ESPECIAL 25 de MARÇO – 160 ANOS. O trabalho invisível daqueles que mantêm a 25 ativa e operante

Uma image de notas de 20 reais
Cristiane Nascimento Silva, operadora de elevadores, pensa em abrir um restaurante na 25 no futuro
(Andre Lessa/Agência DC News)
  • Na região são mais de 36 mil trabalhadores que se misturam ao público que pode chegar a 1 milhão de pessoas em datas sazonais para o varejo
  • Entre veteranos e recém-chegados, relatos apontam pressão do e-commerce, mudança no mix de produtos e uma rua que se reinventa a cada ciclo
Por Pedro Jansen | Letícia Cassiano | Nathalia Lino

[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS]
Sentada no banco estreito do elevador antigo do 106 da Ladeira Porto Geral, Cristiane Nascimento Silva passa o dia controlando a porta de correr, chamando andares e organizando o vaivém de quem chega para comprar, vender ou carregar mercadorias. A rotina parece pequena, mas não é: da cabine onde trabalha há seis anos, ela vê passar parte dos 36 mil trabalhadores que mantêm o maior polo comercial da América Latina em funcionamento – um contingente semelhante ao quadro de funcionários da Petrobras (41 mil) e do GPA (39 mil). Quase ninguém percebe a presença da ascensorista, mas é por ela – e por milhares de estoquistas, operadores de caixa, seguranças, puxadores de carga, motoristas, faxineiros e ambulantes – que a 25 opera diariamente. Entre o barulho do poço exposto, as filas no corredor e as dezenas de viagens por turno, Cristiane testemunha a mesma cena se repetir há décadas na região: trabalhadores invisíveis sustentando uma das economias mais pulsantes do país.

A história de Cristiane é só dela – mas também poderia ser a de muitos. Baiana de Ibicuí, ela chegou a São Paulo em 1991, aos 19 anos, atrás de trabalho e de uma vida possível na cidade grande. Foi vendedora de loja, passou 16 anos como empregada doméstica, depois virou cozinheira de clínica até que surgiu a vaga de ascensorista no prédio onde o marido atuava. Fez o curso obrigatório, aprendeu a operar o elevador antigo e, há seis anos, se tornou o rosto mais constante de um edifício tomado por boxes de artigos religiosos – sobretudo de matriz africana –, onde o cheiro de incenso, as velas acesas e as imagens nas vitrines anunciam que o comércio ali também é feito de fé. Quase sempre no mesmo banco, Cristiane cruza todos os dias centenas de trajetórias que, de algum modo, dialogam com a sua.

“Tem gente que nem responde meu bom dia, mas eu deixo passar. Cada um tá vivendo o seu problema”, diz Cristiane. O jeito de relevar, conta ela, veio da mãe, que por anos pegou estrada de Ibicuí até São Paulo para visitar os filhos e repetia que “cidade grande exige calma e cabeça fria”. A filosofia ajuda no trabalho – e numa profissão que encolhe a cada ano. Segundo dados da RAIS, o Brasil tem pouco mais de 12 mil ascensoristas ainda em atividade, número que cai à medida que os elevadores modernos dispensam operador. Cristiane sabe que, quando chegar a hora, vai precisar de outro caminho. O plano dela é simples e direto: abrir um pequeno negócio de comida, “pra cabeça não ficar parada”, como diz.

Escolhas do Editor

Do elevador, Cristiane cruza diariamente com parte desse contingente – seguranças, ambulantes, vendedores, caixas, puxadores de carga e pequenos comerciantes que conhecem a 25 melhor que qualquer mapa. Josigleison Araújo Souza, segurança e ex-comerciante há mais de duas décadas na região, resume o clima da rua: “A 25 é calor humano. Aqui você cria história todo dia.” Já para Nemias de Souza Barros, ambulante há 30 anos, o apelo continua o mesmo: “Tá tendo oportunidade pra quem tá trabalhando.” Entre os que caminham nas calçadas e os que passam pelas galerias, repetem-se relatos de dias longos, disputa por espaço, variação constante de humor dos clientes e a sensação de que trabalhar na 25 é, ao mesmo tempo, exaustivo e insubstituível. Até quem chegou há pouco tempo reconhece o ritmo. Mariana Noveli, há dois anos à frente de uma loja de lingerie, descreve o cenário sem rodeios: “Aqui tem de tudo. É um mundo.”

O movimento que impressiona quem chega à 25 também mudou aos olhos de quem está ali há décadas. A expansão do e-commerce e das vendas por aplicativos tirou parte do fluxo das lojas e pressionou os comerciantes a rever preços, estoques e formas de atendimento. Ondamar Ferreira, gerente da Armarinhos Fernando e funcionário da rua há 37 anos, enxerga uma virada clara: “Vai perder bastante quem não acompanhar a tecnologia.” O impacto é visível tanto nas galerias quanto nos boxes menores, onde lojistas passaram a conciliar balcão, venda online e entregas rápidas. Para Osório Aparecido de Andrade, há 55 anos na região e gerende da Tecidos São Jorge, a mudança também se reflete na própria composição das mercadorias: “A 25 mudou tudo – produto, público, ritmo. Agora é lotado todos os dias, mas de outro jeito.”

Antes, disse ele, a região era dominada pelos rolos de pano e de quando a chegada do metrô São Bento transformou o fluxo e o comércio. Hoje, ele vê outro ciclo se completar. Ele próprio reconhece que o espaço dos tecidos encolheu e que novas mercadorias tomaram conta das vitrines. “Futuramente não vai ter tecidos aqui”, diz. Mesmo assim, não há desalento na voz. “Sou feliz aqui. Senão, não tava há tanto tempo.” Para ele, a 25 continua sendo um organismo vivo, que perde e ganha identidades, mas nunca deixa de se reinventar.

De volta ao elevador antigo, Cristiane segue controlando a porta de correr enquanto a 25 muda mais uma vez ao redor dela. Entre veteranos que viram o metrô nascer, comerciantes que enfrentam o e-commerce e ambulantes que atravessam décadas na rua, a rotina dos trabalhadores invisíveis continua sendo a engrenagem que sustenta o maior polo comercial da América Latina. Cristiane não aparece nas fotos e dificilmente será lembrada nas histórias oficiais dos 160 anos da 25 de Março – mas, como tantos outros, é parte do que mantém a rua de pé todos os dias. “Aqui passa gente de tudo quanto é lugar”, diz ela, antes de anunciar mais uma viagem. Sobe.

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