[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS]
São Miguel Paulista se apresenta a partir da Capela de São Miguel Arcanjo, erguida pelo padre José de Anchieta em 1560, quando a cidade de São Paulo tinha apenas 6 anos. Fica na praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, chamada de “praça do forró”, em referência à presença nordestina naquele bairro da Zona Leste paulistana. Foi um dos primeiros bens tombados pelo Patrimônio Histórico Nacional, em 1938. A 300 metros dali, um restaurante que começou servindo pratos-feitos a caminhoneiros, na beira da antiga Estrada Rio-Paulo, carrega a memória em suas paredes repletas de fotos. Painel que conta não apenas a história de um empreendimento familiar com 70 anos completados em 2025, mas do bairro e sua gente. Os Piassi, originalmente Piazzi, saíram da Itália e se espalharam: Argentina, Brasil, Estados Unidos. A saga é narrada no livro Piazzi&Piassi – Uma Família Ítálo-Brasileira, de Hermógenes Piassi (Edição do Autor). O primeiro tomo, de 2017, está em uma estante. Tem mais de mil páginas. A história, como se vê, é longa. Parte desses italianos (de Bolonha, Cremona, Trento e Verona) foi parar na região de Araraquara, interior paulista, incluindo a cidade de Boa Esperança, a 30 quilômetros, até vir para a capital. E a história do restaurante de São Miguel vai começar quando Pedro Piassi consegue dinheiro emprestado e abre seu barzinho, vendendo, ao lado de Luiza, refeições com tempero e sotaque interiorano para os motoristas que iam e vinham. O Restaurante Piassi é um dos empreendimentos do Prêmio Comércio Histórico 2025, criado pela AGÊNCIA DC NEWS e pela Associação Comercial de São Paulo.
Eram lanches, refeições básicas. Até que um cliente, o Oscar, funcionário da Caixa Econômica Federal, pediu amigavelmente mais pratos para o cardápio. Até um cozinheiro foi contratado temporariamente para aprender o repertório, que foi sendo ampliado e hoje é quase interminável. (São 40 funcionários e pelo menos 200 refeições por dia.) Oscarzinho, como era chamado, está lá na parede do salão térreo, em uma fotografia. Antônio Marcos, o cantor romântico, figura em outro quadro – ele é cria de São Miguel Paulista. O bairro abrigou outros artistas, como o cantor e compositor Edvaldo Santana, filho de nordestinos, e o músico alagoano Hermeto Pascoal, que morou com a família na Vila Mara. Uma das vizinhas, que brincava com os filhos do casal Hermeto e Ilza, era a futura cantora Roberta Miranda.
A região deu um salto quando a Companhia Nitro Química se instalou, a 1,5 quilômetro dos Piassi – a “multinacional brasileira”, como se apresenta, acaba de completar 90 anos. Elisa Piassi, da terceira geração, conta que até hoje um dos engenheiros da empresa, seu Nelson, já aposentado, aparece para almoçar e leva alguns dos atuais funcionários. Sim, a Nitro está na parede do restaurante. Uma das fotos ilustra a inauguração da arquibancada do estádio – sim, havia um estádio e um clube operário. A foto está lá: a inauguração foi simplesmente contra o Santos do jovem Pelé, em 1957 (ele havia começado a jogar no ano anterior). O chamado time da Vila (Belmiro), como era de hábito naquela época, goleou, mas o time da casa deixou sua marca: 10 a 3. Outro olhar remete à foto de uma cinema do filme Sangue em Santa Maria, de 1971, filmado no bairro. Em muitas fotos, o crédito é dado a Tijolinho. Mas quem é ele? Outro cliente, claro. Em São Miguel também foi fundada, em 1972, a Universidade Cruzeiro do Sul. Uma das fundadoras, Dagmar Figueiredo, às vezes aparece no Piassi.
Já no andar de cima, uma camisa do Palmeiras está emoldurada com a assinatura de Ademir da Guia, eterno ídolo alviverde, dos anos 1970. Ele também aparece em fotos com os donos. “Ele veio, o Alfredo [outro jogador daquele período]… A gente queria que o Marcão viesse”, afirmou Elisa, que espera pela visita do ídolo Marcos, ex-goleiro do Palmeiras e titular da seleção na Copa de 2002, a última vencida pelo Brasil. A idolatria pelo time de Parque Antártica (antigo nome do estádio, que após a reforma passou a se chamar Allianz Parque) não impede que se vejam alguns objetos do corintiano Ayrton Senna, ídolo de Marco, primo de Elisa, um dos quatro filhos, o mais velho, de seu Aurélio e Maria Conceição Piassi – eles são Marco (nascido em 1959), Ana Luiza (1961), Maria José (1965) e Eduardo (1973).
