SÉRIE-Indústria Automobilística [1]. Ricardo Gondo, presidente da Renault: "País precisa de estabilidade"
"A taxa de desemprego, abaixo de 7%, estava criando uma expectativa positiva entre os consumidores, mas índice de confiança está caindo"
"Estamos encerrando em 2025 um ciclo de investimentos de R$ 5,1 bilhões e trabalhando agora com os acionistas na França para definir o próximo ciclo"
Por Bruna Lencioni e Cleide Silva
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[AGÊNCIA DC NEWS]. Na próxima quinta-feira (15), a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) fará aniversário. Fundada em 1956, caminha para sua sétima década de vida. A entidade representa um setor que é literalmente o motor da economia de qualquer país. Nesse clube, o Brasil se situa entre os dez maiores players. A estimativa é que no mercado nacional a produção total de veículos (automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus) alcance este ano entre 2,7 milhões e 2,8 milhões de unidades, 7,8% acima de 2024. Até abril (dados divulgados nesta quarta-feira, 8), a produção já soma 811 mil unidades, 6,7% a mais em relação ao mesmo período do ano passado. São 110 mil empregos diretos. Além disso, uma indústria automobilística saudável significa uma ponta comercial e de serviços igualmente saudável, que vai das redes de concessionárias ao mercado de seguros.
Para tratar desse segmento tão importante e estratégico a qualquer país, a Agência de Notícias DC NEWS, da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), inicia hoje uma série de reportagens e entrevistas exclusivas com as principais lideranças do setor automobilístico. Conduzida pela jornalista Cleide Silva – que tem experiência de 40 anos na cobertura econômica e é uma das maiores especialistas no Brasil sobre o universo automotivo –, a série começa com a entrevista de Ricardo Gondo, presidente da Renault do Brasil. A empresa conclui este ano o plano de investimentos de R$ 5,1 bilhões iniciado em 2021, boa parte destinado a novos modelos, como o primeiro híbrido flex de produção local, o SUV Boreal, que será lançado este ano.
O grupo francês vai anunciar nos próximos meses mais um ciclo de investimentos para o desenvolvimento e produção de novos veículos na fábrica de São José dos Pinhais (PR). A tendência é de ampliação da linha de híbridos flex. Embora o pacote de preocupações macroeconômicas e geopolíticas seja extenso – os juros altos, que podem prejudicar as vendas; as medidas tarifárias anunciadas pelo presidente Donald Trump, que geram instabilidades globais; e a importação crescente de veículos chineses –, Gondo aposta no crescimento da demanda por automóveis no país. Para isso, segundo ele, o país precisa de estabilidade nas questões econômicas “para criar um ambiente favorável para se fazer negócios no Brasil”, e isso é papel do governo. Confira a entrevista a seguir e também em vídeo.
AGÊNCIA DC NEWS – Que balanço é possível fazer sobre o ano de 2024? RICARDO GONDO – O ano de 2024 teve crescimento no mercado brasileiro com cerca de 2,5 milhões de carros comercializados. Para a Renault, foi um ano superimportante. Lançamos o primeiro carro da nova fase do plano estratégico de renovação da nossa gama. Lançamos o Kardian, um SUV compacto feito em uma nova plataforma, com novo motor e que traz muita tecnologia. É uma plataforma muito moderna, fruto de um investimento de R$ 2 bilhões.
AGÊNCIA DC NEWS – Quanto a empresa cresceu e qual é o alvo para 2025? RICARDO GONDO – Terminamos o ano com participação de mercado em torno de 6%. Sabemos que o Brasil tem demanda para veículos novos, por isso esperamos novo crescimento de 5% do mercado total em 2025 e nós devemos acompanhar esse crescimento.
AGÊNCIA DC NEWS – Como os juros altos afetam o mercado? RICARDO GONDO – O aumento da taxa Selic faz com que o custo do financiamento do veículo fique maior e isso pode impactar o tamanho do mercado no Brasil. Voltando ao período pré-pandemia, até 2019, historicamente o mercado brasileiro tinha 70% das vendas financiadas e 30% à vista ou via consórcio. Durante a crise de 2020 a 2023, isso foi invertido. A maioria dos clientes passou a comprar à vista e só 30% era financiado. A partir do final de 2023 e em 2024 começou a mudar de novo.
