SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um bebê pode valer o equivalente a dezenas de milhares de reais na Rússia. O governo de Vladimir Putin se dispôs, neste ano, a desembolsar 670 mil rublos (R$ 47,8 mil) para novas mães. A determinação ampliou uma política de 2007, que pagava mulheres pela gestação de um segundo filho. Hoje, quem tem uma segunda criança pode levar quase 900 mil rublos (R$ 64,3 mil).
Agora, governos locais dobram a aposta: em Oriol, estudantes -inclusive menores de idade- que tiverem filhos podem receber 100 mil rublos (R$ 7.100). A região de Kemerovo, na Sibéria, também aderiu à medida. Existem ainda iniciativas direcionadas às universitárias -em cerca de 40 regiões, elas também recebem por volta de 100 mil rublos por gestação.
Desde o início de 2025, pelo menos 27 regiões russas introduziram pagamentos únicos para estudantes universitárias grávidas e até mesmo jovens em idade escolar. A ideia por trás dessas medidas é reverter a queda das taxas de fertilidade no país, que em abril chegaram ao nível mais baixo dos últimos 200 anos, segundo o jornal The Moscow Times.
De acordo com Giovana Branco, doutoranda em ciência política na USP e especialista em Rússia, o país sofre com a redução da força de trabalho, como outros vizinhos desenvolvidos, mas tem desafios específicos devido à baixa densidade populacional e ao pouco investimento para atrair imigrantes.
“Em um país com grande histórico de participação militar em conflitos, a Rússia necessita de uma massa de reserva militar constante para garantir a segurança nacional, ponto que também demonstra a centralidade da natalidade para os governos russos daqui em diante”, afirma Branco.
O demógrafo Sergei Zakharov, da HSE University, em Moscou, conta que a Rússia passou por duas grandes transições de fertilidade. A primeira, no final do século 19, quando as famílias deixaram de ter de cinco a sete filhos para ter dois. A outra transição, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi a queda para um ou nenhum filho por casal.
As taxas de mortalidade superam as de natalidade desde 2016. Antes disso, o país enfrentou outra crise do tipo de 1992 a 2012, período marcado pela instabilidade política e econômica que veio com o fim da União Soviética.
De 1990 a 1999, os nascimentos caíram de 2 milhões ao ano para 1,2 milhão. Os anos 2000 foram marcados pelas políticas de incentivo à maternidade, incluindo pagamento para mulheres terem o segundo filho.
Pareceu ter funcionado. Em 2014, o país quase chegou aos 2 milhões de nascimentos dos anos 1990. Mas os incentivos não foram suficientes para que as taxas de natalidade melhorassem. Dois anos depois o declínio demográfico voltou.
Em 2022, Putin restaurou uma política da era soviética para premiar mães de mais de dez filhos. A honraria, traduzida como mãe heroica, inclui uma quantia de 1 milhão de rublos (R$ 71,4 mil) quando o décimo filho faz um ano de idade.
No ano seguinte, a taxa de fertilidade no país estava pouco acima de 1,4 filho por mulher, bem abaixo dos 2,1 considerados necessários para a manutenção do crescimento populacional.
Em 2024, a taxa de mortalidade também foi maior do que a de natalidade. A Guerra da Ucrânia e a instabilidade econômica são apontadas como responsáveis por esses números.
Mas os prêmios e as honras não são as únicas políticas adotadas pelo governo russo. Restrições também fazem parte desse pacote, caso da proibição da divulgação de “estilos de vida sem filhos”. Conforme uma lei de novembro de 2024, quem fizer esse tipo de divulgação pode receber multas de até 5 milhões de rublos (R$ 357 mil).
“A maternidade como realização pessoal das mulheres é reforçada pelas políticas do Estado, que buscam valorizar a heteronormatividade e a família tradicional como valores”, afirma Giovana Branco. Em contraponto, a comunidade LGBTQIA+ é vista como inimiga e é constantemente perseguida. O casamento homoafetivo foi proibido em 2020.
Putin costuma enfatizar a importância de as famílias terem ao menos três filhos -e de começarem cedo; aos 30 anos já seria tarde demais para ele. O líder russo também já defendeu a ideia de usar o intervalo de almoço no trabalho para fazer sexo e procriar. O ministro da Saúde, Mikhail Murashko, disse em 2023 que mulheres deveriam priorizar gestações em vez de desenvolver suas carreiras.
De acordo com a especialista em Rússia, esse tipo de discurso ganhou corpo em 2012 com uma aproximação do Kremlin com o conservadorismo religioso. O tema ecoa também em movimentos locais e dentro da Duma -a Câmara Legislativa russa- que querem reduzir o acesso ao aborto.
A antiga União Soviética foi um dos primeiros a legalizar o procedimento, em 1920. Em 1936, o Estado voltou a proibir o aborto, num esforço para melhorar as taxas de natalidade, mas recuou em 1954.
De acordo com o pesquisador Camilo Domingues, do Laboratório de Estudos da Ásia da USP, é interessante que o procedimento de interrupção da gravidez esteja “no centro dessa questão”.
“Apesar de não ter nenhum dado que confirme que a regulação do aborto interfira de maneira importante na taxa de natalidade, o governo russo historicamente culpabiliza o aborto pela queda nas taxas [de nascimento]”, disse.