[AGÊNCIA DC NEWS]. Cozinha pode ser a defesa de um time de futebol. Precisa estar sempre arrumada para não levar gol. Podem ser também os instrumentistas da banda, que garantem o som para o intérprete. Ou a cozinha, literalmente, onde são guardados os segredos dos pratos que fazem a fama do estabelecimento. No caso do Rei do Filet, na terceira gestão familiar, um segredo que completará 111 anos agora em abril. O filé, com seus 16 acompanhamentos possíveis, mas em geral lembrado pela versão alho e óleo. Ou com brócolis. Ou a cavalo. Ou à moda (com fritas à francesa e alho). Agora, em três tamanhos, rara concessão da casa os clientes: 500 gramas, como foi servido durante décadas, ou, mais recentemente, 250 e 130 gramas, para alimentar estômagos mais modestos. Moraes, o chapeiro original, não está mais aqui para contar como tudo começou, mas o Rei do Filet tem dois chefs longevos, Vanderlei Macedo e Gildásio Barbosa de Sá, entre outros funcionários que há décadas atravessam a porta de vidro do estabelecimento – aos pés do Palacete Lugano, que começou a ser construído em 1914, quando o restaurante ainda não havia chegado no endereço atual, a praça Julio Mesquita, antiga praça da Vitória. Quem olha de frente tem a avenida São João à esquerda (o Bar Brahma, na esquina com a Ipiranga, fica a 400 metros dali) e a alameda Barão de Limeira à direita. O Rei do Filet, que já foi Filet do Moraes, começou como Esplanadinha, na rua Conselheiro Crispiano, e foi para a Julio Mesquita em 1929 (quando havia só meio Lugano construído).
Se você perguntar sobre a carne ou algum ingrediente básico do cardápio, provavelmente ouvirá a mesma resposta, com certo ar de mistério. “Nós temos um fornecedor…” Sobre a carne: filé-mignon, sempre, 4/5, um pouco maior, adquirido em “grandes frigoríficos”, contam. Preparado em duas frigideiras, a primeira com óleo mais baixo, antes do “choque” final. E o ponto? São cinco. Os garçons ouvem os pedidos e traduzem à cozinha: mal passado, ao ponto para mal, ao ponto, ao ponto para bem e bem passado. “Nosso ao ponto é bem vermelho. O formato de abrir o filé é o mesmo”, conta o chef Gildásio, 53 anos, que no meio do ano vai completar 34 anos de casa. Veio cedo de Riacho de Santana (BA), e hoje mora com a mãe e três irmãs em Francisco Morato, na Grande São Paulo. Pega o trem da Linha 7-Rubi da CPTM para trabalhar, onde começou como ajudante de copa, depois de passar por laboratório e pela Ceasa. Ele só perde em longevidade para o gerente José Oscar Gonçalves Macedo, 70 anos, que completa 51 anos de serviço neste março.
Oscar viu. Gildásio por pouco não pegou o único período em que o Rei do Filet teve que fechar as portas. Foi em 1986, no período do Plano Cruzado, uma de muitas tentativas do governo de plantão para conter a inflação, na casa dos dois dígitos mensais e três anuais – incluindo tabelamento de preços. O boi sumiu dos pastos – até a Polícia Federal chegou a ser acionada –, e a carne desapareceu das prateleiras. Era a crise do boi gordo. O Rei do Filet ficou um mês fechado. E por pouco não fechou definitivamente durante a pandemia. O gerente e ex-garçom Roberto Carlos Martins, 60 anos, há 31 no restaurante, lembra que só vinham seis funcionários, três a cada 15 dias. Gildásio completa: “Três e parado ainda, um olhando pro outro”. Só serviço de entrega e a agonia do “baixa a porta, não baixa”. Quando existia a filial na alameda Santos, em Cerqueira César, Zona Sul, a casa chegou a ter 65 funcionários. Hoje, são 23. Com a pandemia, acabou o atendimento noturno: o Rei do Filet serve refeições das 11h às 16h (e até as 17h aos sábados e domingos) em seus dois ambientes – um salão comprido na entrada e outro nos fundos, separados por um balcão e uma pequena rampa –, entre azulejos e quadros. Um deles dedicado ao alho.

Sim, de volta ao cardápio, o alho, outro segredo, é ingrediente clássico para acompanhar os filés. Geralmente, alho argentino. Mas, conforme a situação, já foi usado alho brasileiro e até chinês. O processo de preparo exige que o item fique dois dias “descansando”. Eles vêm sempre na mesma quantidade, separados em recipientes na cozinha. Tem ainda o agrião da terra: a época boa é o frio, explicam. O brócolis é mais difícil de trabalhar: chuva demais é ruim, calor demais também. E não se pode esquecer da batata, que é pré-frita: “Cria uma película, você pode dobrar que não quebra”. Aos segredos da cozinha – ele escolhe pessoalmente os produtos –, Roberto acrescenta um do salão: “O segredo é manter o padrão de atendimento”. Assim, atrai gerações, filhos e até netos de antigos fregueses, gente que trabalha nas imediações e famosos. Hebe Camargo, Cauby Peixoto, Sérgio Reis, Zeca Pagodinho, entre outros, passaram por lá. Thiago Lacerda levou os pais para almoçar. O ator é descendente de portugueses, como os fundadores do restaurante.
Na praça, bem em frente ao Palacete Lugano e ao Rei do Filet, fica a Fonte Monumental. Que guarda outra história ligada a Adoniran Barbosa – que, segundo reza a lenda, compôs Trem das Onze em uma das mesas do restaurante, nos anos 1960. Aprovada por lei em 1913, a fonte deveria ter sido construída na praça da Sé, mas acabou na Julio Mesquita – e apenas em 1927, justamente quando a praça mudou de nome para homenagear o fundador do jornal O Estado de S.Paulo, antes ainda da chegada do Rei de Filet. Existem várias explicações para o atraso, e pelo menos uma é convincente: os bombardeios que a cidade sofreu em 1924 por forças do governo. Quando enfim foi inaugurada, logo ganhou o apelido de “fonte das lagostas”, pelos ornamentos de bronze espalhados pela obra. Bem mais tarde, o local começou a sofrer com a degradação do Centro e as lagostas começaram a desaparecer, furtadas. Atualmente, a fonte está em boas condições de conservação, mas sem água. Cronista do cotidiano paulistano, Adoniran compôs (em parceria com o gaúcho Tasso Bangel) Roubaram a Lagosta. A canção permaneceu inédita até 2000, quando o cantor e compositor Passoca gravou. São Paulo guarda na audição da memória as músicas de Adoniran. E no paladar, os filés que com seus alhos, agriões, brócolis e segredos continuam chegando às mesas. Há 111 anos. Toda essa história acumulada fez o Rei do Filet ser um dos dez primeiros contemplados com o prêmio Comércio Histórico – Estabelecimentos Tradicionais de São Paulo, criado pela Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e sua agência de notícias, a DC NEWS.
O segredo é manter o padrão de atendimento

Rei do Filet
Praça Júlio Mesquita, 175
Segunda a sexta das 11:00 às 16:00, aos sábados e domingos das 11:00 às 17:00
(11) 3221-8066
reidofilet.com
Instagram: @reidofilet

A imagem, ainda que pouco nítida, mostra como era o salão do Rei do Filet em outros tempos

Gildásio, há quase 34 anos no Rei do Filet, herdou os segredos da cozinha

O prato da casa, agora em três tamanhos: fama do filé (filet) atravessou gerações