[AGÊNCIA DC NEWS]. Getúlio Vargas e Oswald de Andrade têm duas coisas em comum: são brasileiros e morreram em 1954. As semelhanças param por aí, mas desde 1º de janeiro as obras de ambos entraram em domínio público. Isso significa que, pela lei brasileira (Lei 9.610, de 1998), todas as obras podem ser reproduzidas sem pagamento de direitos autorais. O artigo 41 da lei determina que os direitos patrimoniais valem durante 70 anos após a morte do autor, até 1º de janeiro do ano seguinte. Assim, um dos papas do modernismo verde e amarelo, antropófago cultural, cultivador de amores e brigas (provavelmente mais brigas), já pode ser devidamente devorado. Era o que pregavam os modernistas: “comer” (metaforicamente) alguém para adquirir as qualidades do devorado. “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”, disse Oswald no famoso Manifesto Antropófago (ou Antropofágico) publicado em maio de 1928, na primeira edição da Revista de Antropofagia (dirigida por Alcântara Machado e com Raul Bopp como gerente). Décadas depois, ele estaria influenciando os tropicalistas – na música, nas artes plásticas e no teatro. Basta lembrar da encenação de O Rei da Vela em 1967 (30 anos depois de escrita), montagem de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, no Teatro Oficina. No LP Estrangeiro (1989), Caetano Veloso usou a maquete criada pelo artista Hélio Eichbauer para a encenação. No álbum Joia (1975), gravou Escapulário, com versos de Oswald.
Para a professora Maria Augusta Bernardes Fonseca, biógrafa de Oswald, independentemente do domínio público, a obra do irrequieto modernista precisa voltar ao grande público e às salas de aula. “É preciso que circule no ensino médio e nas universidades, tanto quanto nas bancas de jornais”, afirmou. “As obras experimentais de Oswald, apesar da aparente superficialidade provocada pelo gracejo, ou por juízos que só procuram acentuar a piada, são difíceis, mas não impossíveis de penetrar seu universo em profundidade, buscar caminhos de compreensão.” Ela cita uma frase que se tornou clássica, em carta de Oswald ao jornalista e escritor Afrânio Zuccolotto: A massa, meu caro, há de chegar ao biscoito fino que fabrico.
Finos ou não, foram muitos biscoitos fabricados pelo paulistano José Oswald de Sousa Andrade, que em 1911, aos 21 anos, lançou o semanário O Pirralho – foram 248 edições, até 1918, todas disponíveis na Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional. Depois vieram ainda os jornais Papel e Tinta e O Homem do Povo (também disponível na Hemeroteca), este já em sua fase comunista. Sem contar, claro, o Movimento Pau-Brasil (para libertar a poesia brasileira “das influências nefastas das velhas civilizações em decadência”) e o Movimento Antropofágico. E muitos romances – não os literários, mas os de carne e osso. Oswald foi casado com Tarsila do Amaral, de quem ganhou o quadro que depois receberia o nome de Abaporu (“O homem que come”, em tupi). Traiu Tarsila com Patrícia Rehder Pagão, a Pagu, em 1930. Tarsila ficou atordoada pela dupla traição, já que Pagu era sua amiga. O escritor Jason Tércio, biógrafo de Mário, conta que dona Olívia Guedes Penteado, mecenas dos modernistas, decidiu em solidariedade a Tarsila não convidar mais Oswald e Pagu para eventos em sua residência. Ganhou do escritor o apelido de “Dona Azeitona”, por analogia marota com oliva. O casamento de Oswald e Tarsila durou de 1926 a 1930, quando Pagu ficou grávida. No ano seguinte, coincidentemente, Tarsila uniu-se a um comunista, o psiquiatra Osório César. É presa durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1933, pinta a tela Operários.