AGÊNCIA DC NEWS – O que a Renault pretende fazer para continuar atraindo o cliente que só pode comprar no crediário? RICARDO GONDO – No caso da Renault, 60% das vendas têm financiamento. Mas é claro que juro alto é motivo de preocupação pois é uma das barreiras ao crescimento do mercado. Na Renault temos um banco, o Mobilize Financial Services, focado não só em financiamento, mas também na oferta de outros serviços e na busca de novas formas de oferecer mobilidade. Por exemplo, há alguns anos lançamos o sistema de aluguel de veículos, chamado de Renault On Demand. O cliente que não quer financiar um carro por longo prazo pode fazer a locação. Ele escolhe o valor do aluguel a pagar e o prazo do contrato, de 12 a 36 meses.
AGÊNCIA DC NEWS – Como o senhor avalia a situação macroeconômica e geopolítica? RICARDO GONDO – A taxa Selic é uma grande preocupação, pois os juros para o cliente final já estão em 29,5%. E só vai piorar, embora seja para controlar a inflação. A taxa de desemprego, abaixo de 7%, estava criando uma expectativa positiva entre os consumidores, mas nos últimos meses o índice de confiança está caindo. Outro ponto é o câmbio, que impacta em temas internos e externos e, junto disso, as medidas vindas dos Estados Unidos. Toda essa volatilidade impacta diretamente nossas contas e nossos projetos.
AGÊNCIA DC NEWS – O que é preciso fazer para reduzir essa volatilidade? RICARDO GONDO – O importante é aumentar o índice de confiança do consumidor para que ele possa comprar seu automóvel. Do nosso lado, temos alavancas comerciais como bônus e taxa de financiamento atrativa, como a de 0,99% ao mês ou taxa zero subsidiada por nós.
AGÊNCIA DC NEWS – E o governo, o que pode fazer? RICARDO GONDO – Seu papel é trabalhar para dar uma certa estabilidade nesses indicadores e nas condições para criar um ambiente favorável para se fazer negócios no Brasil.
AGÊNCIA DC NEWS – Qual é o maior mercado da Renault na América Latina? RICARDO GONDO – Historicamente é o brasileiro. Globalmente, somos o segundo maior em vendas para a marca Renault, depois da França. Nosso principal mercado exportador sempre foi a Argentina, porém, com o contexto econômico do país, nos últimos anos isso mudou. Passamos a exportar muito para México, Colômbia, Equador e Uruguai. Mas, desde o fim do ano passado, a Argentina voltou a importar bastante. Voltamos a enviar os modelos Kwid, Kardian e o furgão Master e o país voltou a ter um peso importante nas nossas exportações.
AGÊNCIA DC NEWS – O fator Milei tem sido positivo do ponto de vista econômico e comercial? RICARDO GONDO – Creio que sim. O mercado de automóveis na Argentina está crescendo. Acho que em relação a 2024 é preciso separar o primeiro semestre do segundo, que teve crescimento forte. A expectativa para 2025 é um mercado interno [argentino] também em crescimento.
AGÊNCIA DC NEWS – Como o senhor avalia a entrada forte dos carros chineses no Brasil? RICARDO GONDO – A indústria automobilística brasileira está acostumada com a chegada de novos competidores, como os chineses ou marcas de outros mercados. No passado chegaram fabricantes europeus, americanos, japoneses e coreanos a vários países. No Brasil ocorreu o mesmo e havia aqui outros fabricantes que estavam instalados havia muitos anos. A partir de 1998 tivemos também a chegada do que chamamos de newcomers, inclusive a Renault iniciou a produção local naquele ano. Depois teve mais uma onda de novas marcas chegando para produzir no Brasil. Isso faz parte do mercado. A competição de novas marcas com produção local é sempre saudável e não importa a origem, desde que venham em igualdade de condições.
AGÊNCIA DC NEWS – Há essa igualdade no Brasil? RICARDO GONDO – Quando olhamos o que aconteceu no mundo nos últimos meses, vemos que vários mercados estão buscando entender a chegada desses fabricantes [chineses]. Os Estados Unidos, mesmo antes da volta do novo governo Trump, aumentaram o imposto para a importação de veículos elétricos para 100%. O Canadá aumentou para 106%. No ano passado, a Europa aumentou o imposto para os importados entre 35% e 50%. O governo brasileiro decidiu retomar gradualmente, até 2026, a taxa de 35% de Imposto de Importação para veículos elétricos, que estava zerado. Mas o que consideramos mais equilibrado é voltar rapidamente ao imposto integral, que é a regra que sempre existiu no mercado brasileiro.
AGÊNCIA DC NEWS – Há uma demanda junto ao governo por parte da Anfavea, que reúne as montadoras instaladas no país há mais tempo, para antecipar a cobrança dessa tarifa, hoje em 18% para os elétricos e um pouco menos para os híbridos. A entidade também estuda entrar com processo antidumping contra as chinesas. O senhor concorda com essas ações? RICARDO GONDO – Sim. A Renault, como fabricante no Brasil há mais de 25 anos e filiada à Anfavea, tem posição conjunta, como as demais empresas, sobre esse tema.
