o prêmio Comércio Histórico – Estabelecimentos Tradicionais de São Paulo, criado pela Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e sua agência de notícias, a DC NEWS.

Romano afirma que ao ser inaugurada, “a ideia do senhor Godinho era trazer produtos de sua terra natal que as pessoas que imigravam para o Brasil estavam procurando”. Isso fez com que logo de início ela se tornasse um lugar muito procurado por estrangeiros, e não apenas portugueses. É preciso entender o contexto da transformação acelerada da cidade de então. Em 1890, dois anos após a Casa Godinho nascer, São Paulo tinha 60 mil habitantes. Dez anos depois, na virada do século 19, eram 240 mil. E em 1925, 800 mil – somente portugueses e italianos somavam 20% desse total. Poucos lugares no planeta viveram tal fenômeno.

Assim, a Casa Godinho criou fama primeiramente com os estrangeiros, mas logo conquistou também a população local. Para Romano, parte da resposta é que o fundador “tinha um rigor muito grande na escolha dos produtos que botava pra vender na loja”. Com os produtos, sim. E com o atendimento, igualmente. “Nunca uma pessoa vai pegar alguma coisa com um carrinho e ir pro caixa. Não!”, disse. Ela será atendida de forma personalizada, o que escolher vai ser embalado, feito o pacote, um tipo de atendimento diferenciado mantido até hoje. “Primeiro vem o relacionamento com o cliente. São como se fossem amigos nossos.” Romano transpira esse contato. Ele diz que é muito bonito vender pela internet, vender pelo iFood – e vende –, mas a presença do público naquele ambiente é única. “É a presença do público nela que faz a Casa Godinho sobreviver.”

A Casa Godinho e o Edifício Sampaio Moreira são uma simbiose. Um não vive sem o outro. Não daria para montar uma loja igual em outro lugar

Miguel Romano

Sobreviver é também vencer desafios. E houve pelo menos dois momentos muito difíceis. O primeiro foi por volta de 2001 e gerou um clássico. Um pouco antes da saída dos ex-sócios, a loja estava quase para fechar. De um dos ex-donos surgiu a ideia de montar uma pequena delicatessen. Quando o projeto saiu do papel, Romano já estava sozinho à frente do empreendimento. Dos fornos dessa pequena padaria saíam pães e salgados. E um deles era uma empada diferente. O recheio havia sido feito para uma casquinha de bacalhau pelo chef Allan Vila Espejo num programa de TV. Levava o bacalhau da Casa Godinho e um molho bechamel. “Daí surgiu a ideia de fazermos a empada com essa receita do bacalhau”, disse Romano. “Nosso confeiteiro conseguiu uma massa leve e nada seca. Desmanchava na boca, ficou deliciosa.” O sucesso de vendas fez Romano investir na divulgação da empada. Tempos depois, em 2012, recebeu da revista Veja São Paulo o prêmio de melhor salgadinho da cidade. “E nesse dia aí a coisa explodiu mesmo. Não dávamos conta de vender tanta empada.” Hoje, saem de 300 a 350 delas por dia.

CENTRO – O segundo momento de extrema dificuldade quase resultou num rompimento com o Centro. Desde criança Romano era fascinado pela loja da qual se tornaria dono. Sua relação com o Centro da cidade começou quando tinha 11 anos e seu pai abriu uma casa lotérica na região, em 1969, bem próxima à Casa Godinho. Ele saía da escola e corria para a loja do pai, levar a marmita do almoço. Para não voltar sozinho para casa, ficava até fechar. Essa rotina foi mantida por anos, até que começou a estudar à noite e a ajudar na administração da lotérica. Mas sempre ali, admirando, frequentando, construindo uma relação com a vizinha Casa Godinho. Foi empreender no ramo de restaurantes e quando estava perto dos 37 anos, em 1995, tornou-se um sócio da Godinho. Até 2001, quando ficou sozinho à frente do negócio.

Esse segundo momento desafiador aconteceu em 2003. O contrato de aluguel venceria e uma exigência de um antigo sócio é que deixasse de ser avalista. Romano procurou um dos locadores, herdeiro do espólio do Edifício Sampaio Moreira, em cujo térreo está a Casa Godinho, para renegociar o acordo e deixar seu nome como avalista, mas houve a possibilidade de não renovação. No meio do impasse, resolveu dar uma entrevista e narrar sua preocupação. Ele acredita que o proprietário viu a reportagem e decidiu pela renovação do contrato. “A Casa Godinho e o Edifício Sampaio Moreira são uma simbiose. Um não vive sem o outro”, disse Romano ao locador. “Conversei com ele e afirmei que daria todas as garantias, e que não seria possível montar uma loja igual em outro lugar.” Deu certo. Duas décadas depois continua tudo onde deve estar.

