[AGÊNCIA DC NEWS]. As livrarias de rua têm sido o grande destaque no mercado editorial desde 2020, de acordo com a Associação Nacional de Livros (ANL). Entre outubro de 2021 e outubro de 2022 foram inauguradas mais de 100 novas livrarias no Brasil, e 60% delas são lojas de rua. Atualmente, o país tem mais de 2,9 mil livrarias. No caminho oposto, observou-se uma tendência de fechamento das grandes redes, como Saraiva (fim de 2023) e Cultura (primeiro semestre de 2024). Um diferencial das lojas de rua é oferecer um acervo mais especializado, segundo a ANL. É o caso da Livraria Gato Sem Rabo, fundada por Johanna Stein em outubro de 2021.
Formada em artes visuais, Johanna tem um catálogo composto exclusivamente por obras de autoras mulheres, cis e trans. Localizada no térreo de um prédio dos anos 1970 na região central de São Paulo, na Vila Buarque, próximo ao Minhocão, a livraria tem como missão colocar as narrativas femininas no centro das discussões literárias. “Queremos que todos tenham acesso a esses pensamentos, inclusive os homens”, disse Johanna, à DC NEWS. A intenção é clara: desmistificar a ideia de que a narrativa masculina é a única, promovendo um espaço onde vozes femininas sejam protagonistas.
AGÊNCIA DC NEWS – O que te motivou a abrir a Gato Sem Rabo?
Johanna Stein – Eu vim das artes visuais, sou bacharel nessa área, e sempre tive grande interesse por artistas mulheres que utilizam o texto como parte de seus trabalhos. Em 2018, comecei uma pesquisa que acabou culminando na criação da livraria. Minha ideia inicial era mapear e entender os livros de artistas mulheres que estavam disponíveis no Brasil, tanto os publicados quanto os traduzidos, e explorar o formato desse catálogo. Inicialmente, pensei em criar uma biblioteca, mas com o tempo, percebi que queria um espaço de trocas, um lugar onde as pessoas pudessem não só estudar, mas também levar esses livros para casa e fazer os textos circularem. Foi assim que cheguei ao formato atual da livraria, que inauguramos em 2021.
AGÊNCIA DC NEWS – Como foi abrir uma livraria em meio à pandemia?
Johanna Stein – A Gato Sem Rabo abriu em outubro de 2021, bem no início da reabertura econômica pós-pandemia, ainda com vários protocolos de segurança e um número limitado de pessoas permitidas dentro da livraria. Foi um momento curioso, pois as filas começaram a se formar na porta, o que me surpreendeu muito. Nos primeiros três ou quatro meses, as pessoas se alinhavam na rua inteira para conhecer o acervo, que era exclusivamente de livros escritos por mulheres.
AGÊNCIA DC NEWS – O que chamou atenção do público?
Johanna Stein – Acho que esse desejo surgiu justamente da falta de um espaço que oferecesse esse tipo de recorte literário. Antes, as livrarias que eu frequentava davam muito mais espaço para uma literatura masculina, branca e eurocêntrica. Aqui, colocamos as mulheres no centro do debate literário. Temos uma programação semanal de encontros, nos quais recebemos tradutoras, editoras e artistas, sempre girando em torno de algum livro. Nossa programação fica disponível no Instagram, e temos um público fiel que frequenta a livraria regularmente, seja do próprio bairro ou de outras regiões, atraído pela curadoria cuidadosa do acervo.
AGÊNCIA DC NEWS – Você acredita que a falta de uma curadoria mais especializada foi um dos fatores que contribuíram para o fechamento das portas de grandes redes tradicionais?
Johanna Stein – Houve uma série de fatores, mas acredito que o futuro da leitura em papel está nas pequenas livrarias de rua. Esses espaços mais intimistas têm se mostrado resilientes. O formato das grandes redes não se sustentou frente às mudanças no mercado. Já as livrarias menores conseguem criar um senso de comunidade e uma experiência mais personalizada, que atrai leitores fiéis.
AGÊNCIA DC NEWS – Por que escolher o Centro de São Paulo para abrir a Gato Sem Rabo?
Johanna Stein – A Vila Buarque é um bairro muito especial para mim. Há alguns anos comecei a frequentá-lo e vi a transformação pelo qual passou. Hoje, é o mais interessante de São Paulo. Muitos dos meus amigos artistas têm seus ateliês aqui, e também temos os cafés e restaurantes mais bacanas da cidade. Além disso, temos o Minhocão, que simboliza a conquista do espaço público pelo esforço popular. Quando decidi abrir a Gato Sem Rabo, quis que ela ficasse nesse local tão plural. A região, especialmente debaixo do elevado, é urbanisticamente ‘residual’, meio indecisa quanto ao seu destino. E é justamente essa incerteza que torna a área fascinante para mim. A livraria acaba se destacando nesse espaço inesperado. Ao caminhar pelas ruas, você está cercado por carros, barulho e pessoas, mas, ao entrar na Gato Sem Rabo, se depara com um ambiente tranquilo e acolhedor, cheio de livros. Essa dualidade entre a confusão urbana e o refúgio que a livraria proporciona me interessa muito e foi parte da motivação para escolher esse lugar.
