São Paulo comemora nesta semana o Dia do Grafite, arte em que a cidade é referência global
Trabalho de Rui Amaral no Buraco da Paulista com seu tradicional personagem, o bicudo amarelo
Mais de quatro décadas de história. Grafite paulistano é um caleidoscópio de arte, ideologia e casos de polícia
Mubarac, professor da USP, diz que “o Centro tem um papel transgressor na arte urbana brasileira”
Por Edson Rossi e Anna Scudeller
[AGÊNCIA DC NEWS]. Na próxima quinta-feira (27) se comemora em São Paulo o Dia do Grafite, arte em que a cidade é referência global. Mas não foi uma jornada fácil. Se desse para reduzir a história do grafite no tempo e no espaço, em quatro atos teríamos algo como: 1) Grécia e Roma da antiguidade; 2) Filadélfia e Nova York no começo dos anos 70; 3) Grandes cidades europeias desde os anos 2000; 4) São Paulo das últimas quatro décadas. Esse resumo radical não estaria longe da verdade. Mesmo assim, não haveria consenso. Isso porque poucas formas de manifestação pública são tão controversas. Já foi crime. É arte. Nos dois casos, quando se trata de grafite – ou graffiti –, São Paulo ocupa o topo. “É uma forma de expressão baseada na transgressão, tanto em discurso quanto em suporte [a rua, o muro, o vagão]. Algo está sendo contestado, e o espaço faz parte disso”, disse Rui Amaral.
Será preciso apresentar Amaral. Uma das múltiplas maneiras para fazer isso é o começo de uma notícia publicada pela Folha de S. Paulo em 10 de dezembro de 1987: “Os grafiteiros Rui Amaral, 26, e John Howard, 49, ficaram detidos por cerca de uma hora na triagem do 4º DP (Consolação). Eles foram abordados por policiais militares quando tentavam pintar uma das paredes do Buraco da Paulista”, a passagem subterrânea entre a avenida, a Rebouças e a Doutor Arnaldo. À época, grafitar pela cidade era restrito a pouquíssimos lugares. O Buraco era um deles. Ainda assim, funcionários da prefeitura cobriam de branco os grafites e Amaral e Howard tentavam convencê-los de que o espaço permitia a manifestação. Chegou a PM, não houve acordo, e ambos foram para a delegacia sob a acusação de “dano ao patrimônio público”. Segundo a reportagem da Folha, “o delegado Everardo Tanganelli soube, através da Administração Regional da Lapa, que o grafite é permitido”. Nem dá para culpar o delegado. Fazia pouco tempo que um acordo havia sido feito (quatro meses antes) entre prefeitura e grafiteiros demarcando os poucos espaços permitidos.
Hoje, São Paulo é mundialmente reconhecida pela sua street art. E por seus grafiteiros. De crime & castigo ao topo. Essa é a história do grafite por aqui. Um caso em que a arte vira ideologia, que vira caso de polícia, que vira referência global. Não há como entender essa jornada sem compreender o começo de tudo, época em o país trafegava da ditadura para uma democracia incipiente. Também por essas Amaral, 64 anos, é nome obrigatório. Artista e professor, está nos primórdios do grafite paulistano. Ele, o americano Howard citado na notícia da Folha, mais Maurício Villaça, Alex Vallauri… elencar nomes sempre será injusto porque a lista excluirá muitos. Nesse time, Vallauri é outro indefectível. Artista plástico que morreu em 1987, aos 37 anos, é o motivo pelo qual a data de sua morte (27 de março) é oficialmente o Dia do Grafite em São Paulo. Etíope de origem italiana, ficou famoso por usar estêncil na base de seus trabalhos e espalhar pela cidade mulheres de botas pretas de cano longo e imagens de frango assado, ou telefones de mesa. Chegou a expor na Bienal de Arte de São Paulo de 1985 – a instalação A Casa da Rainha do Frango Assado – e já grafitava pela cidade desde 1978.
À esq: Vallauri. À dir: Amaral e Howard, deixando o DP da Consolação após detenção (Folhapress e Fernando Santos/Folhapress)
SP-NY – Vallauri, na mão inversa ao senso comum, levou seus trabalhos de São Paulo para Nova York ainda nos anos 80. E grafitou muito por lá. Em 2013, o Museu de Arte Moderna (MAM) paulistano realizou a exposição Alex Vallauri – São Paulo e Nova York, que teve curadoria de João Spinelli. Ao apresentar o artista e a mostra, Spinelli destacou o que movia esse grafiteiro pioneiro. “Ele percebeu que a obra de arte só poderia ser realmente entendida se o autor se preocupasse também com as pessoas [comuns]”, escreveu Spinelli. Para isso, o melhor ponto de contato seria o espaço urbano – a rua. Vallauri deixou as quatro paredes de seu ateliê e passou, como brilhantemente definiu Spinelli, a “estampar à surdina nos muros e paredes da cidade”.
