SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Tanto eleitores que votaram em Lula (PT) quanto os que votaram em Jair Bolsonaro (PL) nas últimas eleições presidenciais têm uma visão flexível sobre os princípios democráticos, a depender de quem está no poder, sustenta um novo estudo da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Partindo do princípio de que a democracia não é um conceito único, mas um arranjo complexo aberto a diferentes interpretações, dois pesquisadores do grupo de estudos de legitimidade democrática da universidade (INCT ReDem) resolveram analisar a questão sob o prisma da polarização.
Para isso, usaram um recorte de seis perguntas de uma extensa pesquisa sobre satisfação democrática feita em parceria com o instituto Ipsos-Ipec em fevereiro deste ano. O levantamento entrevistou 1.504 brasileiros presencialmente, com margem de erro de 2,5 pontos percentuais em geral e 3 pontos para cada um dos grupos.
Mais de 60% dos votantes de Lula e Bolsonaro no primeiro turno (portanto mais convictos), por exemplo, disseram concordar total ou parcialmente que o presidente deve ignorar o Congresso Nacional “se ele atrapalhar o trabalho do governo” e também “decisões judiciais consideradas politicamente tendenciosas”.
“Os resultados desmontam a ideia de uma divisão ideológica nítida entre ‘democratas’ e ‘autoritários’ no país. O apoio às regras do jogo democrático é mais situacional do que ideológico”, concluem os pesquisadores Adriano Codato e Felipe Calabrez, citando o conceito de “autoritarismo situacional”.
Dois fatos os surpreenderam. Primeiro, as diferenças entre votantes dos dois lados em todas as respostas analisadas foram menores do que o esperado. Em segundo lugar, os eleitores de Lula indicaram ser até mais favoráveis à concentração de poder presidencial do que os de Bolsonaro.
“O que verificamos é que não há uma cristalização ideológica de valores opostos”, diz Codato à Folha. “Parece que existe uma preferência pelo presidente em si, e não pelos valores democráticos. As pessoas veem que, quando o presidente em que elas votaram está encurralado, ele deve concentrar mais poder.”
A concordância total com a ideia de que o Congresso deve ser ignorado “se atrapalhar o governo” é de 46% entre apoiadores de Bolsonaro e chega a 56% entre os de Lula que, nas últimas semanas, viu a tensão com o Legislativo crescer mais uma vez em torno do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras).
Já a visão de que o presidente deve descumprir decisões judiciais “consideradas tendenciosas” registra uma diferença menos acentuada, mas também é maior entre votantes do petista (49%) do que entre bolsonaristas (42%) mesmo com os frequentes embates do grupo com o STF (Supremo Tribunal Federal).
Ao mesmo tempo, 7 em cada 10 entrevistados, de ambos os lados, defendem o controle judicial sobre o Executivo, dizendo concordar que, “em uma democracia, os tribunais devem ser capazes de impedir o governo de agir além de sua autoridade, praticando ilegalidades”.
O estudo chama atenção, então, para as contradições da opinião pública. Embora a maioria dos brasileiros defenda princípios democráticos abstratos, também está disposta a relativizá-los em contextos específicos.
Essa ambivalência aparece também em outro bloco de perguntas, que buscou entender como as pessoas veem outra tensão fundamental da democracia: proteger minorias versus dar poder à maioria.
Por um lado, 83% disseram ser muito importante proteger os grupos minoritários (87% dos eleitores de Lula e 77% de Bolsonaro). Por outro lado, 47% também acham muito importante que a maioria prevaleça mesmo restringindo direitos minoritários (49% dos lulistas, 44% dos bolsonaristas).
Os pesquisadores, por fim, alertam para os riscos das relativizações: “Quando governantes percebem que sua base eleitoral tolera ou apoia a flexibilização das normas democráticas em nome da eficácia ou da ‘vontade popular’, eles se sentem autorizados a empurrar os limites do jogo constitucional”, escrevem.
Esse tipo de atuação das elites governantes (conhecida como “hardball”), somada ao “autoritarismo situacional” entre os eleitores, pode funcionar como a engrenagem de um processo de “erosão democrática por dentro”, defendem eles, evocando um conceito do famoso livro “Como as Democracias Morrem” (2018), de dois professores de Harvard.
No artigo, os autores ponderam que os dados refletem um momento específico, pós-eleições de 2022, e ressaltam a importância de acompanhar sua evolução diante de mudanças no contexto político, além de realizar entrevistas qualitativas para entender melhor os resultados.