Museu no sobrado onde morou Mário de Andrade, na Barra Funda, é múltiplo. Como ele foi
Escritor morou na Barra Funda durante 24 anos, com a mãe e a madrinha
(Andre Lessa / Agência DC News)
Reaberto ao público em maio de 2024, após um ano e meio de reformas, local foi residência do escritor durante 24 de seus 51 anos, até 1945
Organização do museu mantém programação sobre vários temas, no espírito de Mário: "Ele sempre se interessou e produziu em várias áreas"
Por Vitor NuzziCompartilhe:
[AGÊNCIA DC NEWS]. São três sobrados geminados na rua Lopes Chaves, na Barra Funda, Zona Oeste, esquina com a rua Margarida. Dona Maria Luiza de Almeida Leite, a dona Mariquinha, desde 1917 viúva do tipógrafo Carlos Augusto, comprou os imóveis em 1921. Desde 1896, a família morava no Largo do Paissandu. Três anos antes, às 20h15 de 9 de outubro de 1893, nasceu Mário Raul de Moraes Andrade, quando os pais ainda moravam na rua Aurora. Foi na casa da Barra Funda que Mário viveu 24 de seus 51 anos de vida, até 1945. Reaberta ao público em maio do ano passado, depois de um ano e meio de reformas, a residência do escritor foi ampliada com a compra pelo governo estadual dos outros dois sobrados. Depois de mais uma reforma, teve a primeira exposição em 2015 (A Morada do Coração Perdido), no 70º aniversário da morte de Mário de Andrade. Tornou-se museu, formalmente, em 2018. E um espaço de atividades variadas, seguindo o perfil de seu antigo proprietário. “Ele sempre se interessou e produziu em várias áreas”, afirmou o pesquisador Arthur Major, que trabalha há nove anos, inicialmente como pesquisador, no Museu Casa Mário de Andrade, que é gerido pela organização social Poiesis. “O interesse sempre se renova, porque sempre surgem novas perspectivas.” Um olhar nos temas da programação é um exemplo do caráter multifacetado do espaço: samba da Barra Funda, Carnaval, conceito de folclore, patrimônio cultural, design, educação digital, gênero e sexualidade, música e jornalismo, além de visitas, clube de leitura, caminhadas e até uma visita ao Cemitério da Consolação, onde Mário e outros modernistas, como o desafeto Oswald de Andrade, estão enterrados.
Quando dona Mariquinha comprou os imóveis, a ideia era instalar Mário na terceira casa. Carlos, irmão mais velho, ficaria na do meio, e a mãe moraria na primeira, com a irmã Ana Francisca de Almeida Leite Moraes, a Nhanhã, madrinha de Mário – e que costurava as roupas do afilhado. Ele preferiu alugar o sobrado que seria dele e foi morar com mãe e tia/madrinha. E, aos poucos, ocupando os espaços. No térreo, fez seu escritório e sala de aula. O piano ainda está lá. Pode-se ver uma dedicatória do maestro Heitor Villa-Lobos que acaba de completar 100 anos: é datada de 18 de julho de 1925. Outro móvel que permanece ali é uma estante que ocupa uma parede inteira da antiga entrada, onde o piso (hidráulico e de madeira) está preservado. No escritório, Mário datilografava em sua Manuela – máquina de escrever batizada em homenagem a Manuel Bandeira –, cercado pelos 17 mil volumes de sua biblioteca e quadros que comprava ou ganhava dos amigos, incluindo um de Picasso – presente da amiga Anita Malfatti.
Térreo do sobrado: à direita, móvel original de Mário de Andrade (Andre Lessa/Agência DC News)
Quando Mário morreu (de infarto, como o pai), em seu quarto, no final da noite de 25 de fevereiro de 1945, um domingo, mãe e tia eram vivas. Nhanhã morreu em 1947, aos 85 anos, e dona Mariquinha em 1949, perto de completar 90. Uma sequência de apenas quatro anos. Os três tinham seus dormitórios no primeiro andar, como o visitante poderá ver, além do estúdio (equivalente a um closet) de Mário. Além delas, a casa tinha a presença constante de Sebastiana Campos, empregada doméstica, que ficou lá por 50 anos – há uma foto de Sebastiana no móvel pertencente a Mário, onde também podem ser vistos alguns documentos do escritor, como uma carteira profissional. Ele planejava doar seu acervo a várias instituições, conforme conta o pesquisador. “A família desejava seguir o testamento ao pé da letra, e amigos diziam que era possível manter o espírito do testamento.” Todo o acervo acabou destinado ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP): os 17 mil volumes da biblioteca (livros, revistas, jornais), 673 obras (pinturas, gravuras, desenhos, objetos) e 30 mil documentos.
A casa foi tombada em 1975 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat) e em 1991 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Em 2009, o Condephaat também decidiu pelo tombamento do acervo de Mário no IEB-USP. Projetada pelo arquiteto Oscar Americano, a casa funcionou como equipamento cultural e oficina. Segundo Arthur Major, durante um tempo o sobrado recebeu ensaios da escola de teatro Macunaíma e até do show Falso Brilhante, de Elis Regina (não há registro na biografia de Elis escrita pelo jornalista Julio Maria, que também não tem notícia desse fato) e serviu de clínica para o psicanalista Roberto Freire. Na reforma mais recente, o porão foi escavado e tornou-se um “andar subsolo”. A casa terá ali um novo auditório. Por enquanto, essa área fica no térreo, na antiga sala de jantar. Onde em uma das paredes, ampliada, fica conhecida fotografia com Mário, Oswald, Bandeira e vários outros. Que, sabe-se agora, não foi tirada durante a Semana de Arte Moderna de 1922, mas em 1924, no hotel Terminus, também em São Paulo, onde os modernistas se reuniam.
O múltiplo Mário (“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”, escreveu, em um dos versos mais repetidos) tinha relação próxima com sua morada do coração perdido. Quando voltou do Rio para São Paulo, em 1941 – depois de ser dispensado três anos antes do Departamento de Cultura, que havia criado, por ser crítico da ditadura do Estado Novo (Getulio Vargas) –, disse sentir uma “inefável felicidade lopeschávica”. Em poema publicado no livro Lira Paulistana (1945), afirmou: “Nesta rua Lopes Chaves/ envelheço, e envergonhado/ nem sei quem foi Lopes Chaves”. Ao que o biógrafo Jason Tércio escreveu: “Mário provavelmente ficaria admirado e contaria a todo mundo se soubesse que Lopes Chaves tinha sido colega de seu avô na Assembleia Legislativa de São Paulo, quando ambos eram deputados estaduais, em partidos opostos”.
Museu Casa Mário de Andrade
(Andre Lessa / Agência DC News)
Rua Lopes Chaves, 546 – Barra Funda Perto da estação Marechal Deodoro Visitas de terça a domingo, das 10h às 18h Para grupos de até 40 pessoas: agendamento de terça a domingo, das 10h às 18h, pelo telefone (11) 3672-1391, presencialmente ou pelo e-mail agendamento@poiesis.org.br
(Andre Lessa / Agência DC News)
Professor
Piano que Mário usava para dar aulas permaneceu na casa da família
(Andre Lessa/Agência DC News)
Amigos
Partitura no piano tem dedicatória (centenária) do maestro Heitor Villa-Lobos
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Casa
Mãe de Mário comprou três sobrados geminados em 1921
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Entrada
Porta original da casa, com móvel que Mário mandou fazer
(Andre Lessa/Agência DC News)
Mário
Foi escritor, pesquisador, professor e o primeiro diretor do Departamento de Cultura de São Paulo