O artista criou signos únicos – as mulheres de vestido justo de oncinha, botas pretas de cano longo e salto fino, frangos, telefones, e um universo de ícones que todo paulistano com mais de 15 anos à época reconhecia. “Signos amados pela multidão anônima que diariamente passava por aqueles lugares.” Para Spinelli, Vallauri foi um audacioso artista que almejava somente a comunicação e a fruição estética. “Apenas arte.” Por meio da qual o humor, a ironia, a crítica e o prazer de viver “eram magistralmente transmitidos para a população.” O lado transgressor de Vallauri, e no fim dos anos 1970 e começo dos anos 80 ainda fora da lei, foi mais facilmente aceito em Nova York. “Por serem diferenciados, seus grafites coloridos e diversificados foram instalados em pontos incomuns da cidade – SoHo, Greenwich Village e até na Broadway.”
A Gata do Soutien de Bolinhas Correu ao Telefone, de Vallauri (1983) (Reprodução Autoria Desconhecida/Enciclopédia Itáu Cultural)
NOVA GERAÇÃO – De certa maneira, esses elementos (o uso da cor, o humor, a ironia, a crítica) citados por Spinelli – e até mesmo um certo clima burlesco – marcam nosso grafite. Segundo Baixo Ribeiro, artista gráfico e criador da galeria Choque Cultural, a diferença entre artistas locais e os de fora é uma certa ausência de regramento entre os brasileiros. No grafite dos americanos a base estava em desenhos com letras intrincadas e coloridas. “Era quase regra e ninguém saía fora disso”, afirmou Ribeiro. “Já os brasileiros não tinham esse regramento, eram mais autorais.” Uma liberdade criativa que marca também a geração seguinte à de Vallauri-Villaça-Rui Amaral… “Eles [os novos] estavam querendo inventar seus próprios recursos gráficos e jeito de fazer. Isso deu para a nova geração uma identidade própria”, afirmou Baixo Ribeiro. Artistas como Otávio Pandolfo e Gustavo Pandolfo (osgemeos), Nina Pandolfo, Mag Magrela, Speto, Zezão (com seus trabalhos nas galerias pluviais e de esgoto da cidade)… Novamente: elencar nomes sempre será injusto porque a lista excluirá muitos.
Nesse time todo, osgemeos estão entre os mais aclamados. Numa distante entrevista de 2013 a um canal de arte no YouTube, Rui Amaral já tratava desse estágio. “São craques, reconhecidos internacionalmente.” A dupla Otávio-Gustavo Pandolfo, aliás, acabou de ganhar nos Estados Unidos uma mostra pelos 50 anos de idade. Intitulada Osgemeos Endeless Story, ela acontecerá até agosto deste ano no Hirshhorn, museu em Washington (EUA). São cerca de 1 mil itens entre obras de arte, fotografias e muita memória – como desenhos feitos na infância. Em entrevista ao jornal O Globo, Otávio afirmou sobre a importância desse material. “Pegamos aqueles desenhos feitos aos 4, 6 ou 10 anos e, sem a gente saber, tem coisa ali que é igual ao que fazemos hoje”, afirmou.
Mostra de trabalhos de osgemeos em exibição no Hirshhorn, em Washington (EUA) (Divulgação)
Por mais que o grafite tenha caído no gosto do público comum e de certa maneira ter sido incorporado ao mainstream, seu DNA nunca mudará. Desde a primeira geração brasileira, fruto de efervescência política, artística e social até os mais recentes. Como afirma Baixo Ribeiro, da Choque Cultural, “trata-se da descoberta da rua para a manifestação”. Rui Amaral também destaca o papel de ocupação de território. “A galera precisa sair dos ateliês, ir para a rua.” Amaral, cujo personagem ícone espalhado por São Paulo é um ser amarelo bicudo e sorridente, começou a grafitar os primórdios do que veio a ser o Beco do Batman, na Vila Madalena, junto do grupo criado por ele, o Tupynãodá, e de nomes como John Howard.
