Aquele não era um início de tarde comum na Serra do Curió. Encravada no município de Campo Grande, no sertão do Rio Grande do Norte, a região estava coberta por um céu negro, nuvens pesadas. Passava um pouco do meio-dia e, em vez do usual calor adurente, soprava um vento frio sobre as montanhas rochosas da serra. De uma hora para a outra, a ventania ganhou força como ninguém jamais havia visto por aquelas bandas. “Foi uma agonia danada. Gente correndo e gritando pra todo lado”, disse o comerciante Lourival Pimenta, lembrando do fato ocorrido em meados de 1959.
Nascido em plena Serra do Curió e hoje aos 70 anos, ele tinha apenas 5 quando viu, assombrado, a cena que ficaria para sempre gravada em sua memória. O vendaval saiu levando tudo, derrubando panelas, copos e fazendo bater portas e janelas. Até que o telhado da casa de taipa em que morava com os pais e mais sete irmãos foi arrancado pela ventania. Feita de madeira e palha, a cobertura do casebre não suportou e saiu voando pelo céu escuro. A família Pimenta, que já era pobre e não tinha acesso a energia elétrica nem a água encanada, teve de passar alguns dias vivendo ao relento, até conseguir reconstruir o telhado.
O episódio marcou, como nenhum outro, a infância sofrida de Lourival. Ajudando o pai agricultor na roça, ele cresceu pensando em buscar algo melhor para sua vida. Adolescente, começou a ouvir relatos de gente da região que tinha deixado o sertão para tentar a sorte em São Paulo e havia se dado bem. Decidiu fazer o mesmo. Aos 22 anos, sem ter concluído o Ensino Fundamental, colocou algumas roupas e um par de sapatos numa sacola e subiu num pau-de-arara com destino à capital paulista. Foram 5 dias sacolejando por estradas esburacadas e empoeiradas pelo Brasil. “Foi a viagem mais longa e mais sofrida da minha vida”, afirmou Lourival. Valeu a pena.
R$ 6,5 MILHÕES – Hoje, quase cinco décadas depois, ele é dono da loja Dejelone, que tem três unidades no Brás – bairro comercial paulistano – e faturou R$ 6 milhões em 2023, com previsão de chegar a R$ 6,5 milhões este ano (alta de quase 10%). Até chegar a esse ponto, todavia, Lourival precisou ralar um bocado. A começar por sua viagem do Rio Grande do Norte para São Paulo. Não raro, o caminhão só parava para aqueles pobres coitados comerem e irem ao banheiro. Às vezes, passavam o dia todo sem tomar banho. Debaixo de muita poeira e calor, o cheiro dos viajantes não era das coisas mais agradáveis. Ainda mais confinados num caminhão coberto por uma lona de plástico preto. Ele chegava a apertar os olhos e levar as mãos ao nariz para abafar aquele cheiro insuportável.
Desembarcou na capital paulista em 1976 e danou-se a procurar emprego em tudo quanto era lugar. Conseguiu ser contratado na metalúrgica Cecil Langone, para ser ajudante-geral. A empresa ficava no Brás e ele fazia qualquer coisa que lhe mandassem. “Só pensava em ganhar meu salário e ter condições de pagar um aluguel e comer”. Durou pouco. Menos de um ano depois, já estava procurando trabalho novamente. Pegou uma vaga de operador de máquina numa fábrica da Antarctica. O nome do cargo era pomposo demais para a função. Basicamente, Lourival só precisava ver se a máquina estava colocando corretamente as tampas nas garrafas. “Se alguma tampinha não ficava bem encaixada, eu tirava a garrafa da esteira”. Dez meses mais tarde, foi demitido novamente.
