Terror dos bilionários, economista francês apoia correção do IR brasileiro

Uma image de notas de 20 reais

Imagem gerada por IA

PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – É raro que um economista seja pop, com o rosto na primeira página dos jornais. O francês Gabriel Zucman, de 38 anos, adquriu esse status em seu país, de forma quase acidental. É que sua proposta de um imposto de 2% sobre os patrimônios superiores a 100 milhões de euros (cerca de R$ 625 milhões) se tornou a pauta principal do debate político na França, às voltas com uma crise política e orçamentária.

Uma pesquisa apontou que 86% dos franceses apoiam a criação da “taxa Zucman”, como ficou conhecida. Ela provocou uma reação feroz de alguns dos homens mais ricos da França. Bernard Arnault, presidente do grupo LVMH (Louis Vuitton e outras marcas), segundo homem mais rico da França segundo o ranking da revista Challenges (116,7 bilhões de euros, ou R$ 730 bilhões), qualificou o professor da Paris School of Economics (PSE) de “militante de extrema esquerda”.

Por se interessar pela desigualdade como fenômeno global, ao lado de colegas como Thomas Piketty e Esther Duflo, Zucman também acompanha de perto o debate fiscal no Brasil. No ano passado, a convite do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou suas ideias no encontro de ministros das Finanças do G20. Ele também é um dos coautores de um estudo do brasileiro Theo Ribas Palomo, seu doutorando na PSE, com dados novos indicando que a desigualdade no Brasil é ainda mais profunda do que se imaginava.

Para Zucman, o Brasil também deveria discutir uma taxa sobre as maiores fortunas. À Folha de S.Paulo ele disse apoiar também a correção da tabela do Imposto de Renda brasileiro, proposta que passou na Câmara dos Deputados na noite desta quarta (1º).

*

PERGUNTA – Na França, atualmente, só se fala da ‘taxa Zucman’. Como o sr. vive essa personalização do debate? Acha que pode ser benéfica ou prejudicial à ideia?

GABRIEL ZUCMAN – É preciso lembrar que por trás dessa proposta há um trabalho coletivo internacional de pesquisa. Foram realizados vários estudos para quantificar os impostos dos bilionários nos EUA, na França, na Holanda e nos países escandinavos. No Brasil, um estudo recente constatou que as grandes fortunas têm alíquotas de tributação obrigatória significativamente mais baixas do que as de outras categorias sociais. A proposta que formulei baseia-se nessa constatação. São realmente dezenas de pesquisadores em todo o mundo. A França, como muitos outros países europeus, mas não apenas, tinha um imposto sobre a fortuna, que foi abolido em 2017, e que funcionava mal. O que tentamos fazer, coletivamente, foi entender o que estava errado, para propor um dispositivo que tire lições desses fracassos passados. A personalização não deve ocultar a realidade desse trabalho coletivo fundamental.

P – O sr. foi chamado de militante de extremaesquerda e acusado de ‘ignorância econômica’. Como o sr. interpreta esses ataques pessoais?

GZ – Acho que isso reflete a fraqueza dos argumentos fundamentais dos opositores a essa medida. À falta de argumentos substanciais, o que lhes resta? Insultos ou evidentes exageros. Por exemplo, falar de comunismo para um imposto de 2% sobre a fortuna, quando o patrimônio das pessoas em questão aumentou em média 10% ao ano nas três últimas décadas, é obviamente excessivo e desconectado da realidade existente das desigualdades patrimoniais, da injustiça fiscal e da própria natureza da proposta. Em um debate na Assembleia Nacional [o parlamento francês] comigo e Jayati Ghosh [economista indiana], Joseph Stiglitz [americano, Nobel de Economia em 2001] lembrou que se trata de uma proposta minimalista, que consiste simplesmente em pedir aos mais ricos que não paguem menos impostos que as outras categorias sociais. Estudei o debate fiscal na época da criação do Imposto de Renda, no início do século 20, na França e em muitos países. Os afortunados da época lutaram com unhas e dentes para impedi-la, usando os mesmos argumentos, de que isso destruiria a inovação e o crescimento, enfraquecendo o país. Foram debates de uma virulência extrema. É interessante revisitá-los, porque hoje em dia todos aceitam o princípio do Imposto de Renda. Está longe de ser perfeito, mas ninguém quer abolir. O que venho propor é simplesmente completar a criação do Imposto de Renda, incluindo os bilionários, que ainda não estão incluídos.