O AMERICANO – Howard, aliás, merece espaço à parte. Nascido em Detroit, chegou a se formar em engenharia para agradar o pai. Sua alma hippie e a veia artística o fizeram chegar ao Brasil nos anos 60 e de forma improvável acabou na cidade de Araçatuba (SP). Ali conheceu sua mulher, Marinez, com quem teve quatro filhos. Voltou aos Estados Unidos com a família brasileira, retornou aos trópicos, e grafitava nas vizinhanças de lugares por onde morou: Zona Sul de São Paulo, São Bernardo, no ABC Paulista… Essas primeiras pinceladas, em postes, ocorreram nos anos 1970, segundo reportagem da revista Piauí assinada por Lia Hama. “Mas foi na década seguinte que o artista assumiu a vanguarda do movimento de grafiteiros de São Paulo com o propósito de levar arte para todos”.
Howard particularmente se incomodava em ver o grafite criminalizado e a propaganda eleitoral da época, com nome e número dos candidatos, ocupar impunemente os muros da cidade. E passou a fazer intervenções sobre esse material dos políticos. Mas não apenas. E assim como o frango assado de Vallauri, o bicudo amarelo de Amaral, Howard também teve seu grafite emblemático: cabeças gigantescas com olhos e lábios desproporcionais. Ele as batizou de ‘cabeças feitas’. O motivo? Cannabis. Segundo a reportagem da Piauí, nas andanças de John pela Vila Madalena, as pessoas o convidavam: ‘Hey, John, vamos fazer a cabeça?’ Howard morreu no ano passado, aos 85 anos.
MURAIS – A ocupação do espaço público não só tornou o grafite popular, mas igualmente ecumênico. Marcelo Ruggi, conhecido como Tché, fala dessa convivência que inclui o mundo da música, por exemplo, e mesmo em diferentes países. “É uma comunidade super-receptiva”, disse. “Quem usa a rua como suporte acaba tendo uma conexão com outros artistas e de outros lugares. Posso ir para Alemanha, encontrar grafiteiros e outros artistas lá. E vai ser igual.” Tché, por mais que não peça autorização quando começa seus trabalhos – segundo ele, costuma receber aval do proprietário do imóvel ou muro a partir da metade do processo – não se considera grafiteiro. Prefere o termo muralista. E as fachadas de prédios são seu principal foco de atuação.
No universo do mural, um nome equivalente ao de osgemeos, em termos de popularidade, inclusive internacional, é do paulistano Eduardo Kobra. Nascido em 1975, na periferia sul da cidade, ganhou destaque a partir de 2007, por causa do projeto Muro das Memórias, em que mergulhava no universo das fotos antigas de São Paulo. Passou a reproduzi-las nas ruas, em tons de sépia ou em preto e branco. Segundo ele define em seu site, “um estilo de grafite diverso daquele que se espalhava pela cidade”. O artista é filho de dois elementos muito comuns no mundo dos grafiteiros: o hip hop e o picho. A relação da comunidade da street art é forte com o universo hip hop. Kobra, que tem obras em todos os continentes, afirma que esse estilo musical está na essência do que há de mais marcante em seus trabalhos, que são as imagens hiper-realistas. Já a pichação é a porta de entrada para levas e levas de grafiteiros.
Kobra e seu característico trabalho mural hiper-realista (Divulgação)
GRAFITE, MURAL E PICHO – Por isso falar de picho sempre traz mais do que a questão semântica à discussão. Para a maioria, é preciso separar grafite de mural e ambos da pichação. Grosso modo, grafites são pinturas (e outras variáveis de desenho) feitas de forma não autorizada em espaços públicos. O mural seria o grafite autorizado, ou feito por encomenda, normalmente em grandes dimensões. Esse conceito une de Tché a Rui Amaral. Em 2013 Amaral já citava o termo pós-grafite para falar dos trabalhos legalizados, os murais. Já a pichação anda em outro campo. Segundo o site grafiteiro.art, do grafiteiro Raphê, a diferença entre grafite e pichação vai além da estética. “Ela envolve questões de intenção, técnica, legalidade e percepção social. O grafite é amplamente aceito e até celebrado como arte urbana, enquanto a pichação é frequentemente vista como ato de vandalismo.” Mesmo essa distinção, porém, não encontrará consenso. Baixo Ribeiro, da Choque Cultural, diz que essa divisão é algo típico só daqui. “Separar picho e grafite como coisas diferentes é algo do Brasil. No exterior, é tudo grafite e ponto.”