PAIS, FILHOS, IRMÃOS – Aurélio era filho de Pedro, que abriu o bar/restaurante. Aurélio e Maria casaram-se em maio de 1957 – na capelinha símbolo de São Miguel (uma das netas de dona Maria, Renata, também se casaria lá). Nascida em Boa Esperança e registrada em Araraquara, Maria, filha de lavradores, hoje com 87 anos, veio para São Paulo. Continua morando pertinho do restaurante, que visita regularmente. Pedro Piassi Filho, irmão de Aurélio, também teve quatro filhos, com Nilza Vassalo Piassi (casaram-se em 1958): Nilza (nascida em 1959), Elisa (1962), Pedro Piassi Neto (1968) e Lígia (1976). Assim, a família tem três Pedros (o que abriu o restaurante, o filho e o neto) e três Marias irmãs: Nilza Maria, Maria Elisa e Lígia Maria. Além da prima Maria José.
Aurélio e Pedro eram irmãos inseparáveis, nos negócios e na vida. “Eram muito unidos, se amavam muito”, disse Elisa. “Meu pai [Pedro Filho] cuidava mais da cozinha. Meu tio [Aurélio], mais da parte financeira.” Dedicaram-se ao restaurante até onde a saúde permitiu. Dona Maria e Elisa se emocionam ao lembrar. Aurélio, que morreu em 2006, aos 72 anos, passou os últimos 20 com Alzheimer. Continuava no trabalho até que Maria decidiu que não era mais possível continuar. Sua companheira conta que ele ficou “muito revoltado” com a doença e com a impossibilidade de prosseguir fazendo o que mais gostava. E Pedro, pai de Elisa, morreu em 2009, em consequência de um câncer, aos 88 anos. “Trabalhou até os 86.” Dona Nilza, mãe de Elisa, trabalhou até a véspera do nascimento da filha, na manhã de 8 de setembro de 1962.
As lembranças remetem a José Aldo Piassi, irmão de Aurélio e Pedro Filho. Ele está nas paredes, nas estantes e até na balança Filizola (a primeira marca brasileira, criada por um imigrante italiano) da Farmaluz, onde trabalhava. Zezinho, como sua sobrinha Elisa o chama, morreu em 1970, durante uma cirurgia de úlcera. Tinha 26 anos. “Ele ia se casar…”, recorda Elisa. A morte repentina abalou a família, que chegou a fechar o restaurante aos domingos. Mas seu Aurélio não conseguia ficar longe – tinha até crises de enxaqueca. A vida seguiu. Decreto municipal de 1977 deu o nome de José Aldo Piassi à rua que faz esquina com a avenida Marechal Tito (atual nome da antiga Rio-São Paulo), onde está o restaurante. Hoje, os clientes entram por essa rua, que homenageia Zezinho. A história dos Piassi transborda das paredes e estantes para as mesas.
Seis meses atrás, a família abriu um salão no andar de cima – parte do acabamento ainda está para ser concluída. Nos primeiros tempos, lembra dona Maria, o espaço todo não era nem metade daquele. Quem sobe a escada, antes de chegar a essa área, passará por um espaço que foi batizado de Sala da Família. Fotografias de várias épocas mostram os Piassi, crianças em volta de uma mesa farta, os pioneiros, até uma casinha no meio do nada em Boa Esperança. Onde parte deles morou. “Agora, só tem o pé de manga”, disse dona Maria, mostrando a árvore. “É também uma forma de recepcionar o cliente”, afirmou Elisa, sobre o salão. Ela ainda pequena corria pelo restaurante, onde passou a trabalhar em 1986. Formou-se em Pedagogia e Direito, mas sua vida também rumou para o empreendimento familiar. Como Pedro Neto (que, como Elisa, cuida mais da divulgação), Eduardo (financeiro) e Marco (administrativo), engenheiro aposentado pelo Metrô e responsável pelas reformas feitas no restaurante. Que lá atrás passou pelo dilema de aderir ou não à onda dos restaurantes self-service. A opção pelo quilo feita pelos empreendimentos vizinhos chegou a reduzir o movimento. “Nós mantivemos o à la carte.” Elisa chama o Piassi de “ponto de encontro”, onde sempre aparecem, há anos, moradores e funcionários de fábricas e escritórios próximos. Com segredos que vão além da cozinha e dos preços. “Sabe a segunda casa da pessoa? Tem que ter acolhimento.”
Uma questão ainda em aberto é sobre quem tocará o restaurante mais adiante. A atual geração, a quarta, está mergulhada nos estudos. Vários cursam Medicina – já tem até gente formada. Mas, aparentemente, isso ainda não preocupa os atuais Piassi. Dona Maria, por exemplo, tem 11 netos, de 10 a 42 anos, e 12 bisnetos, de 5 meses a 12 anos. Alguns deles podem levar a história adiante. Nas mesas, nas paredes e nas ruas de São Miguel, nas memórias de uma família e do bairro que a acolheu.