P – Fala-se muito sobre a questão do ‘exílio fiscal’. Qual é a sua resposta? Como podemos evitar que os bilionários simplesmente partam para outro lugar com todos os seus bens e continuem sem pagar nada?

GZ – A maneira mais simples é criar o que poderíamos chamar de escudo antiexílio, que sujeitaria os possíveis exilados fiscais a dispositivos de imposto mínimo após sua partida. Concretamente, o país diria: se você é devedor desse imposto mínimo, tem mais de 100 milhões de euros em patrimônio e paga, atualmente, menos de 2% de sua fortuna em Imposto de Renda, e optar por se instalar em um paraíso fiscal ou em outro país, o imposto mínimo continuará a ser aplicado por cinco ou dez anos após sua partida. Essa proposta, aliás, foi aprovada pela Assembleia Nacional em fevereiro [mas rejeitada pelo Senado em junho]. É uma inovação pequena, mas importante, porque hoje o que faz a França, como a maioria dos países, é não colocar absolutamente nenhum limite ao exílio fiscal. Na verdade, até o incentivam, porque na França quem é bilionário e se exila deixa imediatamente de pagar qualquer imposto. É tentador. Eu proponho fazer uma escolha um pouco diferente, que consiste em dizer que, se você ficou muito rico, o imposto vai acompanhá-lo por alguns anos.

P – O sr. acredita que o Brasil é um candidato viável para adotar também um imposto desse tipo?

GZ – Sim, sim, acho que o Brasil deveria absolutamente implementar um imposto dessa natureza. É preciso lembrar que tudo isso vem da proposta que formulei em um relatório que o governo brasileiro me encomendou em 2024, no âmbito da presidência brasileira do G20, para colocar na agenda uma nova proposta de cooperação fiscal internacional. O G20 tem sido historicamente um motor, facilitando, por exemplo, a criação de uma alíquota mínima de 15% para empresas multinacionais. O próximo passo, o mais lógico, seria aplicar esse princípio às grandes fortunas, porque os problemas são os mesmos. São os atores que mais se beneficiaram com a globalização, mas que são amplamente sub-tributados. Daí o relatório que escrevi. Foram escolhidas a taxa de 2% e o limite de isenção de US$ 100 milhões, muito elevado, precisamente para torná-lo viável num contexto internacional. Ou seja, foi pensado para ser relevante para todos os países. Em todos aqueles para os quais temos dados, observamos que, acima de US$ 100 milhões de fortuna, aproximadamente, o imposto se torna claramente regressivo. As fortunas em questão explodiram nas últimas décadas. Uma taxa de 2%, na verdade não tão elevada, garantiria que essas fortunas não paguem menos impostos do que as outras categorias sociais. É perfeitamente legítimo debater o nível justo de progressividade do imposto, mas quase todos concordam com a ideia de que os bilionários não deveriam pagar menos do que as outras categorias sociais. O que eu propus foi simplesmente a menor taxa que permite evitar essa anomalia. É claro que isso é necessário, desejável e viável para a França, para o Brasil e para outros países.

P – Como essa proposta foi recebida pelo G20?

GZ – Estive na reunião dos ministros das finanças do G20 em São Paulo em 2024, onde fiz uma apresentação. Houve reações muito positivas, primeiro por parte do governo brasileiro, cuja liderança e visão quero elogiar por ter colocado esse assunto na agenda do G20. Era a primeira vez em uma reunião como essa que se falava de desigualdade, de tributação das grandes fortunas, embora o G20 já exista há quase 20 anos. Na época, os ministros também ficaram muito entusiasmados. Depois, muitos disseram: “Vamos estudar isso, precisamos entender, saber mais.” Não creio que chegaremos a um acordo internacional nos próximos meses, porque a situação geopolítica que eles vivem é complexa. Mas o acordo sobre a tributação mínima das grandes fortunas levou quase dez anos. As primeiras discussões foram em 2015 e a implementação nos primeiros países começou em 2024, ou seja, nove anos. Espero que leve menos de nove, mas não é absurdo que leve mais alguns anos.

P – Recentemente, o sr. foi coautor de um trabalho indicando que a desigualdade no Brasil é ainda mais profunda do que se imaginava.