AGÊNCIA DC NEWS – Qual é a história por trás do nome Gato Sem Rabo?
Johanna Stein – O nome é uma referência direta a um texto da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), presente no ensaio Um Teto Todo Seu (1929). Nesse texto, Woolf faz uma reflexão profunda sobre as diferenças de infraestrutura e oportunidades entre escritoras e escritores nas universidades da época. Ela compara a faculdade das mulheres com a dos homens, observando as disparidades que existiam. Durante essa comparação, Woolf se encontra em uma situação desconfortável, se sentindo deslocada no ambiente masculino. É nesse contexto que ela observa pela janela um gato sem rabo, o que muitas pessoas interpretam como uma metáfora para o desconforto que as mulheres vivenciavam nos meios de produção intelectual, assim como aquele gato que parecia “incompleto”. O nome da livraria vem dessa imagem, que simboliza as escritoras e as mulheres no mundo intelectual, constantemente lutando para ocupar um espaço em um ambiente dominado por homens.
AGÊNCIA DC NEWS – Por que trazer essa curadoria focando em autoras mulheres cis e mulheres trans?
Johanna Stein – É importante desmistificar os cânones literários tradicionais que estabeleceram a voz universal como sendo a masculina, branca e eurocêntrica. As mulheres sempre escreveram, questionaram, refletiram e publicaram em diversas áreas do conhecimento, como economia, política, biologia, ciências sociais e história. Quando vemos uma livraria que oferece apenas livros escritos por mulheres e pessoas queer, é impactante perceber como passamos tanto tempo sem ter acesso a essas vozes durante nossa formação acadêmica. Isso nos leva a refletir sobre o quanto ainda precisamos de espaços que coloquem essas autoras e pensadoras em destaque, trazendo à tona a urgência de rediscutir o que consideramos natural ou universal na literatura e no pensamento.
AGÊNCIA DC NEWS – Como funciona a curadoria desses livros?
Johanna Stein – Com relação à curadoria, trabalhamos com aproximadamente 3.500 títulos de 180 editoras, e estou sempre atenta ao que essas editoras estão publicando. Elas nos informam sobre lançamentos, e temos uma pessoa da equipe que gerencia essa dinâmica de pedidos. Nosso acervo é muito dinâmico, recebemos livros novos quase todos os dias.
AGÊNCIA DC NEWS – Vocês migraram recentemente para o online, como está sendo?
Johanna Stein – Lançamos recentemente nossa loja online, gatosemrabo.com.br, onde já atendemos leitores e leitoras de todo o Brasil. Os clientes podem acessar o catálogo completo, navegar por seleções que organizamos por temas, e fazer compras de maneira mais tranquila e independente. No site, por exemplo, temos seleções como poesia contemporânea ou listas específicas de literatura africana. Então, quem está fora de São Paulo também pode explorar e adquirir nossos títulos curados, tudo de forma mais prática.
AGÊNCIA DC NEWS – Como está a presença das mulheres no mercado literário?
Johanna Stein – Acredito que o cenário mudou nos últimos anos e, felizmente, estamos vendo cada vez mais mulheres liderando livrarias e editoras [segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livro, Snel, 87% das editoras em 2024 são lideradas por mulheres]. O mercado editorial, historicamente dominado por homens, passa por uma transformação significativa. Muitas dessas mulheres donas de livrarias e editoras estão protagonizando uma mudança profunda na forma como o mercado opera, trazendo novas vozes e perspectivas. Ser mulher nesse espaço é um ato de ocupar um território que antes nos era negado. E não apenas ocupar, mas também transformar. Hoje, essas lideranças femininas estão construindo uma narrativa editorial que não só expande o tipo de literatura disponível, mas também questiona os cânones estabelecidos.
AGÊNCIA DC NEWS – Qual foi o faturamento de 2023 da livraria?
Johanna Stein – Nós preferimos não divulgar os números exatos do nosso faturamento, mas tivemos um pico no início das operações, depois uma pequena queda, e agora já estamos em nosso segundo ano de estabilidade. As movimentações do negócio deixaram de ser surpresas para nós.
AGÊNCIA DC NEWS – Quais são os planos futuros da Gato Sem Rabo?
Johanna Stein – Temos muitos! Recentemente, lançamos algo muito especial: nosso primeiro livro. Foi nossa primeira experiência com publicação, com tiragem limitada de 1.000 exemplares, e o resultado ficou incrível. Além disso, para 2025, seguiremos focados na nossa programação de encontros literários, com uma atenção especial à poesia, que tem sido um ponto central para nós.
AGÊNCIA DC NEWS – Qual conselho você daria para as mulheres que estão começando a empreender em qualquer segmento?
Johanna Stein – Um conselho essencial para mulheres que estão começando a empreender é acreditar verdadeiramente no que você faz. E perseverar. Empreender não é como vencer uma corrida rápida; é um processo contínuo, cheio de desafios e aprendizados. Por exemplo, estamos prestes a completar quatro anos com a livraria. Pode parecer pouco, mas esses anos foram cruciais, com muitas conquistas e impacto para a comunidade e o bairro. O segredo está em manter-se firme nas suas ideias e continuar, mesmo que o caminho seja longo. Empreender é sobre essa construção lenta e consistente, que vai criando uma história e um legado ao longo do tempo.