A Boca do Lixo passa pelo Bar Soberano. Reaberto há um ano, ele resgata o vibrante cinema paulistano

  • Na Boca do Lixo, na região central de São Paulo, bar foi durante décadas ponto de encontro do povo de cinema
  • Na mesma área onde eram produzidas dezenas de filmes por ano, agora acontecem exposições e projeções. Bar foi reaberto há um ano
Por Vitor Nuzzi

[AGÊNCIA DC NEWS]. Alguma madrugada de 1968, na rua do Triunfo, região da Luz, Centro de São Paulo. Algazarra, gritos. Alguém reclama, pergunta o que está acontecendo. Um jovem de 22 anos responde: “Estou fazendo um filme!”. O rapaz é Rogério Sganzerla (1946-2004). O futuro longa-metragem: O Bandido da Luz Vermelha, inspirado em história real e com Paulo Villaça (1933-1992) no papel do protagonista. Filme “totalmente rodado no bairro mais perigoso de São Paulo”, conforme anúncio da época. Àquela altura, toda a região próxima à Estação da Luz (ruas do Triunfo, Aurora, Vitória, Santa Ifigênia) já havia sido apelidada de Boca do Lixo. Ganhou essa alcunha dos policiais que atuavam por ali. Mas sua fama tem outra origem: durante décadas, principalmente entre as de 1960 e 1970, foi ponto de encontro de gente do cinema: distribuidores, montadores, produtores, atores, atrizes, iluminadores, cenógrafos.

Dali saíam dezenas de filmes todos os anos – policiais, dramas, de horror, até chegar às pornochanchadas dos anos 1970 e depois ao sexo explícito, na década seguinte. Durante muito tempo, os filmes eram distribuídos em pesadas latas com rolos, um universo muito distante da distribuição digital de hoje. Eram levadas em carroças até as estações ferroviárias próximas, a da Luz e a Júlio Prestes – daí a localização escolhida por produtoras e distribuidoras. Nesse ambiente nervoso, um bar e restaurante se destacou. O Soberano. Funcionou de 1961 a 1994 no 155 da rua do Triunfo. Administrado por Serafim Teixeira, filho de portugueses que depois abriu um lava-rápido em outro bairro. O bar tornou-se loja de produtos eletrônicos. Até 2024.

Há pouco mais de um ano, o Soberano reabriu. Como bar, museu e, sobretudo, reduto. “As pessoas nascem em algum lugar e têm história. E essa história faz parte da nossa cidade”, afirmou Renata Forato, comunicadora e produtora, à frente da reabertura do Soberano, concretizada em 15 de março de 2024. Ela é sócia, “no trabalho e na vida”, do cineasta Marcelo Colaiácovo. Ambos nasceram em 1982, quando a produção da Boca do Lixo começava a sucumbir. E a região era tragada pela degradação. Por isso, a combinação dos nomes da produtora de um (Resistência) e da empresa de outra (Levante) se mostra mais que oportuna para o desafio de pôr de pé o empreendimento – mistura de bar, espaço de eventos, cinema e museu. “Acho que o Soberano ainda tem essa vocação de bar de cinéfilos”, disse Renata. “As pessoas vêm aqui, e as histórias vão aparecendo.”

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CINEASTAS – Muitas histórias. Muita gente. Como Sganzerla, José Mojica Marins (1936-2020), o conhecido Zé do Caixão (com quem Marcelo trabalhou durante 16 anos), Sílvio de Abreu (sim, aquele das novelas), Anselmo Duarte (1920-2009), Dedé Santana (sim, um dos Trapalhões), Carlos Reinchenbach (1945-2012), Walter Hugo Khouri (1929-2003), entre tantos outros, circularam por ali. O escritor Marcos Rey, que faria 100 anos em 2025, fez vários roteiros para filmes rodados na Boca. E, como lembra o Soberano, chegou a dizer que, “entre 1970 e 1974, acabei sendo o roteirista de filmes mais solicitado no quarteirão do bar-restaurante Soberano.”

Esse time e essas histórias incluem Ozualdo Candeias (1922-2007), o caminhoneiro que virou diretor de cinema. E registrou, em curta-metragem e livro, a trajetória daquele set ao ar livre, com Uma Rua Chamada Triumpho. Alguns migraram para o cinema dito comercial. Muitos permaneceram rodando seus filmes de orçamento curto e conteúdos impróprios, segundo a Censura, ou futuros clássicos nacionais. “O melhor e o pior da cinematografia brasileira”, disse Marcelo em texto de apresentação para uma exposição, no Soberano, sobre o cinema de horror (Horror na Boca).

Os filmes eram populares – no estrito senso da palavra. “Eram realizados, muitas vezes, por pessoas não completamente letradas, de forma artesanal, voltados para um público amplo. Do povo para o povo.” No final do texto, Marcelo pede atenção: “Nosso horror tropical e a rica tradição cinematográfica do Centro Histórico de São Paulo transcendem o que entendemos por cinema; é a expressão de uma época na forma de um cinema terrivelmente polêmico, às vezes precário, e quase sempre maravilhoso”. De fato, distante do que se chama de cinema de arte ou do Cinema Novo, surgido nos mesmos anos 1960. Mas eram filmes que davam bilheteria.

