Restaurante O Gato que Ri supera traumas e vai completar 75 anos no Arouche

Uma image de notas de 20 reais
Roberto Rissas, maître do´O Gato que Ri'
(Andre Lessa / Agência DC News)
  • Restaurante foi aberto em 1951 pela italiana Amélia Montanari, que trouxe tudo de navio. Até a imagem que se tornou símbolo da casa
  • Local enfrentou um incêndio e até um crime, mudou de mãos, mas resistiu. E permanece um ícone da região central
Por Vitor Nuzzi Compartilhe: Ícone Facebook Ícone X Ícone Linkedin Ícone Whatsapp Ícone Telegram

[AGÊNCIA DC NEWS]. Aquela imagem do pequeno felino acomodado em um cesto cruzou o Atlântico no início dos anos 1950. No navio, Amélia Mazotti Montanari, 42 anos, trazia tudo: móveis, maquinário e o plano de se estabelecer no Brasil. O local escolhido foi o elegante Largo do Arouche, das bancas de flores, ainda arborizado (no mês de março, um antigo chichá de 30 metros e presumidos 200 anos sucumbiu à chuva), ao lado da Praça da República. Inspirado em um local de Veneza (Chat qui Rit, dos anos 1940), o nome estava longe de remeter a um ristorante, mas carregava a história que dona Amélia trazia da Itália e ficou gravado na memória do Centro de São Paulo. O Gato que Ri completará 75 anos em 2026 e mantém-se um dos ícones do Arouche, ao lado do francês La Casserole, aberto em 1954, três anos depois do Gato – que é como os funcionários se referem ao local.

E não se vive uma jornada de 75 anos sem cicatrizes. O restaurante não apenas sobreviveu ao desgaste gastronômico da região – que reunia outros clássicos da cozinha paulistana, como o Dinho’s, o Rubayat e o Carlino, além da confeitaria Dulca. Resistiu a seus próprios traumas. Um deles foi o incêndio ocorrido em meados de 1989, que destruiu o restaurante – foram 11 meses sem funcionar. Mais ainda: o fogo chegou até o andar de cima, onde dona Amélia morou. Era um domingo cedo, e ninguém se feriu. Mas o estrago não foi apenas material. Todas as fotografias, e não eram poucas, se perderam. As imagens de uma vida inteira se perderam em minutos. Não sobrou nenhuma.

Por isso, as paredes do Gato não têm imagens de sua fundadora, ou mesmo fotos mais antigas – dela no navio, na Itália, nos primeiros tempos de Brasil –, do tempo em que o restaurante era frequentado por artistas, políticos, gente que vinha atrás de seus pratos, as massas caseiras preparadas por ela (ou supervisionadas por ela), como a lasanha verde ao forno, o capelete à bolonhesa. Ou a carne brasada (cupim fatiado) – o brasato, servido na entrada, é acompanhado de escarola. Ou o capelete in brodo, sempre pedido, até mesmo fora das estações mais frias. Só o minestrone saiu do cardápio.

Escolhas do Editor

Mas nem tudo se perdeu nas chamas. Um copeiro, chamado Émerson, correu para o interior do estabelecimento e de lá trouxe, intacta, enrolada, uma tela de aproximadamente 1,50×1,40 metro. A icônica imagem do gato rindo no cesto foi salva. A gravura que dona Amélia trouxe no navio e se tornou um ícone dos paulistanos. Hoje, no fundo do salão, o quadro emoldurado do gatinho que realmente parece rir é o símbolo de um local que resistiu.

CRIME – Porque o incêndio não foi o único baque. Um ainda mais violento havia ocorrido seis anos antes, nos últimos dias de 1983. Já era perto da hora do almoço, e nada de dona Amélia aparecer, como fazia todos os dias. Funcionários subiram até o apartamento – havia um pequeno elevador que dava acesso direto ao imóvel – e a encontraram morta. Aquela senhora de 75 anos havia sido assassinada. O imóvel estava revirado. Ninguém foi preso. Não houve julgamento. Um sobrinho chegou a ser considerado suspeito, mas as investigações não levaram a lugar nenhum. Tornou-se mais um crime sem solução.

Quem vai lembrando de todas essas histórias é o maître d’O Gato que Ri, Roberto Rissas, 54 anos, há 37 no local. Nascido no antigo Hospital Matarazzo e até hoje morando nas proximidades, ele conheceu o restaurante desde pequeno, levado pelo pai, José Carlos, funcionário da casa desde 1960. Começou adolescente, trabalhando nos fins de semana. “Eu andava de bicicleta aqui [no Arouche]”, disse. Criança, ele chegou a conhecer dona Amélia, que o pai sempre apontava como boa patroa. Mais do que isso. Dava conselhos, ajudava financeiramente. “Ela era mãe de muitos.” Após o assassinato, a fase foi muito difícil. “Disseram: vamos lutar para manter.” Após o incêndio, o Gato mudou de mãos, para os donos da pizzaria Micheluccio, por pouco tempo. Hoje, é administrado pelo mesmo grupo da rede Barbacoa, que manteve o ambiente e o cardápio.

Os salões do Gato chegaram a ter espaço para quase 1 mil pessoas. Na véspera de datas familiares, como Dia das Mães ou dos Pais, os masseiros chegavam na véspera para dar conta de preparar os pratos. Vinham pelo menos quatro, o dobro do habitual. Agora, o espaço é menor, mas ainda cabem ali 150 pessoas. São 36 funcionários. Alguns, como Roberto Rissas, estão ali há bastante tempo. O chef João Domingos, por exemplo, tem 40 anos de Gato. A casa funciona das 12h às 16h e das 18h às 23h de segunda a sexta-feira e das 12h às 23h no sábado e no domingo. Também recebe pedidos. A quantidade varia, mas há fins de semana em que até 3 mil caixas com encomendas saem para entregas. Logo na entrada, o Gato tem alguns produtos à venda, como massas e pães, estes fornecidos pela tradicional Padaria Italianinha.

“Tem cliente aqui que você não pede mais o cardápio”, disse Rissas. É público fiel, que vai atrás de seus pratos favoritos. Mas não apenas os habituês formam o público da casa. “Tem cliente jovem que vem aqui porque viu o Gato no TikTok.” O maître comenta que a segurança melhorou, com vigilância e câmeras da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar. “Na pandemia, o Arouche ficou meio esquecido. Agora, deu uma levantada.” Nos dois salões, imagens de São Paulo de outros tempos e estatuetas de gatos. Muitos gatos. Vários foram doados pelos próprios clientes, que também sempre vão tirar fotos diante da tela do gato salvo do incêndio. E que é muito mais do que um retrato na parede.

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