[AGÊNCIA DC NEWS]. Há coisas que mudam, há as que não mudam. Esta é a história destas. As que mudam: fazia calor, muito calor. E logo viria a chuva. Muita chuva. Quase hora do almoço, quinta-feira, 20 de fevereiro. Dos termômetros e do céu nada há de surpreendente nesta São Paulo que trocou de perfil climático. Lugar em que os 30 graus são o novo normal. O clima não mais remete à cidade do século passado, em que existia frio e uma estação chamada inverno. Agora as coisas que não mudam. Grazie a Dio! No número 121 da rua Rui Barbosa, no coração do Bixiga, está uma delas. A Padaria Italianinha. Fundada em 1896, ali tudo se baseia nos mesmos dois fundamentos – a qualidade dos produtos, a qualidade do atendimento. E permanece assim graças a cinco mulheres: as quatro irmãs Franciulli e uma sobrinha. A pergunta primeira, mais importante e inevitável é “o que fazer para existir por outros 100 anos ou mais”? A resposta é imediata. “Será a união da própria família”, afirmou Sandra Franciulli, 45 anos, a caçula das irmãs e quem está sempre à frente do atendimento.
Esse respeito à tradição e sua longevidade fizeram a Italianinha ser um dos dez primeiros contemplados com o prêmio Comércio Histórico – Estabelecimentos Tradicionais de São Paulo, criado pela Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e sua agência de notícias, a DC NEWS. Junto de Sandra trabalham na Italianinha suas irmãs, Vivian (52 anos), Elaine (57) e Solange (59). A sobrinha Nathalia (35), filha de Elaine, comanda os antepastos e as novidades do cardápio, e deve seguir como a quarta geração no estabelecimento que está com a família desde os anos 60, quando o avô de Sandra, o italiano Rafaelli Franciulli, comprou a padaria. Segundo registros da prefeitura, ela foi fundada pelo também italiano Felipe Ponci – nome que aparecerá como Filippo Ponzio nas origens de outra premiada do projeto Comércio Histórico 2025, a Basilicata.
Na época da compra pelos Franciulli, a Italianinha havia acabado de mudar de nome. De uma forma um pouco à revelia, pode-se dizer. Quando nasceu, no fim do século 19, era Lucânia, forma antiga de designar uma parte da atual região de Basilicata, no sul da Itália. Com as obras de alargamento da Rui Barbosa, a padaria perdeu a maior parte de seu espaço – o local atual corresponde ao que era ocupado como depósito de lenha. A redução do estabelecimento levou os clientes a começarem a chamá-la pelo diminutivo, já que havia ficado bem menor. E assim nasceu a Italianinha. Hoje são 20 metros quadrados. E algumas mesas que são colocadas na calçada para quem quiser se servir no local. A solução inclusive atende a um novo perfil de cliente, o que vai consumir ali e não apenas levar para casa. “Os carros-chefes nossos ainda são o pão italiano e a rosca de linguiça”, disse Sandra. “Mas a gente percebe que vem mudando agora. As pessoas mais novas estão nos conhecendo por causa dos lanches, do panino.” O de mortadela com pistache e tomate seco estava divino, diga-se. E você pode pedir ali, com uma taça de vinho.

Chega a ser impressionante como pode sair tanta coisa e tudo tão bom de um espaço tão pequeno. “Eu acho que o charme dela é justamente esse”, disse Sandra. Afora a própria clientela, a Italianinha abastece outros endereços. “Mas temos uma ‘rua’ [gíria para esse tipo de cliente B2B] bem pequena, bem reduzida mesmo, de umas 20 lojas, incluindo os restaurantes.” Segundo ela, antes havia uma preocupação maior com eles, atendendo redes, como cafeterias, “e a gente percebia que no final das contas você tinha apenas o teu nome em outro lugar, mas financeiramente falando, não valia.” Hoje, além dos pães saem dela panini, massas, cerca de 40 antepastos, linguiças, doces, panetones molhadinhos, azeitonas, azeites, queijos, vinhos… E mais recentemente as pinsas romanas – uma espécie de pizza retangular, de vários sabores, massa crocante com fermentação de 72 horas, servida numa tábua de madeira e cortada com a tesoura.
MÃO DE OBRA – Uma produção elevada e diversificada. E o mais incrível, tocada por um aguerrido e diminuto time de 13 funcionários. Esse tema, aliás, tem sido uma dor de cabeça atual. A mão de obra. Por um lado, o comportamento: segundo ela é difícil encontrar quem queira trabalhar também nos finais de semana. Fazer plantão, diz Sandra, não é bem o que move a nova geração. “Eles querem segunda a sexta.” Por outro lado, a técnica: Sandra busca profissionais em escolas, mas diz que normalmente encontra uma turma que não sabe trabalhar sem maquinário. “E aqui é preciso ter força. Porque não é máquina que vai bolear [a massa], é na mão.”
Se pudesse encontrar o fundador, lá em 1896, iria querer saber se ele imaginou que essa história iria tão longe e seria tão bonita

