Sanduíche é vendido em várias versões, como a com alface & tomate (foto). Preços a partir de R$ 42 (Reprodução)

Bar do Mané: nove décadas de Mercadão; duas toneladas por mês de mortadela

  • Com mais de 2 toneladas de mortadela por mês dá para fazer 5,7 mil sanduíches. Somente com ele, receita passa dos R$ 3 milhões anualmente
  • William Loureiro é da quarta geração à frente do bar. Formado em gastronomia, ele mantém a tradição e igualmente traz novas ideias, como os croquetes e sanduíches gourmet
Por Letícia Franco 26 de Fevereiro, 2025 - 14:46
Atualizada às 19 de Março, 2025 - 15:48

[AGÊNCIA DC NEWS]. É difícil pensar no Mercado Municipal de São Paulo, ou melhor, no Mercadão, sem lembrar do sanduíche de mortadela. Uma receita quase centenária que leva 350 gramas de recheio e se tornou estrela da gastronomia paulistana. De munícipes, turistas a figuras do esporte e da arte, é difícil não se render ao sabor dessa tradição. A lista tem desde o ex-tenista suíço Roger Federer – terceiro maior vencedor de torneios Grand Slam (20), atrás apenas de Rafael Nadal (22) e Novak Djokovic (24) –, que provou o sanduba em 2012, até o ator norte-americano Terry Crews, que fez sua visita no ano passado. Conhecido pelo papel de Latrell no filme As Branquelas (White Chicks, 2004) – produção que esteve longe de alcançar críticas positivas –, também atuou como Julius, na série Todo Mundo Odeia o Chris (Everybody Hates Chris, 2005-2009) – esta já mais bem avaliada pelos críticos. Esses extremos resumem de certa forma a fama do sanduíche. Amado por muitos, conhecido por todos.

Acima de Federer ou Crews está Marco Antônio Loureiro, 67 anos, o astro maior por trás do Bar do Mané. Ele é o representante da terceira geração de sua família no comando do empreendimento. “O bar utiliza mais de 2 toneladas de mortadela por mês”, afirmou. Em conta de guardanapo, o volume rende aproximadamente 5,7 mil lanches. As opções começam na faixa de R$ 42, o que faz as versões no pão desse embutido de origem italiana movimentarem anualmente mais de R$ 3 milhões. O volume reflete a fama e o apelo do local, mantidos por uma dedicação que atravessa mais de nove décadas.

A história do bar remonta a 25 de janeiro de 1933, mesmo ano da inauguração do Mercadão – e mesmo dia do aniversário da cidade de São Paulo. O avô de Marco, Jeremias Cardoso Loureiro, era um imigrante português que, ao chegar ao Brasil, teve como sua primeira ocupação a de feirante na antiga Várzea do Carmo. Era uma das zonas centrais da cidade de São Paulo, nomeada assim por ser – na época – uma área que inundava pelas cheias do rio Tamanduateí. Quando o mercado foi construído, Loureiro e um primo, o também português Alberto Cardoso Loureiro, foram convidados a se estabelecer nos boxes. Inicialmente, cada um tocou seu negócio, mas logo se juntaram, criando o embrião do bar que hoje é ícone da gastronomia paulistana.

Naquela época, o Mercadão era essencialmente um centro de abastecimento e o negócio tinha outro nome: Bar do Jeremias. Nele, Jeremias vendia lanches simples como o de mortadela, de copa e de salame, visando atender rapidamente aos feirantes e donos de restaurantes, que madrugavam para garantir as mercadorias. E nem era o sanduba de maior fama. Os de copa ou salame venciam essa disputa. Em 1970, Manoel Cardoso Loureiro, o Mané, filho de Jeremias, assumiu o estabelecimento. Ele começou a trabalhar no local com apenas 9 anos e dedicou 70 anos de sua vida ao mercado. Era conhecido pelo atendimento caloroso aos clientes e seu apreço pela qualidade dos produtos.

