Uma estreia robusta e necessária para o segmento varejista. Assim deve ser definido o Relatório Tendências do Varejo, análise econométrica que acaba de ser lançada e será veiculada trimestralmente. O documento foi preparado pelo professor Ricardo Meirelles de Faria, do Centro de Excelência em Varejo (CEV) da Fundação Getulio Vargas (FGV), e está sendo apresentado agora com exclusividade pela DC NEWS, a agência de notícias da Associação Comercial de São Paulo (ACSP). “Partimos de uma fotografia das diversas variáveis econômicas que impactam o setor para, então, apresentarmos nossa visão e projeções para os próximos 18 a 24 meses”, afirmou Meirelles. A partir da próxima edição do relatório (dezembro), ele será divulgado nos meses de março, junho, setembro e dezembro. “O varejo é um dos setores mais competitivos, se não for o mais, entre todos do mercado.” Por isso a necessidade de acompanhar no detalhe o cenário à frente.
Em termos macroecômicos, as projeções não são muito distantes deste fim de 2024, mas com sutilezas setorias. Ou seja, não será um ambiente linear para todos os players. “O formato de atuação da política fiscal expansionista com aperto na politíca monetária não parece mudar muito nos próximos 12 meses”, disse Meirelles. “Entretanto, não enxergamos como linear a evolução das variáveis econômicas.” A seguir, a entrevista com o economista, que é mestre e doutor em Economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e professor de Macroeconomia, Economia Brasileira, Política Monetária e Banking na FGV-SP, além de fundador e economista-chefe da Linus Galena Consultoria Econômica.
DC NEWS – A política econômica do governo Lula III, essencialmente expansionista sob o ponto de vista fiscal, é um erro?
RICARDO MEIRELLES DE FARIA – Numa economia, há vários formatos de política econômica. Por um lado, você pode focar mais do lado da oferta, com incentivos à produção, com nível baixo de taxa de juros, que incentiva os investimentos. Por outro lado, há uma estrutura econômica que foca do lado da demanda. Essa é a visão pelo lado do Lula, de ter o Estado como motor da economia.
DCN – Mas ela não tem se mostrado eficaz, não?
MEIRELLES – A grande questão é que existe um custo de oportunidade desses recursos que estão sendo, vamos dizer, dispendidos pelo Estado. Na primeira década do século, houve um grande pulmão econômico vindo da China, com recursos entrando de forma maciça pelo lado do setor externo. Então, o custo de oportunidade, os recursos, eram muito mais baratos do que agora. O momento agora é muito mais difícil.
DCN – Uma fragilidade fiscal que contamina toda a economia, do câmbio aos juros, que o Copom divulgará nesta quarta-feira (6).
MEIRELLES – Sim. Porque os gastos já eram excessivos e continuam. Na pandemia, logicamente houve essa necessidade de socorrer os setores mais carentes, então teve todo esse auxílio emergencial, que continuou. Em parte, era necessário. Mas bato sempre na tecla: ‘Quanto têm custado esses recursos?’ Além disso, existe a demanda, que tem crescido também pelo lado do crédito.
DCN – Que cresceu muito, não?
MEIRELLES – O ritmo de crescimento do crédito à pessoa física, em termos reais, deflacionado pelo IPCA, tem sido bastante expressivo ao longo dos últimos cinco anos. Houve acréscimo de mais de R$ 1 trilhão em valores de agosto de 2024. Alta de 5 pontos porcentuais do PIB, chegando a 33%. Não é pouca coisa! Para 2024, projetamos crescimento de 7,15%. E para 2025, mesmo num ritmo menor, mais 5,76%
DCN – Indepedentemente do crédito, de um modo geral crescemos ‘artificialmente’?
MEIRELLES – O motor do crescimento tem sido essa transferência de recursos do Estado. E o cenário não é benigno como era na primeira década do século. Temos um déficit no setor externo de 2% do PIB em transações correntes. Parte desse crescimento econômico tem sido financiado pelo setor externo também. Isso tudo resumido, o custo desses recursos, que é o custo de oportunidade, se dá pelo custo da dívida. Quanto está custando tomar dívida do setor público? Está em dois dígitos, e crescendo. Do ponto de vista de teoria econômica, é o chamado crowding out.
DCN – Do que se trata o crownding out?
MEIRELLES – O crowding out é quando o governo, ao tomar a prevalência do motor econômico, acaba tendo por reflexo ‘cuspir’ o setor privado, já que o custo do capital fica muito alto. A pressão inflacionária obriga o Banco Central a tentar conter essa pressão subindo os juros. O que vemos é toda a curva de juros e a curva de juros de longo prazo subindo, o que é completamente impeditivo para os investimentos do capital. Nesse sentido, é pouco provável que a participação do capital em relação ao PIB de 2025 vá ser interessante, vá ser relevante.
DCN – Qual a projeção?
MEIRELLES – Em 2024, a gente prevê crescimento de 5% nesse setor de formação bruta de capital fixo, mas no próximo ano decréscimo de pelo menos 1%.
DCN – Então no crownding out o crescimento motivado pelo governo é quase anulado porque aperta o setor privado?
MEIRELLES – É aquele chamado voo de galinha.
DCN – E isso baterá no setor varejista. Qual a projeção para fechar este ano?
MEIRELLES – Estamos projetando 4,2% para o varejo restrito e crescimento de 3,6% para o varejo ampliado [material de construção e setor automotivo].