Oswald e Pagu casaram-se em pleno Cemitério da Consolação, onde seu irrequieto corpo descansou em 1954, assim como o de vários modernistas e do “inimigo” Monteiro Lobato. Tiveram um filho, Rudá (1930-2009), que se tornaria cineasta e escritor. Não foi o primeiro: já era pai de Nonê (José Oswald Antonio de Andrade, 1914-1972, pintor, escritor, cenógrafo), com a francesa Kamiá (Henriette Denise Boufflers). Ele passou os últimos anos com Maria Antonieta D´Alkimin, com quem teve mais dois filhos, Marília e Paulo (1948-1968). Moraram no Sítio Boa Sorte, em Ribeirão Pires, município da região do ABC paulista. Foi ali que ele escreveu seu inacabado Um Homem sem Profissão, livro de memórias em que contou ter se atracado com outro repórter (trabalhava no Jornal do Commercio) para ficar com o original de um discurso de Mário, em 1917. Marília, a única mulher e a única ainda viva, morreu há poucos dias, em 24 de janeiro, véspera do aniversário de São Paulo, aos 79 anos. Ela ajudou a implementar o Instituto de Artes na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nos anos 1980. Entre seus mestres na dança, estão Eugenio Barga e Pina Bausch. Começou a dançar aos 4 anos e foi até os 60. Marília manteve um site com um capítulo dedicado ao pai.
BRIGA – Por ironia (ou não), os túmulos de Oswald e Mário de Andrade são praticamente vizinhos no Cemitério da Consolação. A amizade e o desentendimento entre eles são capítulo à parte na história do Modernismo. Para a professora Maria Augusta, os entreveros entre os dois “nada acrescentam à leitura das obras magistrais que ambos nos levaram, e que até hoje permanecem como leituras fundamentais para conhecermos nosso país, com suas contradições, nossa língua, cultura, vida social e política”. Sobre essa e outras desavenças, assinala, é preciso analisar o momento histórico e as características pessoais dos envolvidos.
Oswald antecipou o que hoje costumamos definir, com algum modismo acadêmico, de pensamento decolonial. Quando os intelectuais brasileiros discutiam a questão da suposta identidade nacional, Oswald já propunha a alteridade como chave para os estudos culturais

“O caso que remete a Oswald e Mário de Andrade diz respeito a dois amigos brilhantes, que se quiseram muito bem, mas de temperamentos muito diversos. Os desencontros carregados também de hostilidades levaram a uma séria ruptura. E, nesse particular, atitudes de Oswald nem sempre foram as mais louváveis, ultrapassando limites da mera brincadeira. Sabe-se que Oswald perdia um amigo, mas não perdia a piada. Esse espírito indomável de menino travesso o levava a se arrepender seriamente do dano causado, como aconteceu com Mário de Andrade.” Mas a professora e pesquisadora se manifesta contrária ao “Fla-Flu”, referência à briga entre os Andrades (que não eram parentes). “Porque acaba injustamente desmerecendo um ou outro, que sabemos dois gigantes da nossa literatura e cultura”, afirmou. “A ‘cidade de Mário’ também era a de Oswald.”
O circo também não escapou das garras multiculturais de Oswald, que em 1929 ajudou a organizar um almoço (Festim Antropofágico) em homenagem a Piolin – e, claro, para “deglutir” o palhaço símbolo do Brasil. A Revista de Antropofagia anunciou que Piolin seria “vastamente almoçado”.
“Um dos capítulos mais líricos de Miramar, verdadeiro poema em prosa contido em apenas três breves parágrafos, é Gatuno de Crianças”, disse a professora e biógrafa Maria Augusta. “De forte carga expressiva, temos no primeiro segmento uma síntese primorosa, singular, da magia do circo traduzida pelo imaginário da criança: O circo era um balão aceso com música e pastéis na entrada. Certeiro nas nuances de humor, Oswald forja contrastes entre elementos transformadores e rigidez conservadora, assimilando questões determinantes das duas primeiras décadas do século 20.” Ela lembra ainda que o palhaço tornou-se amigo de Oswald, “que pretendia que Piolin atuasse em O Rei da Vela”. Além disso, a obra Serafim Ponte Grande “é farta em assimilações desse universo pândego e crítico, ilusório, mágico, irreverente, de imaginação criadora transbordante, que é do circo, onde reina o palhaço”.