O professor Cláudio Mubarac, do departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP, diz que colocar essas manifestações artísticas em categorias é uma tentativa de domesticar o que é bom e ruim. Segundo ele, pessoas que não estão muito ligadas ao assunto fazem esse tipo de distinção. “Grafite é bonito, é arte; picho é porcaria, coisa de vagabundo.” Mubarac afirma que na pichação você pode ter um certo ‘malfeito’, mas isso é a potência dela. “Quando se começa a domesticar para virar ‘arte’, é feito um movimento que não sei se é totalmente saudável. Ou se é a forma punitivista de pensamento que denomina o nosso modo de construir a sociedade”, disse.
Nesse tema, Baixo Ribeiro afirma que é o picho é uma forma de expressão que não se pretende bonita. “É muitas vezes agressiva, contrária aos bons costumes. Ela quer ser um grito, mas não deixa de ser arte”, afirmou. Se a discussão ficar restrita ao campo da arte, o debate estará quase resolvido. Mas nunca a estética será apenas a única abordagem da equação. O ponto que costuma ficar de fora e não se aborda é: normalmente o grafite invade o espaço público, enquanto normalmente a pichação invade o espaço privado. Algo entre ocupar o Buraco da Paulista ou a parede da sua casa. Não se trata de juízo de valor, mas de uma discussão que sempre será complexa.
GRAFITE x PREFEITOS – Complexa e inescápavel: todo debate é sempre ideológico. E no caso de São Paulo, isso se reflete na aceitação ou não pelo poder público. Rui Amaral já teve vários trabalhos cobertos entre uma eleição municipal e outra. Quando ele e John Howard foram detidos, em 1987, o governo era de Jânio Quadros e havia um acordo para grafitar em lugares muito específicos – o Buraco da Paulista era um deles. O tema foi oficializado na gestão seguinte, de Luiza Erundina, que em 1991 legalizou o grafite, mas nesses mesmos raros espaços. A próxima gestão, de Paulo Maluf, apagou tudo. O vazio permaneceu com Celso Pitta. Os grafiteiros voltaram a ter diálogo com a prefeitura no mandato de Marta Suplicy (2001-2004). O tema permaneceu em bons modos até a gestão João Doria (2017-2018), que pintou de cinza a maioria dos grafites na avenida 23 de Maio. Essa gangorra direita-esquerda na prefeitura paulistana deixa o grafite ainda mais efêmero.
Numa tentativa de encontrar ponto de equilíbrio, a prefeitura lançou em 2017 o Museu de Arte de Rua (MAR). O projeto da Secretaria Municipal de Cultura visa, segundo o site oficial, “aprimorar a vocação da cidade para a produção de arte urbana” e consolidar seu impacto positivo na cultura e identidade de São Paulo. As obras contemplam diferentes artistas e suportes, como grafite, estêncil, colagem e lambe-lambe, todos em grandes dimensões. O MAR realiza concursos públicos para a seleção de projetos de arte urbana nas categorias Solo (muros) e Altura (prédios), em que podem se inscrever artistas de todo o país, desde que as intervenções sejam realizadas em São Paulo. Para o muralista Tché, o modelo não é inclusivo o bastante. “Você precisa alcançar uma pontuação para participar e são poucas vagas para o tanto de artista que tem por aí”, disse.
Rui Amaral, que esteve envolvido nas primeiras discussões com a secretaria, disse que cortaram quase tudo da proposta original. “O que ficou igual foi a grana.” Numa das propostas excluídas, segundo ele, estava a promoção de atividades nas periferias. O tema é decisivo. Inúmeros projetos e coletivos trabalham o grafite na periferia. Mas dificilmente o epicentro do movimento deixará de estar nos bairros da região central. O professor Mubarac, da USP, diz que mesmo que cada país, região ou cidade tenha suas propostas específicas e necessidades distintas na construção da arte de rua, a identidade cosmopolita do Centro permite o nascimento de um espaço democrático entre os artistas e suas mais diferentes pautas. “Sem dúvida, o Centro tem um papel transgressor na arte urbana brasileira”, afirmou Mubarac. O fato é que falar de grafite é falar de arte como ideologia em seu extremo. E não haverá maneira de ser diferente. Como definiu Rui Amaral, “uma forma de expressão baseada na transgressão.” E que assim seja. São Paulo soube absorver o debate. E sai dele gigante.