CEPs esquecidos. Startups avançam nas entregas em áreas consideradas de risco e Correios não chegam
Em comunidades, como a Favela da Rocinha, entregas não chegam pelos Correios ou empresas tradicionais
(Eduardo Anizelli/Folhapress)
NaPorta, fundada há quatro anos, criou o CEP digital e já tem mais de 2 milhões de entregas realizadas
Carteiro Amigo nasce em 2000 na Rocinha, no Rio de Janeiro, e atua em São Paulo desde o ano passado
Por Victor Marques
[AGÊNCIA DC NEWS]. Em seu LinkedIn, Sanderson Pajeú destaca o “orgulho em ser indígena e periférico”. Morava no Itaim Paulista – bairro da Zona Leste a 30km da Praça da Sé –, área não considerada de risco pelos Correios e mesmo assim não conseguia receber suas encomendas. A estatal considerava pelo menos 23 mil vias em locais de risco, segundo documento oficial resgatado por meio do site Web Archive, que armazena e exibe versões anteriores de páginas e documentos na internet. Além deles, dos 106,8 milhões de endereços existentes no Brasil, 24,4 milhões (22,8%) não têm número e outros 2,7 milhões (2,5%) são vias sem nome. Ao enxergar a ineficiência de entregas nessas áreas, Sanderson Pajeú e mais três amigos (Katrine Scomparin, Leonardo Medeiros e Rodrigo Yanez) decidiram abrir um negócio para resolver o problema. Criaram a NaPorta, startup brasileira que desenvolveu o CEP digital. É uma localização digitalizada que a empresa utiliza para fazer entregas nas regiões remotas e de risco, onde as encomendas normalmente não chegariam pelos Correios e outras empresas de entregas.
Tecnologicamente falando, o sistema usa uma API (interface de programação para aplicações) do Google, o Plus Code, para endereçar digitalmente moradias no Rio de Janeiro e em São Paulo, principais locais de atuação da empresa. O Plus Code utiliza as coordenadas de latitude e longitude e gera uma sequência randômica de números, letras e caracteres especiais, que se tornam o novo CEP desses locais. A ferramenta tem precisão de um metro de distância e consegue distinguir perfeitamente as casas umas das outras.
Com as moradias localizadas e identificadas, a outra parte da operação foca em ajudar o varejista com a logística das entregas. Com miniestações de distribuição mais próximas de localidades remotas e favelas, a entrega das encomendas se torna viável e menos morosa. Em seu site, a empresa lista como clientes gigantes varejistas – Ali Express, Amazon, Casas Bahia, Magalu, Petlove, Shein, Shopee… Também foi a empresa responsável por estabelecer a operação de mercados do iFood nas favelas do Rio de Janeiro.
IMPACTO – A ferramenta tem precisão de um metro de distância e consegue distinguir perfeitamente as casas umas das outras. Já são 50 comunidades mapeadas no Brasil, 60 mil pessoas impactadas e 20 mil endereços criados. Mais de 2 milhões de entregas feitas. Mas a solução não traz apenas eficiência à cadeia logística entre varejo e consumidor. Ela impacta a própria comunidade. Cerca de 300 moradores locais fazem parte do ecossistema de entregas. Segundo a empresa, “são mais de R$ 3 milhões em pagamentos direcionados aos nossos parceiros e hoje 56% do time é formado por talentos da própria comunidade”. Além disso, a startups afirma que as “microbases [de distribuição] são gerenciadas com orgulho por líderes locais.” Leonardo Medeiros, um dos fundadores da startup e COO da empresa, diz que “o segredo para entregar com facilidade em locais como as favelas é a contratação de moradores da própria comunidade, pessoas que já conhecem a região”.
O impacto percebido é tão grande que a startup recebe apoio da Google e da ONG Gerando Falcões, além de apoio financeiro por meio do programa ImpactaMOB, da Fundação Grupo Volkswagen e da aceleradora Artemisia. Além do negócio de logística, a NaPorta também realiza para os clientes varejistas um trabalho de pesquisa dentro das comunidades, visando entregar dados e informações importantes para os que atuam ou desejam atuar nessas localidades.