Por esse motivo ela destaca outra característica comum a todos os premiados pelo projeto Comércio Histórico: funcionários de décadas que são joias da casa. Na Italianinha há a nutricionista, o gerente e gente como Antônio Jorge Ramos, um padeiro que trabalha nos fornos de lá há 46 anos, um a mais do que Sandra tem de vida. “Fazer pão é aprender todo dia”, afirmou Ramos. “Porque quanto mais a gente faz, mais a gente precisa saber fazer.” O padeiro trabalhou com o pai dos Franciulli, com o irmão de Sandra, trabalha com as irmãs e a sobrinha e preza essa relação. “Aqui é como minha casa. É uma convivência que jamais vou esquecer.” Esse perfil de profissional Sandra sabe que dificilmente vai encontrar. Uma mudança geracional. “Eu venho aqui desde criança. Cresci aqui. E via os padeiros trazerem os filhos pra já irem aprendendo. Passavam o ofício”, afirmou ela. “E isso acabou.”
Se a luta atual é a mão de obra, o desafio mais difícil nessas seis décadas da Italianinha sob os Franciulli completou exatos 20 anos na véspera da segunda entrevista de Sandra à Agência DC NEWS. No dia 19 de fevereiro de 2005, Wilson Franciulli Junior, seu irmão mais velho, foi morto aos 42 anos num latrocínio. O pai, Wilson Franciulli, já havia morrido fazia 12 anos e Wilson Junior era quem conduzia o negócio. A família sempre teve comércios – outro irmão de Sandra, Alexandre (54 anos), é dono da 14 de Julho, igualmente contemplada no prêmio Comércio Histórico. “Todos nós fomos criados atrás do balcão”, disse Sandra.
Quando o pai deles adoeceu, o irmão mais velho acabou cuidando dos negócios. “Família italiana é assim: o mais velho tem de cuidar.” Com sua morte repentina, e trágica, houve um momento de seguir em frente ou não. “A maior dificuldade que a gente teve foi dar continuidade depois disso”, afirmou. “Mas como a gente lembrava do brilho dos olhos dele, que era a Italianinha, então a gente deu continuidade.” Hoje, logo à entrada da padaria, no alto, há uma placa em madeira em que se lê Panetteria Italianinha Desde 1896. Está em relevo, nas três cores da bandeira italiana. Acima da placa, há uma estrela prateada, em 3D. Ela é Wilson Franciulli Junior. Porque todos os dias ele abre e fecha a Italianinha. Era preciso seguir em frente. Os Franciulli seguiram.
Trata-se de uma regra que é comum a comércios centenários: o compromisso com a eternidade e com a tradição. Com o futuro e o passado na mesma página. Fazer do mesmo jeito todos os dias o que deve ser feito. Vale na memória de Wilson Junior, vale na massa mãe, o fermento originário. Esse elemento, a propósito, é quase uma divindade em toda padaria centenária da cidade. Mais que isso. É uma espécie de Deus ex machina. Cada um tem o seu e sem ele nada haveria, nada seria solucionado. Pode ser conhecido por levain, massa madre, lievito madre… Ou pezinho. “É assim que os padeiros chamam. Pezinho.” Esse fermento está no início de cada produção.
FORNO COMUNITÁRIO – Sandra diz que os imigrantes traziam de suas origens a massa madre, porque os pães eram feitos nas casas. O próprio forno da Italianinha nasceu antes da padaria. Pelo que chegou da tradição oral até ela, era um forno comunitário, e as diversas famílias imigrantes o utilizavam para fazer seus pães. Cada uma com sua massa madre. Os dos antepassados de Sandra por parte de pai vieram da Itália, de Castellabate, região da Campânia. Um pão da Italianinha de hoje tem origem ali, dessa massa. “Ela é viva até hoje.”