O Sampaio Moreira, aliás, é um símbolo da cidade. E pode ser considerado o avô dos arranha-céus paulistanos. Foi o primeiro a passar dos 50 metros de altura – tem 54 metros, um total de 13 pavimentos, além de terraço e porão. Seu projeto nasceu em 1923, a pedido do investidor José de Sampaio Moreira, que encomendou o edifício mais alto da cidade. Foi projetado pelo arquiteto Christiano Stockler das Neves e executado por seu pai, o engenheiro Samuel das Neves – ambos seriam responsáveis logo depois pela Estação Júlio Prestes, concluída apenas em 1938. No caso do Sampaio Moreira, a entrega aconteceu em 1924, mesmo ano em que recebeu a Casa Godinho, que deixava a Praça da Sé. Por isso é fato quando Romano diz que um nasceu para o outro. O Sampaio Moreira foi tombado em 1992. A Casa Godinho recebeu honraria similar 21 anos depois – tornou-se Patrimônio Imaterial de São Paulo em janeiro de 2013.

Romano encara as dificuldades pelo olhar da oportunidade. Não à toa quando esteve sozinho para comandar a Casa Godinho teve uma boa conversa com Luiz Gonçalves, um dos ex-sócios e a quem trata por mentor. “Quando entrei na sociedade, eu não conhecia quase nada daqueles produtos. E ele me ensinou tudo. Até o bacalhau, a maneira de escolher, a maneira de selecionar.” Romano conta que Gonçalves, que o chamava de Italiano, deixou a sociedade após cisão com outro sócio e logo soube que ele estaria sozinho. “Foi até a loja, me abraçou, me cumprimentou e disse”:
– Italiano, na tua mão vai dar certo. Você sabe trabalhar.
“E, graças a Deus, eu dei sorte.”

SOBREVIVENTE – Mais que sorte. Perguntei se pudesse voltar no tempo e dizer algo a José Maria Godinho, o fundador. “Diria: espero não ter decepcionado”, afirmou. “Tudo o que ele fez, tudo o que ele criou, eu espero ter mantido dentro daquilo que ele imaginava que a Casa Godinho deveria ser.” Um gesto de extrema generosidade. Uma jornada de resiliência verdadeira. E amor à tradição. “As pessoas me chamam de sobrevivente.” Ele dificilmente usa a palavra cliente. Trata como amigos ou pelo menos conhecidos. Pedi para que escolhesse apenas uma palavra para definir o passado, o presente e o futuro desse lugar de 137 anos. Romano cita respectivamente “tradição, diversidade e… sonho.”

Os sonhos, é claro. Os sonhos revelados – a tasca – e os sonhos não tão revelados. Ele tem uma filha e um filho que, como o pai, se chama Miguel. Tem 28 anos e faz carreira como chef fora do país. Está implícito que Romano gostaria que o filho comandasse a cozinha da tasca que (ainda) não nasceu. “Filho sendo chefe… eu tinha um plano.” Ele afirma que investiu um bom dinheiro nos projetos. Usou o mesmo arquiteto que estava fazendo o restauro do Sampaio Moreira. Tinha tudo definido. Onde ficaria o estoque, as cerca de 15 mesas, a cozinha no subsolo, “que já estava pronta”, a empresa que iria fazer os balcões. Ele cita o filme Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, Quentin Tarantino, 2009). Fala de forma detalhada da cena que se passa em um bar. “Daquele alemão que foi homenageado. Preste atenção nesse filme, você vai achar essa cena. E o fundo era um trabalho de vitral, que era a coisa mais linda.” Estava tudo pensado por ele. O balcão, as banquetas, o vitral, a iluminação. Perguntei se ainda mantém o projeto. “Eu fiquei tão decepcionado… Deve estar lá guardado. É, deve estar guardado.” Certeza que está. E que São Paulo ainda ganhará a tasca do sonho de Romano. Um canhoto sempre encontra uma saída.

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