(Biblioteca Nacional)
Dessa forma, ao “filtrar e transpor” repertórios, “buscando articulações entre o estético e o social” e tensionando o mundo real e a ficção, Oswald traduziu com maestria particularidades da vida brasileira, segundo a professora. “Nela projetou o país que entrava com atraso na era industrial e numa controversa modernidade, situando a vida do personagem João Miramar no estado mais desenvolvido do Brasil – São Paulo”, afirmou. “Sua capital era sinônimo do progresso financeiro do país, o polo industrial mais potente da América Latina. Concomitantemente, a oligarquia fazendeira do estado mantinha seu poder, controlando a cultura e a exportação do café. Atraso e modernidade e modernidade do atraso em tensão.”
SÃO PAULO – A trajetória de Oswald está ligada ao Centro de São Paulo desde o início. Estudou na Escola Modelo Caetano de Campos, na Praça da República. Cursou Direito na faculdade da USP, no Largo São Francisco – é da Turma 88, com colação em dezembro de 1919. O primeiro endereço do jornal O Pirralho era a rua XV de Novembro, mudando depois para a São Bento. Já a redação de O Homem do Povo ficava na Praça da Sé. E havia também um pequeno prédio para encontros amorosos – não só de Oswald, diga-se – na Líbero Badaró. Ele também trabalhou como jornalista em veículos como Diário Popular e Jornal do Commercio. E não se pode esquecer da Klaxon, revista mantida de forma coletiva pelos modernistas. Teve curta duração, na esteira da sempre lembrada Semana de Arte Moderna de 1922. Muito antes, em 1916, durante evento de inauguração do Belvedere Trianon, onde fica hoje o Masp, Oswald já abria alas para o momento, ao falar “em nome de meia dúzia de artistas moços de São Paulo” ou “um bando de negados e negadores”.
A saga iconoclasta e errática de Oswald é tema também de mais uma Ocupação promovida pelo Itaú Cultural. A mostra começou em outubro e foi até 23 de fevereiro. Ali estavam manuscritos do autor, edições de seus livros e dos jornais que organizou, cartas, documentos e fotografias. Outros destaques eram O Rei da Vela (a peça) e O Rei da Vela (o filme, de 1982). Entrevistas com Marília, Maria Augusta Fonseca e Lira Neto, além do diretor Zé Celso, do ator Renato Borghi e da atriz Ítala Nandi, que atuaram na peça do Teatro Oficina. Os organizadores incluíram um site com parte do conteúdo. Oportunidade para devorar e deglutir Oswald.
LIRA NETO E O “MAU SELVAGEM”
Quatro vezes vencedor do Prêmio Jabuti, o escritor e jornalista Lira Neto prepara-se para lançar Oswald de Andrade – O Mau Selvagem (Companhia das Letras). O livro chegou às livrarias em 11 de fevereiro, com lançamento oficial no dia 19, na Livraria da Vila, em São Paulo. Confira abaixo a entrevista com o autor.
AGÊNCIA DC NEWS – Você já falou que as biografias não devem ser um panegírico, mas transformar o mito em gente. No caso de Oswald, que de certa forma se “auto mitificou”, o que ficou do personagem e do homem?
Lira Neto – Ficou, de Oswald, a obra genial e o homem singular. A obra, revolucionária, experimental, controversa, cheia de altos e baixos. O homem, igualmente polêmico e contraditório, repleto de qualidades e defeitos. Sim, uma biografia não deve ser escrita com a intenção de beatificar o biografado. Ao contrário, deve destacar as incoerências de todo indivíduo, fazer a estátua descer do pedestal. Além do mais, Oswald nunca quis se passar por alma imaculada, vaquinha de presépio, vestal do bom-senso. Odiava o moralismo, abominava os moralistas. Nunca foi bom moço, intelectual comportado, cumpridor de formalidades. Era destemperado, mordaz, arrebatado, intuitivo. Um mau selvagem, em suma.
AGÊNCIA DC NEWS – O que pode ser dito sobre a relação dele com São Paulo, especificamente com o Centro Histórico? Oswald foi contestador, militou no Partidão, criticou a sociedade paulistana, mas também foi um intérprete da cidade e do país.