E ficou nisso. Entrando e saindo de empregos. Até começar a trabalhar numa confecção. Era uma loja de fábrica. “Quando comecei a me relacionar com o público, como vendedor, eu entendi que aquele era o meu mundo”, disse. “Pensei: ‘Achei meu dom’. Tem gente que faz faculdade para ser médico, engenheiro, advogado. Eu sou vendedor”. Foi o primeiro emprego que ele teve e no qual sentia prazer. Seu maior orgulho era convencer um cliente de que tal peça era perfeita para ele. “Nunca tentei enganar um freguês. Quando eu dou alguma sugestão, é porque sinto, realmente, que a peça é perfeita para aquela pessoa”. Até hoje faz isso nas suas lojas.
SONHO – Era início dos anos 1980, e ele estava feliz com o trabalho. Sentia, no entanto, que poderia ir mais longe. Começou a alimentar o sonho de, um dia, ter sua própria loja de roupas. Para quem crescera no sertão do Rio Grande do Norte e chegara a São Paulo em cima de um pau de arara, aquela ideia ainda lhe parecia algo quase impossível. Não era. Em 1986, depois de ser demitido de mais um emprego, juntou o dinheiro da indenização às economias que vinha fazendo e montou sua loja. Ficava na rua Silva Teles, número 196, no Brás.
O espaço era miúdo, uns 12 metros quadrados. O suficiente para fazê-lo se sentir o homem mais feliz do mundo. Sem condições de alugar uma casa ou apartamento, morava ali mesmo, na loja. Àquela altura da vida, aos 33 anos, já era pai. Lúcia, sua primeira filha, estava com 2 anos – hoje, ela tem 40. Dava-lhe imensa alegria ver a menina correndo entre roupas, cabides e araras. As coisas começaram a dar certo. Seu talento para vendas não o desapontava. Coisa rara era alguma pessoa entrar na loja e sair sem levar ao menos uma camisa, calça ou saia. Os tempos de aperto financeiro eram coisa do passado.
Já se programava para alugar um espaço maior e montar outra loja. Para isso, usaria todo o dinheiro que conseguira juntar nos últimos anos e que, acreditava, estava seguro no banco, aplicado na caderneta de poupança. Não podia imaginar que um plano econômico do então presidente da República, Fernando Collor de Mello, congelaria o dinheiro da população que estava em renda fixa, conta corrente e poupança. Batizada de Plano Brasil Novo, a ação do Governo Federal, aplicada em 16 de março de 1990 – um dia após Collor assumir a Presidência –, soterrou os planos de Lourival. Com o povo passando pela mesma situação, as vendas despencaram. Foi obrigado a fechar a loja. Estava arrasado, triste, com medo do futuro.
Aos 37 anos, já tinha quatro filhos: além de Lúcia, haviam nascido Leandro, Luiz – ambos com menos de 5 anos – e Lauro, que acabara de nascer. Sua mulher, a maranhense Nely Pimental, 68 anos, dava-lhe forças e incentivo para não esmorecer. Muito religiosa, ela dizia que, com fé em Deus, nenhuma barreira é intransponível. Passavam dias e noites trabalhando, buscando novos caminhos e pedindo ao Criador que os ajudasse a sair daquela situação. Dois anos depois, Lourival estava de volta ao comércio. Em 1992, inaugurou sua nova loja, na mesma rua da anterior – Silva Teles –, num empreendimento que marcaria a história do Brás. O Shopping Box Silva Teles era o primeiro ponto comercial do bairro nesse formato.
RECOMEÇO – Havia 42 boxes, com 2,5 metros de largura por 2,5 m de profundidade cada (6,25 m²). Os lojistas mais abastados alugavam dois, três, até quatro daqueles cubículos. Lourival só tinha condições para ocupar um. Mas já era um recomeço. Seu box era o de número 21. Só um ano depois, em 1993, ele colocaria na fachada o nome que seria a marca da sua empresa. Quando parou para escolher um nome para o seu negócio, decidiu, ao lado da mulher, unir as duas primeiras letras de quatro palavras que considerava fundamentais para a sua vida: Deus, Jesus, Lourival e Nely. Nascia, assim, a Dejelone.
