Segundo André, que comanda as vendas para atacado, o produto de destaque da Doural são as cortinas (Andre Lessa / Agência DC News)

Doural resiste a incêndio, pandemia e enchentes para pôr luz à resiliência síria no coração de São Paulo

  • Com mais de 30 mil itens de utensílios domésticos, tapetes e cortinas, a Doural tem um ponto físico, canal digital, venda por atacado e exportações. A marca atende todas as classes socioeconômicas
  • A loja está localizada no mesmo lugar desde 1905: no número 595 da rua, antigo 141 e, em referência aos fundadores, a inscrição AA & NS é mantida até hoje na fachada do prédio
Por Aryel Fernandes 7 de Agosto, 2025 - 17:20
Atualizada às 7 de Agosto, 2025 - 15:39

[AGÊNCIA DC NEWS]. Assad Abdalla Haddad deixou a rotina do trabalho em obras na Síria para enfrentar a chuva como mascate no Brasil. Vindo de Homs, ele chegou a São Paulo em 1895, aos 25 anos com o primo Nagib Salem. Juntos, com suas matracas – instrumento de madeira que produz um som alto –, eles aproveitavam os dias chuvosos para vender mais seus tecidos e mercadorias, já que os outros comerciantes não iam às ruas. Dez anos depois, o patriarca da família Abdalla no Brasil – que abdicou do sobrenome Haddad por acreditar ser melhor comercialmente – fundou uma empresa que, além de percorrer gerações, é parte da história da rua 25 de Março: a Doural. “Vovô falava que, quando ele abria a janela e estava chovendo, ficava feliz. Ele sabia que seria um dia bom”, disse Assad Abdalla Neto, de 82 anos.

O serviço de mascate era praticado por necessidade – pela barreira linguística e influência dos árabes que já estavam aqui. Assad Abdalla chegou ao Brasil sem falar português e somente um ano de estudo. Inicialmente especializada em tecidos e armarinhos – pela menor concorrência –, atualmente, a Doural oferece mais de 30 mil itens de utensílios domésticos. A loja física permanece no mesmo lugar desde 1905: no número 595 da 25 de março, antigo nº 141. Assad Neto conta que seu pai, Nabih Assad Abdalla (1907-1979), nasceu na loja e que, o avô, após conquistar estabilidade financeira, investiu na educação dos filhos, enviando-os para estudar na Inglaterra. Nesse período, Assad Abdalla expandiu os negócios e abriu outras empresas. “Cada filho assumiu uma área diferente do negócio familiar e meu pai ficou com a loja.” Por este prestígio, a Doural recebe o prêmio 2025 de Comércio Histórico – Estabelecimentos Tradicionais de São Paulo, criado este ano pela Agência de Notícias DC News, que pertence à Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

Não é nossa intenção ser gigante, mas queremos que o cliente encontre o que procura para casa quando vem aqui

André Assad Abdalla, quarta geração de sucessão da Doural

Durante a expansão dos negócios da família, Assad criou um fundo de reserva para a aquisição e construção de imóveis, ainda em sociedade com Salem. Destaca-se a compra e fundação, em 1912, de um terreno no bairro do Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo, que depois ficaria conhecido como Parque São Jorge, ou A Fazendinha, sede social do Sport Club Corinthians Paulista – e onde o time jogou por 74 anos, de 1928 a 2002. Uma área de 45 mil metros quadrados, vendida por 750 contos de réis, quantia a ser paga em 12 anos. A venda ocorreu em 1926. “Quando eles compraram, já tinha o campo feito lá. Mas não é meu time, eu sou santista”, afirmou Assad Neto. Além dos negócios imobiliários, o patriarca da família passou a investir na indústria têxtil. Começou em 1936, com uma fábrica de fiação e tecelagem, no interior de São Paulo, aqui já com a sociedade desfeita – Salem já não queria mais. E, em um segundo momento, com polos na capital paulista e no Rio de Janeiro. Conforme o livro Família Assad Abdalla & Corgie Haddah – 1903/2003, Assad dizia que “para saber como São Paulo ia ser daqui a trinta anos, era preciso olhar atrás trinta anos”.

Em referência aos fundadores, a inscrição AA & NS é mantida até hoje na fachada do prédio da Doural. Quando ascendeu socialmente, a família mudou para uma casa maior e melhor na avenida Paulista. Antes desta mudança, a loja também foi a residência das famílias Abdalla e Salem. Hoje, o piso superior do prédio – dividido na época entre os primos – abriga os produtos com custo mais elevado e personalizados da loja. Além disso, a área tem um memorial dos feitos de Assad Abdalla – que contribuiu para fundação do Club Homs e projetos de filantropia, com destaque para os provérbios que o patriarca usou como lema durante a vida – e homenagem ao advogado abolicionista Luiz Gama (1830-1882). Originalmente, o prédio foi residência de Gama, que ajudou a libertar pelo menos 500 escravos. Em 2021, a loja recebeu uma placa consagrando o espaço como o primeiro escritório de Gama e marco na história do advogado. Para a família, é motivo de prestígio destacar o legado de Gama no estabelecimento – e um orgulho que Assad Abdalla tenha adquirido um imóvel com essa bagagem histórica. Ele faleceu em 1950.

