Martins Fontes: livrarias vivem o paradoxo de crescer no momento mais crítico para sua sobreviência

Uma image de notas de 20 reais
Segundo o executivo, o e-commerce representa 50% do faturamento, mas lojas físicas são essenciais
(Andre Lessa/Agência DC News)
  • Segundo o editor e livreiro, que também preside a ANL, saída para o setor é aprovar lei que limita em 10% desconto para os lançamentos
  • “O Brasil tem o livro mais barato do mundo ocidental. O problema não é o preço do livro, é o poder aquisitivo da população”
Por Anna Scudeller Compartilhe: Ícone Facebook Ícone X Ícone Linkedin Ícone Whatsapp Ícone Telegram

[AGÊNCIA DC NEWS]. Existe um segmento em que métricas nunca esgotarão as perguntas. Em especial no Brasil. Em entrevista à AGÊNCIA DC NEWS, o editor e livreiro Alexandre Martins Fontes, da livraria que leva seus sobrenomes, compartilha a expectativa de crescimento de 14% no faturamento. A alta não será exclusiva em sua empresa. O setor como um todo também deve crescer na casa dos dois dígitos. “É unânime entre todos os [grandes] associados com quem conversei: vamos crescer”, disse ele, que também é presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL). A expectativa é compartilhada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), que espera que o varejo livreiro cresça por volta de 10%. O resultado só não é comemorado com entusiasmo porque o brasileiro lê pouco. No ano passado, segundo a pesquisa Retratos de Leitura, foram menos de quatro livros em 12 meses – e quando o recorte exclui obras técnicas, indicadas pelas escolas ou religiosas, a leitura por vontade própria de um exemplar de literatura faz o número desabar para 1,2 livro.

Para enfrentar essa questão estrutural, Alexandre Martins Fontes diz que é preciso fortalecer todo o ecossistema. “Ter mais livrarias, mais editoras, mais leitores”, afirmou em entrevista à AGÊNCIA DC NEWS. Para isso, uma peça-chave está travada há dez anos no Congresso. A chamada Lei Cortez, de autoria da senadora e atual governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT). O PLS 49/2015 homenageia o editor José Cortez (1936-2021). Em uma década, passou por todos os trâmites e aguarda, desde novembro, votação em plenário. Se aprovado, seguirá ainda para a Câmara dos Deputados. É uma adaptação de regulação que já acontece em outros países para evitar que players mais robustos pratiquem políticas agressivas de descontos, o que compromete o mercado de livrarias, menos capazes de concorrer em larga escala de vendas. No Brasil, a proposta é que, nos 12 primeiros meses, o desconto máximo seja de 10%. “É uma lei branda, comparada a outros países”, afirmou Martins Fontes. “Isso protege o ecossistema livreiro e editorial.”

A lei trata em cheio de operações como a da gigante Amazon. Nossa reportagem comparou na primeira semana de agosto os preços dos 35 livros mais vendidos na Martins Fontes frente aos mesmos títulos na plataforma concorrente. A livraria praticou preços médios 18,5% acima dos da Amazon – e apenas duas obras tinham os mesmos preços. Martins Fontes, além de presidir a ANL, já foi diretor do Snel e na Câmara Brasileira do Livro (CBL). Por isso, não fala em causa própria. Até porque a sua livraria, além de crescer acima do setor, mostrou resiliência que outras gigantes não conseguiram alcançar, como as tradicionais Cultura e Saraiva, que tiveram a falência decretada em 2023. Em dez anos, ela saiu de 100 mil para 230 mil livros disponíveis para pronta-entrega e 800 mil títulos ao todo. Confira a entrevista.

Escolhas do Editor

AGÊNCIA DC NEWS – Como você lida com o fato de ser, ao mesmo tempo, editor e livreiro, e também presidente da ANL? Isso não gera conflito?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Pelo contrário. Justamente por enxergar os dois lados do balcão. Tenho clareza de que editoras e livrarias precisam andar juntas. Temos os mesmos interesses: um mercado mais saudável. A editora fornece, a livraria vende – dependemos uns dos outros. Já passei por situações em que me vi como “espião” entre editores, mas encaro como uma vantagem: entendo todos os lados.

AGÊNCIA DC NEWS – Em entrevista a Cult em janeiro deste ano o senhor mencionou ter certa resistência inicial às entidades políticas do setor. E hoje é presidente da ANL, como isso aconteceu?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Sim. Na verdade, não era resistência – era falta de vocação. Sempre respeitei o trabalho das entidades, mas preferia focar no dia a dia da empresa. Mas fui entendendo a importância dessas instituições. Quando o governo quer dialogar com o setor, ele procura a associação, não o editor ou livreiro individual. Então aceitei o convite para presidir a ANL, mesmo sem ter essa vocação natural. Hoje faço esse trabalho com prazer.