AGÊNCIA DC NEWS – Até agora a competição foi com carros chineses, que chegaram com preços competitivos. Neste ano, duas marcas começarão a produzir no Brasil. Isso altera a estratégia de vocês no mercado brasileiro? RICARDO GONDO – Nosso plano estratégico não muda. Este ano estamos concluindo o último ciclo do investimento de R$ 5,1 bilhões (entre 2021 e 2025), que incluiu a nova plataforma que deu origem ao Kardian e um novo motor. Continuamos trabalhando para lançar, no final do ano, um SUV médio (o Boreal). Além disso, mantemos nossa estratégia de seguir forte nos segmentos em que já temos boas vendas, como o do Kwid, que é um carro de entrada. Também continuamos fortes no segmento de comerciais leves. Produzimos o Master, que há 12 anos consecutivos é líder do segmento de furgões.
AGÊNCIA DC NEWS – O plano de R$ 5,1 bilhões termina neste ano. Quando será anunciado o novo ciclo para projetos a partir de 2026? RICARDO GONDO – Estamos trabalhando agora com nossos acionistas na França nesse próximo ciclo de investimentos e preparamos o anúncio para os próximos meses.
AGÊNCIA DC NEWS – A empresa anunciou recentemente parceria com a montadora chinesa Geely para distribuição de veículos da marca e futuramente produção. É uma estratégia para se proteger da concorrência que vem da China? RICARDO GONDO – A Renault tem uma parceria com a Geely em outros negócios. Em 2024, criamos uma empresa global que se chama Horse, onde colocamos todas as atividades de motores a combustão, híbridos e caixas de câmbio da Renault junto das fábricas da Geely dessas atividades. Essa empresa tem 45% de participação da Renault, 45% da Geely e 10% da Aramco, empresa petrolífera da Arábia Saudita. Também temos uma parceria estratégica na Coreia do Sul, onde a Geely adquiriu participação na Renault local. Lá, produzimos um carro para a Renault em uma plataforma da Geely, e isso está dando bons resultados. Aqui fizemos acordo para o mercado brasileiro.
AGÊNCIA DC NEWS – O que ele prevê? RICARDO GONDO – Prevê o acesso da Geely à nossa fábrica, para produzir veículos de baixa emissão, e acesso à nossa rede de distribuição. Mas o acordo ainda depende da formalização dos órgãos regulatórios nos dois países.
AGÊNCIA DC NEWS – Isso não vai canibalizar o modelo de negócio da Renault? RICARDO GONDO – Não, vai permitir à Renault ter acesso a outros produtos.
AGÊNCIA DC NEWS – O Kwid se consolidou como um dos carros mais baratos no Brasil (R$ 77 mil). No passado, um popular custava R$ 20 mil a R$ 30 mil. O que aconteceu para ficarem tão caros? RICARDO GONDO – O Kwid é nosso carro-chefe em vendas, e o que chamamos de ‘carro de entrada’. É um carro mais acessível para o brasileiro e é bastante equipado do ponto de vista de segurança, tecnologia e conectividade. Acho que essa comparação talvez não seja justa pois o carro popular nasceu no início dos anos 90 e, desde então, houve enorme evolução do ponto de vista de segurança, conectividade e tecnologia. Os automóveis hoje utilizam motores supereficientes. No caso do Kwid, é um motor em alumínio, leve e eficiente. Ele emite 84 gramas de CO² por quilômetro, muito menos do que vários carros híbridos. E se você atualizar o preço de um carro daquela época em relação ao dólar e à inflação, vai ver que hoje é mais barato.
AGÊNCIA DC NEWS – No período de 2010 a 2014, a indústria automobilística teve vendas recordes acima de 3,5 milhões de veículos puxadas pelos populares. Eles representavam 70% das vendas. Hoje, os carros são mais caros e as vendas são bem menores. Ao vender menos veículos, porém mais caros, a indústria ganha mais dinheiro? RICARDO GONDO – Há vários temas nessa pergunta. Há uma mudança da demanda do consumidor brasileiro, que tem maior consciência da necessidade de segurança do veículo. Por exemplo, o Kwid hoje tem quatro airbags, freio ABS e sistema de partida em rampa. Também tem mais conectividade, item de conforto demandado pelo mercado. Tem outro tema que é o regulatório. Há uma legislação que determina mais segurança e mais eficiência, o que é superpositivo, mas há questões a serem avaliadas, pois há alguns itens [obrigatórios] que talvez não precisassem ser colocados nos carros de entrada e aí ele teria um preço mais competitivo.