Assad Neto diz que sempre que entra na loja é feliz. E esse sentimento é o que o fez querer comandar o empreendimento desde a juventude. “Assumi a loja em 1967. Meu pai disse: me dá o diploma que te entrego a loja.” Quando essa transição ocorreu, ficou com muito orgulho por poder carregar o legado da família, afirmou. Atualmente, a Doural está sendo comandada de maneira mista, por Assad Neto e pela quarta geração. Ele vai à loja todos os dias, mas está passando a gestão comercial da empresa para os filhos: Fernando Assad Abdalla, que atua como CEO, e André Assad Abdalla, que comanda as exportações e vendas para atacado. O pai propôs o mesmo acordo para os filhos: o diploma foi requisito para assumir os negócios da família. “Eles também tiveram que estudar para trabalhar na loja e foi por vontade própria, nunca obriguei.”

Doural
Interior da loja da Doural – ano não especificado
(Acervo pessoal)

No livro Assad Abdalla – Sua obra e sua vida, publicado em português em 2002, conta-se que o patriarca da família atribuía grande parte do sucesso à esposa, Corgie Haddad (1881-1970). Essa postura também se apresenta como um fator geracional. Assad Neto afirma que sua esposa, Lucia Abdalla, de 75 anos, foi fundamental para a Doural continuar prosperando. Juntos há 52 anos, o casal – formado por primos – afirma que não tiveram problemas para a família aceitar a união. “Esperei dez anos para casar. Ele quis estabilizar a loja primeiro.”, disse Lúcia Abdalla. Um costume da família, aos sábados, Lucia ia para a loja com Fernando e André. Desde crianças, os irmãos estavam inseridos na rotina da empresa. A modernização da loja ocorreu de maneira gradual, com os filhos percebendo o que poderiam contribuir.

“Sobrevivemos a uma enchente, incêndio e pandemia”, disse Assad Neto. A família conta que depois da enchente os produtos avariados entraram em liquidação. Com contratempos: alguns clientes propositalmente molhavam produtos que não haviam sido atingidos pela enchente para ganhar descontos. “Mas eu sabia quais eram as peças”, afirmou Assad Neto, dizendo que a ação foi inovadora para a época. Pensar em modelos diferenciados para lidar com crises também é algo que está no sangue da família. Em 1920, Assad Abdalla modifica a forma de pagamento da Doural para escapar da crise: a maioria dos comerciantes vendida no sistema de conta corrente, ele passa a vender somente à vista. Isso fez com a margem de lucro fosse menor, em um primeiro momento, mas, ajudou Assad a ter mais estabilidade com os bancos durante as crises financeiras e políticas que viriam.

Com a trajetória da família Abdalla tão intimamente ligada ao número 595, da rua 25 de Março, palco de gerações dedicadas ao comércio, André viveu uma coincidência marcante na sua vida pessoal neste endereço. Ao combinar o primeiro encontro com sua futura esposa, ele sugeriu como ponto de referência a Doural, sem saber que o local também fazia parte da história dela. Animada com a proposta, ela comentou que queria mostrar ao pretendente à loja que seu bisavô havia ajudado a fundar. Ao chegarem, ambos se surpreenderam: tratava-se do mesmo endereço, e o bisavô dela era Nagib Salem – primo de Assad Abdalla e figura importante na história da Doural. “Ela ficou assustada com a pressão que a família iria colocar no nosso relacionamento, já eu fiquei animado”, disse André. Para o casal, algo que poderia ser somente o início de uma conversa, se mostrou uma história que já parecia escrita.

Doural
Família Abdalla (1930)
(Acervo pessoal)

“A verdade e a seriedade são a fonte do sucesso”, disse Assad Abdalla em sua biografia. A frase é o lema da Doural até hoje, que busca ser referência no seu setor. Segundo André, historicamente, o produto de destaque da Doural são as cortinas. “Antes as pessoas compravam as coisas para fazer, hoje temos vários modelos prontos. Mas é o produto mais vendido.” Atualmente, a Doural tem o ponto físico clássico na 25 de Março, mas planeja expandir. A empresa já teve uma unidade no bairro Jardins, mas, como o imóvel é próprio, decidiu alugar por um tempo. “Já conhecemos o mercado e este público com um padrão diferenciado, faz muito sentido reabrir a loja no futuro”, afirma Fernando Abdalla. Além disso, a empresa tem um canal digital e vendas por atacado para outros comerciantes.

Outra frente de atuação da Doural é a marca própria, com itens para todas as classes socioeconômicas. “Fazemos linhas de tapetes customizados e, em utilidades domésticas, importamos algumas linhas exclusivas”, diz Fernando. Na parte de mesa posta, a empresa já teve peças desenhadas pela própria equipe e parceria com alguns artistas para criar coleções. Sem revelar o faturamento, a Doural espera crescer 10% este ano. “Não é nossa intenção ser gigante, mas queremos que o cliente encontre o que procura para casa quando vem aqui”, diz André. Para as próximas gerações, André afirma que Fernando e ele deixaram os filhos livres para escolher os próprios caminhos. “Eles ainda são adolescentes, mas já estão pensando em faculdade. Se eles quiserem vir para loja será uma escolha individual”, disse.

Doural
R. 25 de Março, 595, Centro Histórico
Segunda a sexta das 8:00 às 17:00 e sábado das 8:00 às 12:00
(11) 3328-6228
doural.com.br
Instagram: @lojasdoural