Rodrigo Alves: "É um misto de sentimentos, sinto o peso e o orgulho de manter um legado" (Andre Lessa / Agência DC News)

Advogados, artistas, jornalistas e palhaços – o retrato cententário do Ponto Chic na cosmopolita São Paulo

  • Unidade original, fundada em 1922, será reformada no ano que vem, mas nada ousado: plano é ajustar as instalações para algo mais moderno, sem abrir mão das tradições
  • De jogadores de futebol à elite intelectual brasileira, Rodrigo Alves, proprietário do Ponto Chic, diz que a capacidade de a casa acolher antagonistas é parte do sucesso perene
Por Paula Cristina 7 de Agosto, 2025 - 17:55
Atualizada às 7 de Agosto, 2025 - 19:49

[AGÊNCIA DC NEWS]. No coração pulsante da cidade de São Paulo, o restaurante Ponto Chic guarda, como um relicário vivo, mais de um século de histórias, encontros e sabores que atravessaram gerações. Desde 1922, advogados, artistas, jornalistas, jogadores de futebol, palhaços e políticos cruzaram suas portas, imprimindo à casa uma atmosfera única, marcada pela diversidade cultural e pela efervescência da metrópole. “O Ponto Chic é esse lugar onde diferentes mundos se encontram”, disse Rodrigo Alves, proprietário da empresa, que carrega consigo a dicotomia entre o peso e o orgulho de ser o herdeiro de uma tradição centenária. No paradoxo entre o novo e o velho, Rodrigo prepara uma reforma para a unidade do Paissandu (a original) em 2026 – mas nada ousado. Apenas melhorias na infraestrutura e adaptações aos tempos modernos, como o delivery, que hoje representa 23% do faturamento da empresa. A última das três unidades do Ponto Chic a ser reformada, a loja central, famosa por sua fachada amarela, contraria Belchior e prova que o passado é, sim, uma roupa que se pode ajustar — e continuar usando.

Fundado por Odílio Cecchini e Antônio Milanese em um momento de efervescência cultural no Brasil, o Ponto Chic rapidamente virou ponto de encontro dos intelectuais e das elites paulistanas. Foi no rescaldo da Semana de Arte Moderna de 1922 – marco fundamental que sacudiu as estruturas do país ao apresentar uma nova estética e romper com o passado – que o restaurante ganhou seu nome: uma expressão cunhada pelo escritor Oswald de Andrade, um dos artistas que frequentavam o local. “Foi um mês depois da Semana de Arte Moderna, e os artistas começaram a chamar o restaurante de ‘aquele ponto chique’”, afirmou Rodrigo. Segundo ele, não demorou para que o nome pegasse – e fosse “da boca dos clientes para a testa do restaurante” em menos de um mês. É com essa história peculiar, que o Ponto Chic recebe o prêmio 2025 de Comércio Histórico – Estabelecimentos Tradicionais de São Paulo, criado este ano pela Agência de Notícias DC News, que pertence à Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

Ao longo das décadas, o Ponto Chic foi palco de episódios que entraram para a história da cidade e do país. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, por exemplo, viveu-se um episódio marcante. Estudantes que integravam o grupo armado da resistência paulistana estavam reunidos na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Não demorou para que a polícia se aproximasse do local, ensaiando uma apreensão em massa. A solução dos jovens foi correr para o Ponto Chic. Lá, o gerente do restaurante escondeu as armas nas geladeiras do bar e, quando a polícia chegou, não havia flagrante. “Eles foram levados para averiguação, mas não foram presos”, disse Rodrigo. Esse episódio ilustra a relação intrínseca do restaurante com os acontecimentos políticos, culturais e sociais da cidade. “A gente viu e viveu a história de São Paulo ser construída por trás do balcão do Ponto Chic”, afirmou. Rodrigo também lembra a origem do famoso bordão “é pique, é pique, é hora, é hora, rá tim bum”, criado por estudantes em uma das muitas festas que marcaram o salão.

Segundo a tradição oral, passada pelas gerações que atravessaram o Ponto Chic, havia um estudante chamado Miguel, apelidado de “Pique” pelos amigos, por usar uma tesoura para aparar seu longo bigode. No dia de seu aniversário, os colegas se reuniram no restaurante e, após o tradicional parabéns, alguém gritou: “é pique, é pique, é pique!”. O trecho “é hora, é hora, é hora”, segundo Rodrigo, vem da rotina do Ponto Chic: o chope, à época, era gelado com barras de gelo, e a rodada saía sempre de meia em meia hora. Já o “rá tim bum” faria referência a um rajá indiano que frequentava a Faculdade de Direito naquele período. Ainda que seja impossível atestar a veracidade das histórias contadas, é inegável a aura que sempre habitou o espaço.