AGÊNCIA DC NEWS – A concorrência entre livrarias pode ser saudável?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Totalmente. Se tivermos mais livrarias na avenida Paulista, vamos vender mais livros. Concorrência entre livrarias é bem-vinda. E o mesmo vale para editoras. Concorrência saudável fortalece o ecossistema. Precisamos de mais leitores, mais pontos de venda, mais diversidade.

AGÊNCIA DC NEWS – O quanto seu trabalho como livreiro influencia o de editor e vice-versa?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Essa é uma ótima pergunta. Meu pai [Waldir Martins Fontes, 1936-2000, fundador da livraria e da editora] sempre dizia que a livraria é onde se sente o pulso do mercado. O editor que não tem essa vivência pode se iludir com o que acha que vai vender. A experiência com o leitor é fundamental. Eu, desde adolescente, me envolvi com a editora, fazendo capas. Quando meu pai ainda estava vivo, trabalhava mais na editora. Só passei a cuidar de livrarias em 2005, quando fiz uma cisão com meu irmão. A partir daí, assumi duas [as unidades da avenida Paulista e da rua Doutor Vila Nova, na Consolação].

AGÊNCIA DC NEWS – Você já tinha interesse pelo mercado editorial desde jovem?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Brinco que nasci dentro de uma livraria. A empresa foi fundada em janeiro de 1960 e eu nasci em abril. Estava na barriga da minha mãe quando meu pai abriu a livraria em Santos. Sempre estive muito envolvido com a empresa. Apesar disso, sou arquiteto de formação. Fui fazer arquitetura porque gostava das artes. Mas, ainda antes da faculdade, comecei a desenhar capas dos livros da editora. A primeira foi no final dos anos 1970. Sempre me senti muito próximo da editora.

AGÊNCIA DC NEWS – E como foi trabalhar com seu pai?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Sempre soube que um dia viria para a empresa, mas tinha uma preocupação com a relação pai-patrão. Sempre me dei muito bem com meu pai, e tinha receio de que isso atrapalhasse. Trabalhei muitos anos com design gráfico, inclusive para a editora. Aos 30 anos, resolvi entrar na empresa. Foi a melhor decisão da minha vida. Trabalhar com meu pai foi muito enriquecedor. Descobri o profissional por trás do homem. Aprendi muito com ele.

AGÊNCIA DC NEWS – Você imaginava o papel que as livrarias da Martins Fontes ganhariam?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 De forma alguma. Não imaginava que essa livraria da Paulista se tornaria a principal de São Paulo. Nem que eu seria presidente da Associação Nacional de Livrarias. Hoje, digo que sou mais livreiro do que editor, embora isso seja um exagero. Faço os dois com paixão. Mas a livraria, de fato, influencia muito.

AGÊNCIA DC NEWS – Qual a perspectiva de faturamento para este ano?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Esta livraria [Martins Fontes da Paulista] é um case. Quando assumi, em janeiro de 2005, na avenida Paulista havia a Livraria Cultura, a Fnac e a Saraiva, e nós éramos o patinho feio. Hoje, somos referência nacional. De 2005 para cá, ela cresceu dois dígitos por ano. Só não crescemos em 2020 e 2021, na pandemia, mas mesmo assim dobramos o faturamento online e a editora teve crescimento de 30% naquele período. Para 2025, esperamos crescer cerca de 14%.

AGÊNCIA DC NEWS – O setor como um todo também deve crescer?
ALEXANDRE MARTINS FONTES – Ainda estamos desenvolvendo o relatório do setor, então não consigo te afirmar a expectativa concreta. Mas é unânime entre todos os [grandes] associados com quem conversei: vamos crescer. Mas queremos os pequenos crescendo também, não só os grandes.

AGÊNCIA DC NEWS – Esse movimento de segmentação – como livrarias voltadas para um nicho específico – é uma forma de sobrevivência diante do fechamento de grandes livrarias?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Em parte, sim. Mas também é uma escolha natural. Livrarias menores precisam fazer curadoria por falta de espaço. Elas vendem best-sellers, lançamentos e moldam o acervo conforme o público local. Se você está perto de uma universidade, foca em livros acadêmicos. Nós, por termos um espaço amplo e bem localizado, conseguimos manter uma proposta mais democrática, com acervo vasto e diversificado.

AGÊNCIA DC NEWS – A importância das livrarias físicas é decisiva para o setor com o um todo, então?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 As pessoas descobrem os livros na livraria. As editoras não sobreviveriam sem as livrarias. Claro, o contrário também é verdadeiro. Mas algumas pessoas se iludem achando que podem vender só online. Isso não funciona.