O talento para vendas, novamente, rendeu frutos. Até mais do que ele poderia imaginar. A loja não parava de crescer. Os clientes se multiplicavam de tal maneira, que Lourival se viu obrigado a alugar outro box do shopping. E mais um. E outro. Em 2010, a Dejelone já estava ocupando 28 espaços, dos 42 disponíveis no local. Ele arrancou as divisórias que havia entre os boxes e fez surgir a maior loja do shopping, com 175 m² de área. Era gente e entrando e saindo o dia todo. Roupas penduradas nas paredes, amontoadas em gôndolas, empilhadas em estantes. “Foi quando comecei a ganhar dinheiro de verdade”, afirmou Lourival.
Segundo ele, a loja chegava a faturar, em um mês, o equivalente ao que seria hoje R$ 400 mil. Os dias de míngua, definitivamente, haviam ficado para trás. Desde então, a empresa não parou de crescer. Atualmente, a Dejelone tem cerca de 30 funcionários e fabrica, por meio de uma oficina terceirizada, 40 mil peças por mês. Possui duas grifes próprias: Oksys e Lupepper, nome criado em homenagem à sua filha mais velha, Luciana Pimenta. Dos seus quatro filhos, dois trabalham na loja. Leandro, 40, cuida da parte administrativa da empresa, e Lauro, 34, gerencia o comercial e as redes sociais.
EXPANSÃO – Ótimo comunicador e no trato com as pessoas, Lauro é o que tem a personalidade mais próxima da de Lourival. “Sinto muito orgulho de poder trabalhar ao lado do meu pai”, disse o caçula. “Aprendo muito com ele”. Lauro é peça fundamental nos planos de expansão da Dejelone. Sempre demonstrou tino comercial para os negócios e deve herdar, ao lado de Leandro, o comando da empresa quando o pai se aposentar, o que não deve acontecer tão cedo. Lourival tem rotina intensa de trabalho. Todos os dias, ele abre a loja principal às 6h da manhã e só vai embora depois de encerrar o expediente, às 18h. E diz que quer seguir crescendo.
Em novembro do ano passado, a marca inaugurou sua terceira loja, num espaço de 125 m², também no Brás. Para o futuro, Lourival pretende comprar um prédio e alugar as salas a outros lojistas. “Mas sempre no Brás. Cresci aqui e não saio por nada”, afirmou. Além disso, há planos para inaugurar mais uma loja nos próximos dois anos. Até lá, segue sua vida tranquila e sem luxo. Com todos os filhos já casados, ele e a esposa moram numa casa de 400 m², no bairro do Tucuruvi. O lugar tem oito quartos – para receber os quatro filhos e os dois netos – e uma cozinha bem equipada, onde Lourival gosta de cozinhar seus pratos preferidos: feijoada, rabada e carne assada.
O dinheiro que ganha com sua empresa, ele gasta em padarias e supermercados. “Adoro comprar pães, bolos, verduras, legumes. Escolher tudo com calma”, disse o comerciante. “Trabalho para a minha família ser feliz e ter conforto. Mas sem exageros”. A garagem de Lourival reforça suas palavras. Até o ano passado, ele tinha um Palio 2015. De tanto os filhos insistirem para que trocasse por um carro melhor e mais novo, acabou comprando um Ônix zero quilômetro. Aos 70 anos, se diz realizado como vendedor, como homem e orgulhoso de ver o Brás se transformar num grande polo comercial da maior cidade do país. “Posso dizer que vi o Brás virar o Brás”. E o Brás viu o rapaz que deixou o sertão do Rio Grande do Norte em cima de um pau de arara virar um dos maiores comerciantes do bairro.
OS NÚMEROS DA DEJELONE
Faturamento (2023) | R$ 6 milhões |
Peças fabricadas por mês | 40 mil |
Quantidade de lojas | 3 |
Funcionários | 30 |
Marcas próprias | 2 |