Mas há, na ligação do Ponto Chic com os estudantes de Direito, uma história bastante tangível. Foi ali, no balcão da casa, que nasceu, em 1937, o icônico sanduíche bauru, criado por Casimiro Pinto Neto, um jovem estudante conhecido como “Bauru”, por sua cidade natal. Inspirado por um livro chamado Receitas da Mãezinha, impresso pelo governo estadual para ajudar mulheres a construir refeições mais saudáveis para filhos e maridos, Casimiro pediu um sanduíche específico: pão como carboidrato, rosbife como proteína, tomate como vitamina. Havia ainda picles e uma mistura de queijos derretidos em banho-maria – não havia chapa na época. Antes mesmo de provar o lanche, um amigo de Casimiro pegou um pedaço e, empolgado, pediu ao garçom: “Quero um igual ao do Bauru!”. O sucesso foi imediato, e o bauru tornou-se símbolo da gastronomia paulista e patrimônio imaterial do Estado desde 2019.

A decisão do meu avô, de comprar o Ponto Chic foi uma decisão de amor e de coragem

Rodrigo Alves, Ponto Chic

Além dos estudantes e intelectuais, o Ponto Chic sempre recebeu uma variedade de frequentadores que refletem a diversidade cultural da metrópole. Jornalistas como Blota Júnior – que inspirou o nome de um dos clássicos da casa, o frapê de coco –, artistas como Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, além de sindicatos de palhaços que se reuniam nas proximidades, contribuíram para a atmosfera eclética e acolhedora do restaurante. Um episódio famoso conta uma acalorada discussão entre Monteiro Lobato e Mário de Andrade, que quase chegou às vias de fato –símbolo do fervor das ideias que circulavam ali. “Nosso público sempre foi muito diverso”, disse Rodrigo Alves.

A discussão entre os dois escritores não surpreende: trocaram farpas públicas nos jornais da época. Em artigo publicado em O Estado de S. Paulo, em 15 de agosto de 1917, com o título Paranoia ou Mistificação, Lobato atacou uma exposição de Anita Malfatti – um dos nomes centrais da futura Semana de Arte Moderna –, classificando-a como “obra de arte anormal” e comparando seus traços a “paredes de manicômio”. A crítica provocou uma ruptura pública entre os artistas progressistas, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Victor Brecheret e Heitor Villa-Lobos, e os conservadores, entre os quais se posicionava Lobato.

E se São Paulo se transforma constantemente nos arredores do Largo do Paissandu, dentro do Ponto Chic também mudanças aconteceriam. Na década de 1970, com o fechamento iminente do restaurante em função de desavenças com o proprietário do imóvel, o Sr. Odílio decidiu que fecharia o restaurante. E aqui cabe uma interrupção para contar um pouco da história de Antônio Alves de Souza, avô de Rodrigo e o responsável por fazer a história do Ponto Chic ser lembrada. Antônio veio de Franca, no interior de São Paulo, em 1949, aos 17 anos. Seu primeiro emprego? No Ponto Chic. Em cinco anos, já no posto de gerente, decidiu deixar o negócio – queria abrir seu próprio restaurante. “Ele tinha uma veia empreendedora muito forte”, afirmou Rodrigo. O processo, que se arrastou ao longo dos anos 1950, consistia em comprar o negócio, arrumar a casa e vender.

Essa dinâmica continuou nos anos 1960, quando Antônio ganhava cada vez mais experiência no ramo. Foi em 1977 que os caminhos de Antônio e seu Odílio, seu antigo chefe, voltaram a se cruzar. Sem herdeiros e cansado de uma briga com o proprietário do imóvel onde até hoje fica o Ponto Chic do Paissandu, Odílio decidiu fechar o negócio. O impacto foi imediato. Os jornais da época noticiaram o fechamento. O Diário da Noite, O Estado de São Paulo e o Diário do Comércio trataram do encerramento da casa do Bauru. Foi nesse clima que seu Antônio, ao lado de José Carlos Alves de Souza, pai de Rodrigo, decidiu comprar o negócio. “Foi uma decisão de amor e coragem”, disse Rodrigo, que, nascido em 1978, tem suas primeiras memórias já dentro do restaurante, onde seu avô e sua avó Edna Carloni Alves tocavam o negócio.

Com o ponto de conflito posto entre o antigo dono e o proprietário do imóvel, a solução da família Alves foi mudar o restaurante de lugar. E assim foi aberta a unidade de Perdizes. “Nosso plano era voltar para o Paissandu, e conseguimos depois de dois anos”, afirmou Rodrigo. Mediado o conflito, o restaurante voltou para onde tudo havia começado e, nesse momento, o ímpeto de comprar e vender desapareceu. A família Alves parece ter encontrado seu lugar. E só podia ser o Ponto Chic, espaço conhecido por acolher a todos.

Edna Carloni Alves e Antônio Alves, avós de Rodrigo, na loja em Perdizes, após a compra em 1977
(Acervo pessoal)

A mudança para Perdizes, no entanto, trouxe ao seu Antônio uma epifania: a marca era tão grande e tão forte que não cabia, literalmente, apenas na unidade do Paissandu. Ao longo dos anos 1980 e 1990, outras tantas unidades foram abertas. Algumas fora da capital, como São Bernardo do Campo e Ribeirão Preto. Outras dentro da cidade, como as unidades da Mooca, Paraíso e Augusta. No acompanhar das idas e vindas da economia, três delas permanecem até hoje: a original, no centro; a do Paraíso, na Avenida Paulista; e a de Perdizes, na Zona Oeste. Durante todo o movimento entre as lojas, Rodrigo, ainda pré-adolescente, esteve nos salões do Ponto Chic, onde trocava alguns pequenos serviços por um “salário de cinco reais por mesa limpa” do pai.