AGÊNCIA DC NEWS – Nem mesmo com canais crescentes, como o mercado de e-readers?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 O e-book representa entre 5% e 10% do mercado, dependendo do país. Ou seja, 90% ainda são livros físicos. Eu mesmo não gosto, acho uma experiência assexuada. Todo o processo editorial é digital, mas quando o livro chega impresso é uma emoção. O livro impresso tem cheiro, volume, peso e é real.

AGÊNCIA DC NEWS – E quanto ao audiolivro?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Aí sim! Gosto muito. O Brasil ainda tem um mercado pequeno, mas vai crescer. O audiolivro permite ler enquanto corre, dirige, faz tarefas. Tenho lido muito em inglês ouvindo o audiobook ao mesmo tempo. É uma experiência enriquecedora. Mas ainda acho que nada substitui o livro físico. Ler é ver a palavra escrita – e isso tem impacto no vocabulário, na ortografia.

AGÊNCIA DC NEWS – Ainda assim, tivemos uma queda de 18,8% nos lançamentos. Isso tem a ver com a situação econômica?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Não. Tem a ver com o número de livrarias. Menos livrarias significa menos lançamentos. As editoras têm medo de lançar livros que ninguém vai descobrir. É nas livrarias que os livros são descobertos – não nas redes sociais ou nos sites.

AGÊNCIA DC NEWS – Mas o e-commerce representa quanto do faturamento da Martins Fontes?
ALEXANDRE MARTINS FONTES – Hoje, representa 50% do faturamento da livraria da Paulista. Com certeza, seria nossa principal fonte de receita, se não fosse a concorrência da Amazon.

AGÊNCIA DC NEWS – O e-commerce de livros, de certa forma, é um hábito construído pela Amazon, não? Por que a concorrência da Amazon é considerada desleal?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Uma livraria vive da venda de livros e só disso. Ela precisa de uma margem entre o preço que paga e o que cobra para conseguir pagar salários, aluguel, contas. Apesar de a nossa livraria ser um caso de sucesso, a maior parte das livrarias brasileiras está enfrentando muitas dificuldades. Hoje sou presidente da ANL porque acredito que estamos vivendo um momento crítico para o setor. Isso não acontece por acaso: é consequência de uma concorrência desleal com a Amazon, porque a Amazon não vive [somente] da venda de livros. [Procurada, a Amazon diz que trabalha pelos melhores preços a seus consumidores em todas os segmentos de atuação].

AGÊNCIA DC NEWS – E qual seria a solução para isso?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 A solução é aprovar uma lei como a que já existe em países como Alemanha, Argentina, Espanha, França, Japão, Portugal … Essas leis estabelecem um limite de desconto para os lançamentos. No Brasil, a proposta é que, durante os 12 primeiros meses, o desconto máximo seja de 10%. É uma lei branda, comparada a de outros países.

AGÊNCIA DC NEWS – Como a de qual?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
A da Alemanha, por exemplo. Ela não permite nenhum desconto em tempo algum. Isso protege o ecossistema livreiro e editorial. Na Alemanha, a Amazon representa 18% do mercado livreiro. No Brasil, ela já representa mais de 50%. E se nós não tomarmos cuidado, ela um dia vai representar perto de 100%. E isso é um desastre, não para as livrarias, não para as editoras, para o país, para a sociedade. Porque uma sociedade que não tem editoras fortes, que não tem livrarias fortes, é uma sociedade sem futuro.

AGÊNCIA DC NEWS – Mas isso não pode tornar o livro mais caro, elitizando o acesso à leitura?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Isso é um mito.

AGÊNCIA DC NEWS – Mito?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 O Brasil tem o livro barato comparado a outros países do mundo ocidental [veja aqui alguns comparativos oficiais]. O problema não é o preço do livro, é o poder aquisitivo da população. E quanto maior a tiragem, mais barato é o livro. Para ter tiragens maiores, precisamos de mais livrarias vendendo livros. É assim que se reduz o preço. E mais: o livro é o único produto com biblioteca – ou seja, que você pode pegar de graça. Temos que fortalecer bibliotecas e a indústria editorial.

AGÊNCIA DC NEWS – E você está otimista quanto à aprovação da lei?
ALEXANDRE MARTINS FONTES –
 Eu sou otimista. Estou trabalhando muito para que a lei seja aprovada. E fico feliz de estar falando disso com você, porque a imprensa tem um papel essencial em informar as pessoas. A lei só atinge os lançamentos, cerca de 5% do acervo que temos aqui na livraria. O restante, mais de 90%, não será afetado.

AGÊNCIA DC NEWS – O que, além da lei, será essencial para o setor?
ALEXANDRE MARTINS FONTES – 
Fortalecer o ecossistema. Ter mais livrarias, mais editoras, mais leitores. Isso significa proteger a cadeia do livro. Ter políticas públicas de incentivo à leitura, bibliotecas, feiras. E, acima de tudo, acreditar que um país com um ecossistema livreiro forte é um país com mais futuro.

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