AGÊNCIA DC NEWS – O que poderia ficar de fora, por exemplo? RICARDO GONDO – Há temas regulatórios relacionados ao motor, que não estão ligados a emissões de CO², mas a outros tipos de emissões que poderiam ser reduzidas com regulagens diferentes e o custo diminuiria para o consumidor.Se continuarmos colocando equipamentos, os carros vão ficar mais caros e o risco é termos um mercado que não cresça na velocidade esperada.
AGÊNCIA DC NEWS – O mercado brasileiro tem esse potencial? RICARDO GONDO – O mercado brasileiro tem potencial de crescimento. Um exemplo, quando olhamos a taxa de motorização, ou seja, quantos carros existem para cada 1 mil habitantes, ela ainda é baixa.
AGÊNCIA DC NEWS – Mas a tendência não é as pessoas comprarem menos carros e usarem mais aplicativos? RICARDO GONDO – Não, é o contrário. O tema do carro está muito ligado à infraestrutura: o Brasil tem infraestrutura disponível para a maior parte da população? A tendência dos moradores das grandes cidades é usar o transporte público ou mais aplicativos? Temos a questão da segurança e muitas pessoas preferem ter um carro para se locomover. Além do uso no dia a dia, elas querem carro para viajar, pois as distâncias no Brasil são enormes. Há pesquisas recentes indicando que em São Paulo, por exemplo, as pessoas preferem transporte individual do que o público por várias razões.
AGÊNCIA DC NEWS – Qual é a orientação da companhia para o Brasil nos próximos anos? RICARDO GONDO – Primeiro, quero reforçar que acreditamos no potencial do mercado brasileiro. Por isso continuamos investindo em novas tecnologias e novos produtos. Hoje, com um mercado de 2,5 milhões de veículos, estamos muito abaixo do seu potencial. Em 2025 e 2026 ainda teremos crescimentos menores, mas depois acreditamos que o mercado vai voltar a crescer mais fortemente e chegará novamente próximo dos 3,5 milhões de unidades.
AGÊNCIA DC NEWS – Um mercado que está se eletrificando… RICARDO GONDO – Desde o início, a gente sempre disse que, no Brasil, a transição energética vai ser feita primeiro com veículos híbridos flex e estamos investindo nessa tecnologia. Acreditamos nisso por uma simples razão: O Brasil tem etanol, que é bastante positivo para a redução das emissões de CO² em todo seu balanço energético. Enxergamos os veículos elétricos para o futuro.
AGÊNCIA DC NEWS – Certo atraso? RICARDO GONDO – Veja, por exemplo, o que ocorreu na Europa, que começou a vender veículos elétricos em 2012, 2013. Os países europeus deram muita ajuda para as pessoas trocarem os veículos a combustão por elétricos até 2023, 2024. Quando os subsídios começaram a ser retirados, os consumidores começaram a querer os híbridos. Então, mesmo na Europa é uma transição longa. A região tem o compromisso de vender só carros elétricos a partir de 2035 e, se der certo, serão mais de 20 anos de transição.
AGÊNCIA DC NEWS – Como vai ser a transição no Brasil até o elétrico? RICARDO GONDO – Vai ser longa também. Além de ser necessário baixar o custo da tecnologia para termos carros elétricos com preços acessíveis é preciso investir em infraestrutura, e o Brasil está longe disso.
AGÊNCIA DC NEWS – Esse movimento das montadoras, de criar produtos alternativos ao veículo a combustão, é natural do mercado ou foi acelerado pela chegada rápida e agressiva dos chineses? RICARDO GONDO – Isso já vinha ocorrendo porque, do ponto de vista regulatório, já existia o programa Rota 2030, que agora se chama Mover [que estabelece metas de emissões], e já estávamos trabalhando na oferta de veículos híbridos, híbridos leves e flex para atender a legislação.
AGÊNCIA DC NEWS – Quais novidades virão ainda este ano? RICARDO GONDO – O Kardian, lançado no ano passado e escolhido como carro do ano pelos jornalistas brasileiros, terá nova versão 2025/2026, com mais tecnologia e mais conectividade. E dois que não posso citar: um no final do ano que vai surpreender o mercado, porque tem o DNA da marca Renault do ponto de vista de design e de tecnologia, e outro que chegará em 2026.
Ricardo Gondo, presidente da Renault. (Andre Lessa / Agência DC News)