Manoel teve um filho, Marco Antônio, que não demorou a ter contato com o ambiente do mercado. Nascido em 1957, cresceu em meio ao salgado de frios e ao movimento constante dos corredores do mercado. No começo dos anos 70, aos 15 anos, ele começou a trabalhar oficialmente com o pai, com quem aprendeu sobre o negócio enquanto lavava xícaras e servia clientes. Herdou a responsabilidade de gerir o bar e assumiu o negócio com o desejo de inovar sem abdicar das tradições. “Acredito que essa combinação é que permite que o Bar do Mané atravesse gerações e diferentes épocas”, afirmou ele.

O Bar do Mané só existe devido ao Mercadão, e vice-versa. Somos parte dessa história

Marco Antônio Loureiro

DESTINO – Embora sonhasse em ser engenheiro, Marco Antônio atendeu prontamente o chamado de seu pai, em 1982, para ajudar na administração do bar e também do empório, ao lado do estabelecimento. “Destino”, afirmou. “Era para eu ficar aqui mesmo.” A frase vem acompanhada de um sorriso de quem não se arrepende de sua trajetória. Foi somente em 2005, sob o comando dele, que o estabelecimento familiar mudou de nome e se tornou oficialmente Bar do Mané, consolidando o legado do pai, que havia falecido recentemente. Isso porque, até então, o nome mudava na boca da clientela, seguindo o nome do dono: na época do avô era o Bar do Jeremias, na do pai, Bar do Manoel, depois do Mané, e mais recentemente do Marco. Mudou o nome e a própria receita de seu clássico. No começo, havia menos mortadela no sanduíche. Mas os clientes foram pedindo mais e mais até chegar aos 350 gramas de agora. “Quando faço para mim, coloco no máximo 100 gramas e adiciono rúcula”, disse Marco Antônio.

Essa metamorfose sempre foi prova de que o bar se adaptou às mudanças de público do Mercadão, estabelecimento que se firmou como um dos principais destinos turísticos de São Paulo, fama que o Bar do Mané ajudou a construir. Atualmente, o espaço tem 256 boxes e recebe 50 mil pessoas por semana – próximo a datas festivas, o número chega a 20 mil por dia. Há quatro anos, o espaço é gerido pela iniciativa privada.

O prédio – que ocupa um espaço de 12,6 mil metros quadrados de área construída – é endereço comercial de 1,5 mil funcionários e movimenta cerca de 350 toneladas de alimentos por dia. O edifício, em si, já vale a visita. Projetado pelo escritório do arquiteto Francisco Ramos de Azevedo em 1926, os vitrais são do artista Conrado Sorgenicht Filho, famoso pelo trabalho realizado na Catedral da Sé e em outras 300 igrejas brasileiras. Ao todo, são 32 painéis subdivididos em 72 vitrais. O fluxo de visitantes entre 2021 e o ano passado cresceu 15%, e um terço deles é de fora de São Paulo.

FUTURO – Para manter a relevância com o passar dos anos, Marco Antônio passou a incluir opções como croquetes de carne seca e lanches de pernil, mas sem retirar itens tradicionais do cardápio, como o próprio lanche de mortadela e o pastel de bacalhau. Marco Antônio agora prepara a passagem de bastão para a quarta geração do Bar do Mané. Por anos, até a pandemia de covid-19, em 2020, tinha uma rotina intensa, chegando ao bar às 2h30 da manhã para atender os primeiros clientes. Ficava até as 17h.

Hoje, com um ritmo mais tranquilo, ele diz que sente saudade dos tempos em que estava no coração da operação. Mas já divide a liderança com o filho William Loureiro, formado em gastronomia, que dá continuidade a essa tradição de mais de nove décadas. William foi responsável por trazer novas ideias ao cardápio, como os croquetes e sanduíches gourmet (outras combinações do lanche original de mortadela e novas receitas de lanches), mas sempre respeitando a essência do bar.

O segredo do sucesso que Marco Antônio espera passar para o filho e as próximas gerações da família está na capacidade de se adaptar sem perder a identidade. “O Bar do Mané só existe devido ao Mercadão, e vice-versa”, disse. “Somos parte dessa história.” Para ele, o futuro reserva desafios, mas também oportunidades de crescimento. Seu desejo é que o bar alcance o centenário junto ao Mercadão. Se depender da busca pela mortadela, ele vai chegar lá.