Mas o mundo caminha, e, aos 18 anos, Rodrigo foi estudar Direito. Segundo ele, o pai dizia que, se ele quisesse voltar, seria para somar na empresa – então que conhecesse o mercado e se desenvolvesse como profissional. Ele também estudou Marketing e Administração de Empresas. Em 2010, disse ao pai que estava pronto para voltar. “Então fui assumindo os postos. Agregando. A sucessão é sempre muito difícil. A escolha de assumir o negócio tem que ser do filho, não do pai.” Segundo ele, o caminho da sucessão, geralmente difícil em empresas familiares, foi sereno. “Meu pai e avô souberam conduzir isso de uma forma muito natural. Muito orgânica.”

A gestão dos três aconteceu de modo concomitante desde então, com Rodrigo aprendendo na prática os detalhes da operação, se aproximando dos garçons e desenvolvendo suas próprias características na gestão. “Eu pude trazer um frescor, para renovar. A presença nas redes sociais, o contato virtual, tudo eu fui fazendo aos pouquinhos”, disse. O ritmo da mudança, inclusive, foi um desafio. “Em uma empresa de 103 anos o ritmo é diferente”, afirmou. “Eu vim do mercado, da cobrança de resultado imediato, então precisei desacelerar.” Um dos exemplos desse processo mais paulatino foi a inserção de opções veganas nos pratos.

O maior desafio de Rodrigo, até agora, foi o período da pandemia. O Ponto Chic conseguiu manter todos os funcionários, com todos os benefícios, ao custo de aportes importantes feitos pela própria família. Segundo ele, a manutenção dos funcionários era importante para que, no retorno do lockdown, os clientes encontrassem os mesmos colaboradores. “Manter a tradição de hospitalidade é nossa missão, e só fazemos isso com nossos colaboradores”, afirmou. Hoje, a média de tempo de um colaborador do Ponto Chic é de 18 anos. Da pandemia também surgiu a atenção maior aos serviços de entregas. O delivery, que antes da pandemia representava 10% do faturamento, chegou a 25% e hoje oscila entre 22% e 23%. Ainda assim, diz Rodrigo, o salão é sempre a prioridade. “Se o salão estiver cheio, suspendemos o delivery para garantir a experiência.”

Média do tempo de trabalho dos funcionário do Ponto Chic, hoje, é de 18 anos
(Andre Lessa / Agência DC News)

Com as idas e vindas da vida, em 2022 o pai de Rodrigo, José Carlos, faleceu aos 71 anos. Em 2024, faleceu seu avô Antônio, aos 92 anos. Duas perdas sentidas não apenas pela família Alves, mas por todo o corpo de funcionários e comunidade do centro. “Foram os funcionários daqui que me ajudaram a me manter de pé. Essa sensação de família é algo único e que me mantém forte”, afirmou. Hoje, sua irmã participa da gestão, cuidando da unidade de Perdizes, compondo a continuidade do trabalho familiar.

Os anos também trouxeram o reconhecimento público ao serviço do Ponto Chic. O restaurante ganhou reconhecimento oficial, como o selo de valor cultural de São Paulo, o título de Patrimônio Imaterial do Estado pelo bauru, em 2019, e a emocionante Salva de Prata da Câmara dos Vereadores, em 2023, comemorando os 100 anos da casa – e sem a presença do Sr. José. Um momento simbólico foi o documentário produzido por alunos da FAAP, que registrou depoimentos do avô e do pai de Rodrigo, eternizando as memórias do Ponto Chic.

E se o passado é tão rico, o futuro também se desenha como promissor. Rodrigo Alves diz que trabalha constantemente pautado na tradição e na adaptação. Ele planeja reformar a unidade do Paissandu, preservando os detalhes históricos, enquanto atualiza a cozinha e os espaços de atendimento. O plano é estar preparado para a alta da demanda esperada com o lançamento de empreendimentos imobiliários na região central, além da chegada da sede administrativa do Governo do Estado de São Paulo, que deverá aumentar o volume de pedestres na região.

Na árvore genealógica de Rodrigo, seus dois filhos, de 8 e 9 anos, também dão seus passos dentro do restaurante, como ele havia feito outrora. “Tenho a sensação de que, quando estou aqui, estou em casa”, disse. Firme, o Ponto Chic é, nas palavras de Rodrigo, “um jovem senhor de 103 anos” – e a prova de que rejuvenescer, como dita a canção Velha Roupa Colorida, de Belchior, não é apenas sobre deixar de lado as roupas antigas, mas adaptá-las para o novo mundo.

Ponto Chic
Largo do Paissandú, 27, Centro Histórico
(11) 3222-6528
Segunda a sexta das 12:00 às 20:00 e sábado das 12:00 às 18:00
Instagram: @pontochicsp