Lira Neto – Oswald encarnou São Paulo como poucos. Nasceu quando a cidade passava por vertiginosa transformação, acompanhando assim cada uma das mudanças ao redor: luz elétrica, telefone, rádio, cinema, automóveis, arranha-céus, aviões, viadutos, televisão. Flanava pelo Centro Histórico da capital paulista como um de seus principais personagens e, ao mesmo tempo, um de seus mais notáveis narradores. Era um burguês que ria da burguesia, um comunista que tripudiava do então obreirismo marxista. Seu humor, por vezes, assumia contornos de violência explícita. Não cultuava meios-termos. Era um extremista, na vida e na literatura.
AGÊNCIA DC NEWS – Acredita que a Semana de Arte Moderna de 1922 é super dimensionada na história de Oswald de Andrade?
Lira Neto – A Semana de Arte Moderna foi um acontecimento de grande relevância, mas a trajetória de Oswald é muito maior do que ela. Restringi-lo ao Modernismo é deixar de perceber todas as nuances de uma inteligência plural, utópica, indomável. A Antropofagia é bem mais importante do que 22, penso eu. Oswald antecipou o que hoje costumamos definir, com algum modismo acadêmico, de pensamento decolonial. Quando os intelectuais brasileiros discutiam a questão da suposta identidade nacional, Oswald já propunha a alteridade como chave para os estudos culturais.
AGÊNCIA DC NEWS – Oswald é “vizinho” de Mário no Cemitério da Consolação (onde, aliás, ele e Pagu se casaram). Será que os dois aproveitaram a paz eterna para se reconciliar?
Lira Neto – Duvido. Mário, imagino, deve estar no céu dos cristãos, essa lenda pacificadora dos arrependimentos humanos. Se existir, de fato, um inferno, Oswald estará lá, ateando fogo nos próprios demônios, fustigando os imbecis, os falsos moralistas, os pobres de espírito.
O QUE LER DE (E SOBRE) OSWALD
Oswald de Andrade – O Mau Selvagem
Lira Neto (Companhia das Letras, 2025)
Correspondência – Mário de Andrade & Oswald de Andrade
Gênese de Andrade (Edusp, 2024)
Semana de 22 – Antes do Começo, Depois do Fim
José de Nicola e Lucas de Nicola (Estação Brasil, 2021)
Em Busca da Alma Brasileira – Biografia de Mário de Andrade
Jason Tércio (Estação Brasil, 2019)
Tarsila de Amaral, a Modernista
Nádia Battella Gotlit (Edições Sesc, 2018 – 5ª edição)
Fabulário Oswald de Andrade: Memórias de um homem sem profissão
Tese de doutorado de Sandro Roberto Maio (USP, 2017)
Oswald de Andrade no jornal O Homem do Povo
Tese de pós-graduação de Aurora Cardoso de Quadros (USP, 2009)
Oswald de Andrade – Biografia
Maria Augusta Fonseca (Editora Globo, 2007 – 2ª edição)
Maria Antonieta D´Alkmin e Oswald de Andrade: Marco Zero
Marília de Andrade e Ésio Macedo Ribeiro (orgs.) (Edusp, 2003)
O Salão e a Selva – Uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade
Maria Eugênia Boaventura (Editora da Unicamp, 1995)
Um Homem sem Profissão
Oswald de Andrade, 1954
O Rei da Vela
Oswald de Andrade, 1937
Serafim Ponte Grande
Oswald de Andrade, 1933
Parque Industrial
Pagu, 1933
Manifesto Antropofágico (ou Antropófago)
Oswald de Andrade, 1928
Memórias Sentimentais de João Miramar
Oswald de Andrade, 1924

Mário de Andrade, Piolim (Abelardo Pinto), Haroldo Martins e Oswald de Andrade, na fazenda Santa Tereza do Alto, em outubro de 1927

Oswald foi casado com Tarsila do Amaral. Traiu Tarsila com Patrícia Rehder Pagão, a Pagu, em 1930, com quem depois se casou

Oswald e Pagu casaram-se em pleno Cemitério da Consolação, onde seu irrequieto corpo descansou em 1954