DCN – Já para 2025 a previsão não é das melhores, né?
MEIRELLES – Todas as nossas projeções são uma distribuição de probabilidade. Então, essa árvore que você está vendo nas projeções do relatório, logicamente, mostra galhos mais positivos e galhos mais gastos. Isso colocado, prevemos alta de 1,3% no varejo restrito e variação de 0,2% no ampliado.
DCN – Pouco, não?
MEIRELLES – A questão aqui é que a China está desacelerando. E o preço das commodities, que é um grande indutor de disponibilidade de renda, não será tão positivo. A produção agrícola este ano não foi grande coisa e de novo não será tão positiva assim.
DCN – Ou seja, internamente é pouco provável que o juro caia muito. Pelo lado externo, não deverá ser um ano muito fácil. Há alguma saída?
MEIRELLES – De onde poderia vir um cenário externo positivo para 2025? Talvez de uma queda no preço do petróleo, caso tenha fim o conflito no Oriente Médio, ou pelo menos uma trégua, e maior oferta da Arábia Saudita que traga o petróleo a US$ 65 o barril, alguma coisa assim. Isso poderia aliviar um pouco a pressão inflacionária e já no segundo trimestre de 2025 fazer a Selic começar a se distender, reduzir um pouco. As más notícias talvez não sejam tão más assim.
DCN – No Relatório Tendências do Varejo, chamou a atenção a projeção de alta do PIB. Em 2024, é de 2,5%. No ano que vem, 0,5%. São números relativamente distantes do Focus divulgado pelo BC na segunda-feira (4), que prevê crescimentos mais elevados: 3,1% (2024) e 1,93% (2025). Por quê?
MEIRELLES – Sobre 2024, os dados do quarto trimestre, já em função dessas expectativas de taxas de juros mais altas, podem trazer desaceleração um pouco maior do que as expectativas do mercado feitas pelos economistas ouvidos pelo Focus. Sobre 2025, vale reforçar que o Relatório Tendências do Varejo é um exercício econométrico, e todo exercício econométrico você olha e analisa o passado e vê uma trajetória para uma análise mais para frente. Isso dito, é assim que enxergamos 2025.
DCN – O que explicaria esse crescimento tão pequeno no ano que vem?
MEIRELLES – De alguma maneira haverá necessariamente um corte de gastos [públicos]. Num segundo ponto, também a oferta de crédito provavelmente vai se reduzir. Além disso, o elevado custo do capital levará a um menor nível de investimento. Junte-se outro dado que salta aos olhos [no relatório], que é o nível de crescimento da renda: [prevemos] uma queda de 10,8%. Sairemos de um crescimento de 6,6% este ano para essa queda. Por fim, desemprego um pouco acima do que neste ano [de 6,2% para 7,8%]. Tudo somado daria uma taxa bastante mais baixa.
DCN – Haverá ritmo de crescimento baixo na economia, queda na renda e aumento da desocupação. Isso não faria a projeção de inadimplência subir? Nas projeções de vocês ela se mantém.
MEIRELLES – A percepção é de que a oferta de crédito dos bancos é muito bem gerenciada. Está mais nesse controle na origem do crédito. E salvo momentos pontuais a trajetória da inadimplência não dá grandes picos.
DCN – De toda forma, predomina um cenário conservador para 2025, não?
MEIRELLES – E quando as notícias não são boas, existe na economia o chamado Princípio das Notícias Ruins. Quando há um estoque de notícias ruins no horizonte, a decisão do empresariado é esperar.
DCN – E governo federal e parlamento não colaboram para mudar esse conjunto de notícias…
MEIRELLES – É um ponto interessante. Se o governo conseguisse reduzir o estoque de notícias ruins, por exemplo, conseguindo mostrar um nível de corte de gastos que reduzisse ao mínimo o déficit primário, acho que isso seria um bom indutor para 2025.
DCN – Caso um varejista pergunte a você, a partir desse relatório de estreia, o que fazer, qual seria a recomendação?
MEIRELLES – O varejo é um dos setores mais competitivos de todo o mercado, isso se não for o mais competitivo. Diferentemente de outros setores, ele sofre uma competição muito grande entre si, e some-se a isso outros dois fatores importantes. Um é a questão da acelerada evolução tecnológica, o outro são os novos marketplaces internacionais, que também têm gerado pressão sobre o varejo. A recomendação aos varejistas, então, seria fazer um esforço grande em buscar eficiência para reduzir o nível de endividamento.
DCN – Muita análise e muita resiliência…
MEIRELLES – O conselho é tentar surfar um pouco o cenário positivo nestes dois meses finais de 2024 para conseguir minimamente gerar um caixa que possa ajudar a atravessar o período um pouquinho mais difícil de 2025. Existe também outra questão para o varejo hoje: como ter ganhos de escala? Pensar em algumas sinergias, alguns acordos entre varejistas, para aumentar a musculatura do ponto de vista de ganhos de escala.
DCN – Em suma, projetar 2025 como base de 2026?
MEIRELLES – Sim. Como dizem, se o Brasil não é para amadores, o varejo é ainda menos.
Acompanhe no link abaixo uma síntese da primeira edição do Relatório Tendências do Varejo, produzido pelo Centro de Excelência em Varejo (CEV) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV) e assinado por seu editor, Ricardo Meirelles de Faria, e Maurício Morgado, coordenador do FGVcev.
Relatório Tendências do Varejo (01).