[AGÊNCIA DC NEWS]. Entre os artistas e poetas que se arriscaram a cantar São Paulo e contar suas histórias, é possível dizer que pelo menos na música o seu principal intérprete não nasceu na cidade. Embora tenha incorporado como poucos as histórias da metrópole que crescia e se transformava. João Rubinato é de Valinhos, município a 80 quilômetros da capital. Viria ainda rapazinho, primeiro para a região do ABC e depois para as terras paulistanas. Mas talvez poucos reconheçam por esse nome. Estamos falando de Adoniran Barbosa, que viveu grande parte da vida no Centro de São Paulo. E registrou em sua curta discografia o cotidiano paulistano – suas dores, suas histórias engraçadas e mudanças. Da intencional pronúncia errada nas canções (que renderia problemas com a censura) à vivência próxima com todo tipo de paulistano, Adoniran se tornou a cara de São Paulo: plural, profundo e complexo em sua simplicidade. Em 2025, completam-se 115 anos do nascimento do compositor. Foram 72 anos de vida e 58 aniversários passados na capital, por onde mais um descendente de italianos – mas corintiano – veio ganhar a vida, fazendo de tudo e inserindo lirismo no cotidiano difícil dos trabalhadores. A obra de Adoniran é um passeio pela cidade e seus personagens.
Figura frequente nas esquinas e nos bares, sua morada mais famosa foi um pequeno apartamento na rua Aurora, onde viveu com dona Mathilde. Curiosamente, o mesmo edifício onde nasceu Mário de Andrade, meio século antes, em 1893. Seu último álbum foi lançado em 1980, dois anos antes de Adoniran morrer. Foi um show icônico, para celebrar suas 70 primaveras. Mezzo show, mezzo festa, que começou com missa na igreja de Nossa Senhora Achiropita, padroeira da Bela Vista (o Bixiga), na 13 de Maio, a rua das cantinas. E terminou com show na praça Dom Orione, que todos os domingos recebe uma feira de antiguidades – e onde fica um busto do artista.
O lançamento do álbum Adoniran Barbosa (também conhecido como Adoniran Barbosa e Convidados) foi um marco porque se tratava do terceiro álbum do artista – em quase 50 anos de carreira – e recheado de convidados especiais. Com 14 faixas, o disco teve participação de alguns dos principais artistas da época: Clara Nunes, Djavan, Elis Regina (que também morreu em 1982), Gonzaguinha, Clementina de Jesus, Carlinhos Vergueiro, MPB4 e Roberto Ribeiro. E se você quiser caminhar por mais lugares por onde passava Adoniran, sugiro seguir até uma construção tradicional: o Palacete Tereza Toledo Lara, na rua Quintino Bocaiúva, esquina com rua Direita e com a Rua José Bonifácio, onde fica hoje a Casa de Francisca.

O motivo? Ele batia ponto na Rádio Record, que ficava no casarão inaugurado em 1910 (o ano de nascimento do próprio Adoniran) – uma plaquinha discreta na parede externa lembra que ali era uma segunda casa do artista. Além de participar com frequência dos programas musicais, ele era constantemente convidado para participar dos programas humorísticos e radioteatros – e era muito querido pelo público. (Dica de amiga: suba até o primeiro andar do prédio e lá você poderá ver a cópia do contrato de trabalho entre a Record e João Rubinato.)
Adoniran, por sinal, era protagonista do programa História das Malocas, escrito pelo amigo e parceiro Oswaldo Molles – a inconfundível canção Tiro ao Álvaro, que Adoniran gravou com Elis, é uma parceria dele com Molles. No programa, ele interpretava o malandro Charutinho, que sempre se dava mal. O personagem tinha dois bordões: “Chora na Rampa” e “Aqui, Gerarda”, que viraram músicas de Carnaval, como era comum na época.
Eu menti pra conquistar seu bem-querer. Eu disse a ela que trabalhava de engenheiro, que o metrô de São Paulo estava em minhas mãos

Não muito longe, outro ponto histórico do roteiro Adoniran: a rua Boa Vista. Foi no Teatro Boa Vista, que ficava na esquina com a Ladeira Porto Geral, em 1935, que ele ganhou o primeiro lugar de um concurso de marchinhas de Carnaval realizado pela prefeitura. Apesar de o teatro não existir mais, admiradores de Adoniran colocaram uma placa, em frente a um bar onde ficava o espaço, para perpetuar a história. Em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 14 de maio de 1963, ele contou o que fez com o dinheiro do prêmio. “Eu não tinha muitos amigos. Mas com o dinheiro eu arrumei muitos e bebemos o prêmio todo”, disse.
E quando o assunto é comida, o restaurante preferido de Adoniran era o Filet do Moraes, na praça Júlio Mesquita. Ainda aberto, o restaurante hoje carrega o nome Rei do Filet. Inaugurado em 1914, há muitos anos reside em frente ao espaço uma escultura em mármore carrara representando seres do mar, com lagostas em bronze nas laterais. Certa noite, as lagostas “sumiram”. E não demorou para que o assunto se espalhasse pela cidade. O buchincho foi tão grande que virou poesia nas mãos de Adoniran. “Na praça Júlio Mesquita/ Tem a estátua da lagosta/ Quem passa de longe enxerga/ Quem passa de perto gosta/”. Ao fim da crônica, ele ressalta: “Deixe a lagosta em paz/ Muito bom ficar sozinha/ Mas é melhor ficar seca ou molhada/ Do que ser derretida ou roubada”.