GZ – Esse trabalho pôde ser realizado graças a uma colaboração com a Receita Federal, com fontes de dados particularmente ricas e detalhadas, não apenas sobre o que as pessoas físicas pagam, mas também o que as empresas que elas possuem pagam em impostos sobre as sociedades e os lucros, e que às vezes não distribuem como dividendos, mas constituem renda para os detentores de suas ações. Graças a esses novos dados, foi possível ter uma perspectiva mais completa não apenas sobre as desigualdades de renda, mas também sobre a progressividade do imposto no Brasil. E temos dois resultados principais. O primeiro é que o nível de desigualdade no Brasil é ainda mais elevado do que se estimava, com uma participação de 27% da renda total do 1% mais rico, o que coloca o Brasil no topo dos países mais desiguais. Resumindo, a desigualdade extrema e a tributação particularmente baixa dos rendimentos muito elevados levam-me a pensar que é num país como o Brasil que existe uma necessidade particularmente importante de uma taxa mínima de tributação, por exemplo, 2% sobre o patrimônio das grandes empresas.

P – No momento, tramita no Brasil a correção da isenção do Imposto de Renda. Esse trabalho é mais um argumento em favor dessa correção?

GZ – Sim, na medida em que nosso trabalho leva em consideração todos os impostos, todas as contribuições obrigatórias. Quando fazemos isso, percebemos que as classes populares no Brasil pagam realmente muito imposto, mais de 40% da renda em contribuições obrigatórias, incluindo tudo, muito mais do que os muito ricos. Portanto, há necessidade de um reequilíbrio, que pode ser feito de duas maneiras: reduzindo os impostos das famílias mais pobres ou aumentando os das famílias mais ricas. O ideal seria agir nas duas frentes.

P – O sr. divide seu tempo entre a França e os EUA. A disputa do governo Trump com as universidades teve algum impacto em seu trabalho?

GZ – No meu trabalho pessoalmente, não, porque passo a maior parte do tempo na França. Morei dez anos na Califórnia, fui professor em Berkeley por dez anos e voltei para Paris em 2023, mas continuo passando dois meses do verão em Berkeley. Colaboro em várias pesquisas, organizo uma pequena escola de verão sobre desigualdades em Berkeley, tenho amigos que reencontro a cada verão, mas a maior parte da minha atividade está em Paris. Dito isso, o problema nos EUA é que há um ataque realmente frontal e perigoso do poder trumpista contra o conhecimento, contra a universidade, contra o ensino superior, que a longo prazo pode ter consequências dramáticas, não só para a universidade americana, mas para a comunidade científica internacional. O conhecimento é um bem público mundial. Quando se ataca a criação de conhecimento em um país como os EUA, infelizmente, todos nós pagaremos o preço em algum momento. A situação é realmente muito alarmante.

P – Como o sr. vê o papel do intelectual no debate democrático?

GZ – Pertenço a uma tradição intelectual na qual não se estuda economia ou ciências sociais apenas como um astrônomo estudaria as estrelas, mas para tentar contribuir para uma sociedade melhor, para uma melhoria das políticas públicas. A partir do momento em que foi estabelecida uma constatação científica rigorosa, um problema foi dissecado e se acredita ter uma solução possível, faz parte do trabalho do pesquisador colocar essa proposta no debate público. Não com uma abordagem tecnocrática, de cima para baixo, dizendo que é a única maneira de fazer isso ou aquilo. E sim para alimentar um debate democrático e explicar o campo das possibilidades. Não cabe a um economista, ou a qualquer pessoa, decidir qual deve ser a taxa de imposto correta. Isso só pode ser decidido por uma deliberação democrática e pelo voto dos cidadãos ou de seus representantes. Mas os pesquisadores podem desempenhar um papel útil de alimentar o debate. É uma forma de dar vida a uma democracia de alta intensidade.

P – Em que o sr. está trabalhando atualmente?

GZ – O que mais me interessa, na verdade, é a questão das relações econômicas internacionais. Estou trabalhando em um livro que será lançado daqui a cerca de um ano, sobre a história das relações econômicas internacionais e as possíveis formas de reorganizar a globalização.

*

RAIO-X | GABRIEL ZUCMAN, 1986

Francês, professor de Economia na Paris School of Economics e na École Normale Supérieure, também leciona cursos de verão na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA. É autor de “A Riqueza Oculta das Nações” (2015). Recebeu em 2023 a medalha John Bates Clark, considerada o Nobel de Economia para economistas de até 40 anos.

MAIS LIDAS

Voltar ao topo