SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com um Hamas enfraquecido após dois anos de guerra contra Israel e uma Autoridade Palestina deslegitimada, os palestinos da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e da diáspora se veem sem lideranças capazes de navegar o momento político e conquistar avanços na direção de construir um Estado próprio.
Para especialistas, esse vácuo político em um momento em que os Estados Unidos e países árabes e europeus se movimentam para consolidar o cessar-fogo na região pode levar os palestinos a perder oportunidades históricas.
No início dos anos 2000, após décadas de hegemonia da OLP (Organização pela Libertação da Palestina) de Yasser Arafat, o movimento palestino passou a viver uma disputa fratricida entre o Fatah, partido dominante na OLP à frente da Autoridade Palestina e que governa a Cisjordânia ocupada, e o Hamas que surgiu inicialmente com o apoio de Israel em estratégia para enfraquecer Arafat.
“A legitimidade do Hamas se dá graças às falhas dos Acordos de Oslo e da domesticação do Fatah”, diz o historiador americano Seth Anziska, professor do University College London e autor de um livro sobre o processo de paz na região dos anos 1970 aos anos 1990. “Mas também é verdade que o racha no movimento palestino foi planejado e imposto por pressões externas e por Israel. Reconciliar essas diferenças parece ser muito difícil, principalmente após a guerra em Gaza.”
Hoje, o Fatah tem baixíssimo apoio na sociedade, e há consenso de que, caso haja eleições na Cisjordânia, coisa que não acontece desde 2006, a sigla sofrerá uma forte derrota.
Já o Hamas viu seus líderes militares mortos um a um por Israel nos últimos dois anos e possui uma cúpula política no exílio que é cada vez mais desconectada da ala militar operando em Gaza alguns analistas chegam a dizer que essa ala militar tomou, sozinha, a decisão de lançar o ataque do 7 de Outubro.
O plano de paz de Donald Trump, que prevê o desarmamento do grupo e impede sua participação na vida política do território no futuro, levanta ainda mais dúvidas sobre a sobrevivência da facção no longo prazo.
“É importante entender que o Hamas sofreu um golpe político, e não apenas porque foi excluído do poder em Gaza sob o plano de Trump”, afirma Yezid Sayigh, intelectual palestino radicado em Beirute e membro do Centro Carnegie para o Oriente Médio. “A incapacidade do Hamas de fazer o cálculo do que aconteceria depois do 7 de Outubro nos levou até onde estamos hoje”, diz.
Para Michael Milshtein, diretor do programa de Estudos Palestinos da Universidade de Tel Aviv e ex-coronel do Exército de Israel, o Hamas “demonstrou que tem um DNA muito peculiar, capaz de sobreviver mesmo depois de tantas baixas”.
“E se você perguntar quem controla Gaza, quem controla as ruas, é apenas o Hamas”, afirma. O israelense também pontua: “Converso com muitos palestinos em Gaza, e eles me dizem que odeiam o Hamas. Avalio que, se houvesse uma eleição livre em Gaza amanhã, o Hamas perderia”.
Também por essa razão, Sayigh, do Centro Carnegie, afirma acreditar que Fatah e Hamas são “cadáveres políticos”. “A última vez que o Fatah tomou qualquer tipo de iniciativa foi há 25 anos, quando lançou a Segunda Intifiada, o que acredito ter sido um erro estratégico. O Hamas tem a aparência de uma força dinâmica que continua a luta contra Israel, mas cometeu suicídio no 7 de Outubro.”
Segundo ele, o grupo terrorista “foi muito inteligente taticamente e muito estúpido estrategicamente”. “Acho que eles não tinham um objetivo político claro. Se era libertar Gaza do controle israelense, então até uma criança teria entendido que ferir civis tornaria esse objetivo impossível de ser alcançado. No 7 de Outubro, o Hamas jogou fora 50 anos de sacrifícios do povo palestino”, avalia Sayigh. “Não acredito que 70 mil palestinos mortos e um território incapaz de sustentar a vida humana seja uma vitória.”
Para Sayigh, a falta de lideranças expressivas significa que os palestinos podem perder esta que é uma oportunidade única e histórica que se apresenta com o plano de paz de Trump para encerrar o conflito. “Pela primeira vez desde 1967, Israel não terá controle ali. A partir daí, basta um passo para que governos que já reconheceram o Estado da Palestina digam: temos um Estado e esta é sua primeira base territorial.”
O especialista afirma, no entanto, que o governo Binyamin Netanyahu não ficará de braços cruzados e fará de tudo para evitar perder o controle sobre Gaza.
O sentimento é compartilhado por Milshtein. “Eu tenho certeza que Netanyahu quer recomeçar a guerra, mas ele só fará isso se houver algum tipo de permissão de Trump”, opina. “E se isso acontecer e o conflito recomeçar, será sob a visão dos extremistas do governo israelense: ocupação total de Gaza, regime militar e talvez até mesmo anexação e assentamentos.”
Para Anziska, o historiador americano, a pressão que Trump exerce sobre o governo israelense para que isso não ocorra não está em contradição com sua movimentação diplomática de isolar os palestinos e evitar um futuro onde o Hamas ou o Fatah saiam fortalecidos. “Mas a história desses últimos dois anos nos diz que ejetar as aspirações palestinas não é realista, e se tentarmos de novo, como vemos no plano de paz [dos EUA], falharemos espetacularmente.”
“A verdadeira questão não é que formas o movimento palestino toma, seja o Hamas ou o Fatah. A verdadeira história é a ausência de direitos para os palestinos. Essa é a questão central: você acredita que todos os palestinos entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo devem ter direitos?”, avalia Anziska. “Se a resposta é não, você vai apresentar um sem-número de razões para justificar essa posição. É por isso que focar apenas o Hamas não nos ajuda a entender o que impulsiona o nacionalismo palestino e permite que evitemos lidar com as suas exigências.”