Antes, o avô e o pai dela iam de madrugada umedecer a massa. Hoje, é obrigatório usar refrigeração. E várias coisas interferiam. O clima era um. E numa São Paulo mais fria, ela demorava mais tempo para crescer. E também era mais azeda. Por causa dessas mudanças, o azedume da massa mudou, diminuiu. Segundo Sandra, esses padeiros mais tradicionais sabem quando um pão é de um lugar ou de outro. E ela sempre repete nas conversas e entrevistas uma história. Uma história boa, que merece ser ouvida. Sandra diz que se ela for sequestrada e o pedido de pagamento do resgate for levar embora a massa madre da Italianinha, as irmãs dela já sabem o que responder: “Fiquem com a Sandra, mas a massa não entregaremos”.
Uma regra que a própria sobrinha, Nathalia, já sabe. “O orgulho que sinto pela nossa padaria, que passou de geração em geração, é imensurável”, afirmou Nathalia. Assim como a mãe, tias e tios, os avós e bisavós, todos cresceram atrás daqueles balcões. “Perto do forno, respirando a essência do que significa fazer pão.” Segundo Nathalia, essa experiência moldou não apenas os seus sabores. “Mas também os laços familiares e comunitários.” Formada em administração, ela descreve sua relação com a padaria de forma intensa, apaixonada e apaixonante. “Cada aroma carrega memórias e sonhos, e cada cliente que atravessa nossas portas traz uma história que se entrelaça com a nossa.”
O problema, ou o desafio, de ultrapassar os 100 anos – ou caminhar pra 129, no caso da Italianinha – é a necessidade de projetar e esculpir o futuro. Para Nathalia, a resposta está na tradição. Como futuro, ela deseja ver a padaria crescer ainda mais, mantendo seu nome e sua essência no ambiente pequeno e aconchegante que sempre a caracterizou. “Quero que mais pessoas nos conheçam, que sintam a calorosa hospitalidade que oferecemos e entendam que cada produto feito aqui é fruto de um trabalho árduo e de um amor genuíno.” Pedi para a Sandra definir com apenas uma palavra o que seria o passado da Italianinha. Ela respondeu: “Luta.” E o presente? “Orgulho.” O futuro? “Conquistas.” Além de seguir avante com a padaria, ela quer incluir nos projetos algo mais pessoal, e escrever um livro de memórias de sua mãe, a valenciana Maria del Pilar, que morreu no ano passado.
Antes de encerrar nossa conversa, também perguntei para Sandra o que ela diria ao fundador da Italianinha, lá em 1896, caso pudesse voltar no tempo. “Ah, primeiro eu ficaria muito feliz. Agradeceria muito”, afirmou. “E depois eu iria querer saber se ele imaginou que essa história iria tão longe. Porque às vezes a gente não tem ideia do passo que a gente dá, de tão grandioso, de uma história tão longa e tão legal, tão bonita.” Para a família Franciulli, seguir em frente não é uma opção. É a única via. Como foi com seus pais, seus avós, com as gerações anteriores, com o fundador da padaria. Você não consegue mais separar o que é sina do que é legado. Você acorda e segue. Sabe que o único lema é respeitar a tradição. E que as coisas são o que são. E como é bom que assim seja.
Italianinha
R. Rui Barbosa, 121
Segunda-feira das 14:00 às 20:00, de terça a sábado das 07:00 às 20:00 e aos domingos das 07:00 às 15:00
(11) 3141-4166
Instagram: @ padariaitalianinha

Sandra Franciulli e uma versão da pinsa, tipo de pizza em massa crocante que passa 72 horas por fermentação. Servida cortada pela tesoura, receita de origem romana é um dos mais recentes no cardápio da casa

Os sanduíches italianos também entraram no cardápio mais recentemente e costumam atrair o novo público da padaria. Feitos com produtos selecionados, costumam ser consumidos em mesas na calçada

A estrela prateada, em 3D, acima da placa de entrada da padaria Italianinha, simboliza e é uma homenagem onipresente a Wilson Franciulli Junior, irmão mais velho de Sandra. Ele foi morto aos 42 anos, em fevereiro de 2005, num latrocínio quando fechava a padaria

Além da oferta generosa de queijos, embutidos, antepastos, massas, vinhos, pães e tudo o que remete à boa mesa, os doces são igualmente uma orgulhosa atração da família Franciulli na padaria da Bela Vista