HOJE – O atual Soberano, reerguido no mesmo local onde havia um balcão de 7 a 8 metros de extensão e salão nos fundos com uma dúzia de mesas, não serve mais refeições – o cardápio inclui empanadas e acepipes, além de bebidas. Parte do piso é original, de 1930, assim como a claraboia. Há cartazes e objetos – câmaras e projetores antigos – por todos os lados. No segundo e último andar, um espaço amplo é destinado à reserva técnica, com rolos de filmes e um telão. Parcerias com o Museu da Imagem e do Som (MIS) e com o Museu da Língua Portuguesa garantiram proteção acústica e a recuperação de material.

Boca do Lixo
O cineasta Marcelo e a produtora Renata: o Soberano retoma sua vocação
(Andre Lessa/Agência DC NEWS)

Renata e Marcelo também organizam atividades externas. Em 20 de março, por exemplo, o Soberano exibiu Limite, filmado em 1931 por Mário Peixoto (1908-1992), restaurado por outra parceira, a Cinemateca Brasileira. Renata se surpreendeu. “Duas horas de cinema, filme mudo, e a gente lotou o salão do Museu de Língua Portuguesa,” afirmou ela. A exibição fazia parte do projeto Luz na Tela, que incluiu ainda Xuxa Contra o Baixo Astral (1988, dirigido por Anna Penido), com 250 crianças na plateia. “A gente se deu conta que muitas estavam assistindo a um filme pela primeira vez.” É outro aspecto do projeto: a convivência com os moradores do chamado fluxo, que inclui os usuários da cracolândia. Apesar do receio, a propaganda boca a boca tem garantido público constante.

O bar cumpre um papel de resgate essencial. E traz com isso jornadas como a da Companhia Produtora e Distribuidora de Filmes Nacionais (Cinedistri), fundada em 1949 por Oswaldo Massaini (1919-1994). Na parte da produção, saiu de lá Pecado de Nina (1950), dirigido por Eurides Ramos (1906-1986), música do maestro Radamés Gnatali (1906-1988) e argumento de J.B. Tanko (1906-1993) – que depois ficaria conhecido por rodar filmes com o grupo Os Trapalhões. Pelo lado da distribuição, ela cuidou do clássico O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, vencedor do festival de Cannes, na França.

A lista traz produções emblemáticas e de amplo espectro estético do cinema brasileiro, como Noite Vazia (1964, dirigido por Walter Hugo Khouri, com Norma Bengell e Odete Lara), Corisco, o Diabo Loiro (1969, dirigido por Carlos Coimbra, com Maurício do Valle e Leila Diniz), Beto Rockfeller (1970, dirigido por Olivier Perroy, com Luiz Gustavo e Cleide Yaconis), Independência ou Morte (1972, dirigido por Carlos Coimbra, com Tarcísio Meira e Glória Menezes) e – já como sinal dos tempos – A Super Fêmea (1973, dirigido por Anibal Massaini Neto e estrelado pela novata Vera Fisher).

Boca do Lixo
Carroças carregadas com latas de rolos de filmes a caminho das estações de trem
(Reprodução/André Lessa/Agência DC News)

Um dos últimos distribuídos pela companhia foi Mulher Objeto (1982, dirigido por Silvio de Abreu, com Helena Ramos). Nesse mesmo ano, quando Marcelo e Renata nasceram, outro longa, este já com apoio da Embrafilme, denunciou mazelas da ditadura, que ainda não havia terminado. Pra Frente, Brasil (dirigido por Roberto Farias, com Reginaldo Faria e Natália do |Valle) custou o cargo de Celso Amorim, então diretor da empresa, que saiu do cinema para a diplomacia – ex-chanceler, é hoje assessor especial da Presidência da República.

CLÁSSICO – Essa longa e rica história da Boca do Lixo, de filmes que muitos ainda não viram, é o roteiro central do Soberano. O exemplo mais recente foi a exibição no dia 5 de abril, em parceria com a Vitrine Filmes, do filme Onda Nova, de 1983. Renata e Marcelo o chamam de “clássico perdido da Boca do Lixo”. O longa dirigido por José Antonio Garcia e Ícaro Martins foi proibido logo depois da Mostra Internacional de Cinema daquele ano. Conta a história de um time feminino (fictício), Gayvotas Futebol Clube, na época em que a modalidade foi legalizada para mulheres. O elenco inclui as atrizes Carla Camurati e Cristina Mutarelli. Com várias participações especiais: Caetano Veloso, Regina Casé, Tânia Alves, o narrador Osmar Santos e os jogadores Casagrande e Wladimir, que atuavam no Corinthians.

O Soberano também promove a Sessão do Comodoro, mantendo nome da mostra criada pelo diretor Carlos Reinchenbach. E atento aos tempos atuais, lançou o Bocaflix. Não chega a ser um streaming, mas faz a curadoria de filmes recolhidos de vários lugares e reunidos no site, aberto à exploração. O Soberano é a Boca do Lixo resgatada e viva. Uma trama e um roteiro que são a cara de São Paulo. Uma cidade múltipla e surpreendente.

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