[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS]
Formado em Direito e dono de uma banca de cadarços há mais de 40 anos, Jair Rosa é um paranaense que chegou a São Paulo aos 17 anos e fez da região central seu novo lar. Costuma medir o tempo pelas gestões políticas que atravessou (e não pelo relógio). Viu de perto fiscalizações, perseguições e mudanças nos padrões de consumo sentado na esquina das ruas Barão de Duprat e Comendador Afonso Kherlakian, onde mantém a mesma barraca há décadas. A rotina é quase mecânica: chega antes das oito, ajeita os rolos coloridos que exibe sobre uma pequena lona e cumprimenta os fregueses que o conhecem pelo nome. Entre barracas e vitrines, é parte do retrato da capital que abriga hoje mais de 8,6 mil ambulantes regularizados, segundo a Prefeitura de São Paulo. A história de Rosa integra o Especial 25 de Março – 160 anos, série da AGÊNCIA DC NEWS sobre as transformações, personagens e contradições do maior polo popular de compras do país.
Segundo a Prefeitura de São Paulo, a região central reúne 1,3 mil camelôs autorizados e outras 1,9 mil permissões para atividades similares – como bancas de flores, mesas e toldos. Nas imediações da Rua 25 de Março, praticamente todas as calçadas estão tomadas por barracas que convivem lado a lado com o comércio formal. Muitos desses vendedores se equilibram há décadas entre a formalidade e a informalidade, alguns desde os anos 1970. É nesse cenário que aparece Jair Rosa, 68 anos, considerado por seus pares o camelô mais antigo da região. Há mais de quatro décadas, mantém sua barraca diante do comércio de produtos de beleza Axiu e da loja de eletrônicos M Marton. Natural de Jerônimo da Serra (PR), migrou sozinho, prestou serviço militar e se tornou camelô em 1977, primeiro no Largo do Paysandu e depois na 25. Seu principal produto é o cadarço — mercadoria simples, mas de giro constante. “É uma mercadoria que ninguém dá nada, mas eu vendo”, disse à AGÊNCIA DC NEWS: “Cadarço genuinamente nacional.”
Dez anos atrás, Rosa se formou em Direito, mas nunca exerceu. Ele diz que a atividade comercial basta para sustentá-lo, à mulher, uma filha e o netinho. Ao seu lado, trabalha o irmão, Darcy Rosa, 66. “O pessoal vem muito fazer compra aqui na área central, vem gente do turismo do Brasil inteiro”, afirma. Segundo ele, a clientela de um camelô se constrói ao longo dos anos e boa parte dos clientes se mantém fiel à mesma barraca durante muito tempo. “Camelar é uma coisa interessante”, diz. “Tenho uma freguesia que compra, assim, dúzias. Podem até demorar um, dois, três meses para voltar, mas sempre voltam.” Qualquer pessoa física pode exercer a atividade nas ruas de São Paulo, desde que tenha o Termo de Permissão de Uso (TPU) concedido pelo último arranjo jurídico destinado à categoria, o Tô Legal!, lançado em julho de 2019.
O camelô está sempre sujeito às mudanças na gestão da prefeitura. Luiza Erundina (1989 a 1992) foi a primeira prefeita a apoiá-los, numa época em que a atividade sofria repressão — o líder anterior, Jânio Quadros, adotava medidas de linha-dura contra os ambulantes, inclusive com a criação da GCM. Erundina fez o contrário, criando uma legislação específica para regulamentar a categoria, embora exigindo a permissão de uso do espaço público, como é feito ainda hoje, e erguendo uma bandeira de combate à “máfia” que permearia a atividade ambulante, segundo ela. “A minha primeira permissão saiu em 1989, eu peguei o papel mesmo em 1990”, diz Rosa, explicando que o TPU é vitalício e intransferível.
Quando Celso Pitta assumiu (1997 a 2001), ele removeu os camelôs espalhados pelo Centro e ofereceu oito camelódromos em troca, e somente naqueles locais os ambulantes poderiam trabalhar. “Ele fez um recadastramento geral, tirou todo mundo da rua e colocou em bolsões”, disse o ambulante, que relembra seu passado em partes, conforme os mandatos da prefeitura. Desde que a política de remoção das barracas imposta pelo Pitta foi cancelada, Rosa continua na mesmíssima esquina, sem mover-se nenhum passo para as laterais. Aliás, é importante dizer que uma barraca de camelô, para estar de acordo com as normas, só pode ter dois metros de largura por um de profundidade. “Você pode até fazer uma coisinha, um excessinho, mas desde que esteja colado junto à tua mercadoria”, disse ele. “Agora, você esticar a asa daqui, fazer tenda de pescador? Aí não é correto.”
Gilberto Kassab (2006 a 2008) cassou a licença dos camelôs de São Paulo, cerca de 500 deles na região do Centro, durante o seu mandato, oferecendo em troca shoppings populares onde eles pudessem trabalhar. “Teve alguns contratempos com cassação de documento”, disse Rosa, “mas ficamos aqui até o dia de hoje”. Para reverter a medida, o Sindicato dos Ambulantes, Camelôs, Autônomos e Microempreendedores Individuais do Estado de São Paulo (Sindimei) entrou com uma ação judicial, que deu ganho de causa aos ambulantes. “A gente continua trabalhando com esse mandato de segurança até hoje”, afirma. Questionado se já pensou ou se planeja um dia trabalhar em uma loja convencional, com espaço físico, ele disse que jamais. “Não tem possibilidade de fazer isso”, afirma. “Esse tipo de mercadoria, se você botar dentro de uma loja, você vai passar fome. O aluguel aqui é absurdo.”
A relação com os lojistas é amistosa, mas eventualmente há alguma reclamação. Um dos diretores da União dos Lojistas da Rua 25 de Março e Adjacências (Univinco), Elias Ambar, afirma que, durante os anos Erundina, houve um excesso de camelôs na região, o que foi um pouco incômodo para o comércio formalmente estabelecido. “Surgiram muitos siris (camelôs de outros estados), e os ambulantes vendiam coisas na mão, em caixas de papelão”, disse o representante. “Então, a rua ficava intransitável.” Rosa acredita que “essa é a discórdia do comércio de um modo geral, que não gosta do permissionário”. Mas ele diz não sofrer nenhum tipo de pressão da Univinco e que, há muito tempo, o trabalho é desempenhado sem problemas. “O camelô tem essa mania: se dá um espaço para hotel, já quer fazer um shopping”, ele diz, reconhecendo que eventualmente as barracas podem atrapalhar os estabelecimentos fixos, por exemplo na carga e descarga das mercadorias. “A prefeitura está aí para coibir [os excessos].”
A realidade vivida por Rosa reflete o Brasil. Um país com alto nível de informalidade, sendo que há 20 milhões de negócios informais contra 22 milhões de micro e pequenas empresas formais no país, de acordo com o Sebrae. A situação dos vendedores ambulantes, sempre muito delicada, foi um dos motivos para a criação do MEI em 2008. A atividade de Vendedor Ambulante ou Similar está na lista de Código Nacional de Atividades Econômicas (Cnae), entre eles o 5612-1/00 – Serviços ambulantes de alimentação (se for o caso) e o 4781-4/00 – Comércio varejista de artigos do vestuário e acessórios. O governo federal estima que 15 milhões de empresários informais tenham se regularizado desde então. E um deles foi o Rosa. “Eu fiz o MEI só para complementar, porque estou chegando aos 70 anos”, disse o ambulante. “Não tenho aposentadoria porque nunca recolhi o INSS.”