PIONEIRA – O problema dos brasileiros sem CEP ou que vivem em locais cujas empresas tradicionais de entrega ou os Correios não chegam vem de longe. Uma das startups pioneiras em identificar a dor e oferecer solução foi a Carteiro Amigo. Fundada em 2000 por três profissionais que realizavam o Censo pelo IBGE – Carlos Pedro da Silva, Elaine Ramos Vieira da Silva e Sila Vieira da Silva – a operação começou apenas com a entrega de cartas nas favelas do Rio de Janeiro. Em 2016, Carlos Júnior, ou Pedrinho, como é chamado na empresa, filho de Pedro e Elaine, entrou na empresa com a tarefa de digitalizar o negócio. Em 2021, assumiu como CEO e trouxe para a startup uma nova vertente de atuação que inclui a entrega de encomendas.
Segundo ele, a falta de CEPs e de atendimento nas favelas é o grande problema dos moradores. As pessoas dão o endereço de um mercadinho próximo, ou usam uma casa localizada mais no começo da comunidade e que consegue receber as encomendas. “Ainda assim, muitas vezes os Correios acabam voltando a encomenda para uma agência, onde a pessoa tem alguns dias para buscar”, afirmou Pedrinho. A Carteiro Amigo passou a ter bases dentro das comunidades, gerando uma proximidade maior. Além disso, também faz o uso de veículos compactos e ágeis – como motos ou bicicletas de carga – que, de forma geral, são mais adequados para navegar pelas ruas estreitas das favelas.
Outra estratégia é o mix de entrega que beneficia tanto a empresa contratante, o entregador e o consumidor. Na prática, é um roteiro que passa por áreas estratégicas antes de chegar nas regiões remotas. “Pensamos roteiros que passam por exemplo por Itaim, Vila Mariana e Brooklyn antes de chegar no Capão Redondo”, disse Pedrinho, citando bairroas paulistanos onde a aempresa passou a atuar, assim como em Minas Gerais. Atualmente, a logtech atua 60% no Rio de Janeiro, principalmente nas regiões Sul e Oeste. “Estamos migrando para a Zona Norte”, afirmou.
Em média, são feitas de 15 mil a 20 mil entregas por semana, impactando cerca de 300 mil pessoas mensalmente. Todo o efetivo de entregadores e funcionários administrativos são de pessoas comunidade, exceto times de tecnologia e marketing. A empresa já tem R$ 1,5 milhão arrecadados de investidores, sendo R$ 500 mil da startup de logística de última milha Vai Fácil para fazer entregas neutras em carbono utilizando veículos elétricos.
RIO-SP – O problema de endereço sem CEP ou com CEP considerado pelos Correios de estar em área de risco se amplifica com o avanço do e-commerce. Até 2016, a estatal disponibilizava um documento de 212 páginas no qual eram citados mais de 23 mil CEPs em áreas de restrição de entrega. Apagados do portal da estatal em 2017, esses dados foram resgatados pelo arquiteto e urbanista Bernardo Loureiro, por meio do site Web Archive, que armazena e exibe versões anteriores de páginas e documentos na internet. Com a lista em mãos, Loureiro analisou esses CEPs e constatou que a maioria das áreas com restrição de entrega fica no estado do Rio de Janeiro e na Região Metropolitana de São Paulo, além de algumas localidades na Bahia.
Os Correios classificam esses locais como áreas com entrega interna ou com entrega diferenciada. Na primeira classificação, as encomendas não chegam até a porta do destinatário. A segunda classificação estabelece um prazo maior para a entrega das encomendas, de até sete dias em relação ao prazo normal em regiões atendidas normalmente pelos Correios. Roberto Pfeiffer, procurador do Estado de São Paulo e especialista em Direito do Consumidor, disse à AGÊNCIA DC NEWS que os Correios não são obrigados a entregar em áreas que eles próprios mapeiam como de risco. Isso vale para aquelas em que, por exemplo, seus entregadores possam sofrer assaltos ou ter de alguma maneira a própria integridade física colocada em perigo. De toda forma, deve haver uma justificativa clara para a recusa na entrega, caso contrário eles são obrigados a completar o serviço.
Leonardo Medeiros, COO da NaPorta: funcionários moram na comunidade (Divulgação)