(Luiz Alves/Museu da Música)
Nessa mesma região, Adoniran passeava com seu cachorro Peteleco – que virou “parceiro” musical. Em um desses passeios, ele atravessava a rua Aurora, quando ouviu algumas pessoas comentarem sobre a demolição de uma casa e a construção de um prédio. Os homens, segundo o compositor, usavam um tom saudosista, reflexo de uma cidade que, no fim dos anos 1940, vivia um movimento de franca expansão. O prédio, de fato, foi construído. E na parede junto à porta dele há mais uma placa, dizendo que ali teria sido a inspiração para a canção Saudosa Maloca, de 1951. Tido como o primeiro grande sucesso de Adoniran Barbosa, a música não foi a única a resumir com precisão o papel de um cronista: ser o espelho do seu tempo. Saudosa Maloca ganhou continuação (Abrigo de Vagabundos) e inspirou longa-metragem lançado em 2024, com direção de Pedro Serrano. O cantor Paulo Miklos interpreta Adoniran.
Praça da Sé
Nesta canção de 1978, o músico retrata a praça como o marco zero da cidade. O contexto do lançamento explica: a canção foi ao ar com a reinauguração da praça, após uma longa reforma de seis anos, por causa das obras do Metrô. Atualmente, o espaço é diferente do retratado na canção, mas como ele canta: “Mudou tudo, mudou até o clima”. No dia da inauguração, claro, Adoniran estava presente.

Viaduto Santa Ifigênia
No caso da música lançada em 1956 e que se tornaria famosa na voz de Clara Nunes, Adoniran conta a história do atropelamento da jovem Iracema, dias antes de se casar. “Você atravessou a São João, vem um carro, te pega e te pincha no chão”. É um contraste à Sampa, de Caetano Veloso, que menciona a mesma avenida do bairro da República, mas com uma perspectiva reflexiva: “Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”. A tal esquina abriga desde 1948 o Bar Brahma, frequentado por Adoniran e vários outros artistas. Do lado de fora, uma estátua do sambista – ele aparece batucando em uma caixinha de fósforos, enquanto Peteleco faz festa. Do outro lado da avenida, outra estátua: do cientista, compositor e boêmio Paulo Vanzolini.
Uma Simples Margarida
Parceria com Nicola Caporrino (o Alocin, ou Nicola escrito de trás para a frente), a música conta a história de Eugênia, uma menina que tem sua história paralela à do viaduto de estilo art nouveau. “Foi aqui que você nasceu, foi aqui que você cresceu”, o compositor canta enquanto lembra de momentos da vida da jovem, que se assusta com a possibilidade da construção ser demolida. Para a alegria da personagem, o viaduto inaugurado em 1913 continua firme e forte. Detalhe: a gravação no disco de 1980 tem a presença de Cesar Faria, pai de Paulinho da Viola.
Iracema
Mesmo a canção romântica Uma Simples Margarida também reflete a evolução de uma cidade marcada pelo progresso. “Eu menti pra conquistar seu bem-querer/ Eu disse a ela que trabalhava de engenheiro/ Que o metrô de São Paulo estava em minhas mãos.” Na canção, ele usa o crescimento da cidade como argumento para conquistar Margarida.
Um Samba no Bixiga
O bairro do Bixiga é o tema da canção de 1976, em que Adoniran remonta a realidade das influências dos imigrantes italianos na região, especialmente na rua Major Diogo, com suas festas, sambas e confusões. E com direito a uma pérola na letra, a expressão “mezzanotte o´clock”: “Domingo nóis fumo num samba no Bixiga/ Na rua Major/ Na casa do Nicola/ À mezzanotte o´clock/ Saiu uma baita de uma briga/ Era só pizza que avoava/ Junto c´as brachola”. Com essas e outras, o músico deixou sua marca no bairro e foi eternizado na Praça Dom Orione, diante da escadaria que liga as ruas 13 de Maio e dos Ingleses. Além disso, o sambista virou rua no bairro: uma via estreita e escondida, de 150 metros, entre a avenida Brigadeiro Luís Antônio e a rua Jaceguai.

(Divulgação)
Dica de amiga: para os que se inspiraram pela música do Adoniran Barbosa, há também um refresco para os olhos. No Cambuci, região central, há um mural feito por Eduardo Kobra. A obra, de 30 metros de altura e 10 de largura, foi inaugurada em 2018. O mural gigante está na rua Heitor Peixoto, 702, e coloca o sambista em primeiro plano, com o Viaduto do Chá ao fundo. Depois deste passeio histórico e musical, nada melhor que São Paulo parafrasear ao poeta sua própria canção: “Vide verso meu endereço/ Apareça quando quiser, Adoniran!”.
Antes de terminar, já que nóis vai e nóis vorta, não dá para lembrar de duas canções de Adoniran que 11 em cada dez paulistanos sabem de cor. Trem das 11 (ou Trem das Onze) surgiu em uma fase de seca criativa do artista. Mas valeu a pena: gravada em 1964 pelo conjunto Demônios da Garoa, tornou-se sua música mais conhecida e, de quebra, ganhou o Carnaval do 4º Centenário justamente no Rio de Janeiro, a terra do samba. Mas Adoniran não morou no Jaçanã, bairro da Zona Norte. E tem o Samba do Arnesto, que conta a história dos amigos que levaram um cano após terem sido convidados para um samba no Brás. O cano não aconteceu. Arnesto existiu. Era Ernesto Paulelli, que morreu em 2014, aos 99 anos. E puxou a orelha de Adoniran por tê-lo colocado em uma “encrenca” com o samba que inventou.

O músico foi eternizado com um busto de bronze no Bixiga

Adoniran Barbosa no espaço após a reforma da praça

Estátua de Adoniran com o cachorro Peteleco na entrada do restaurante

Sambista virou grafite na famosa rua do bairro Bixiga