Sérgio Rizzo: o cinema conta a história das pessoas por meio do pequeno comércio paulistano
Sérgio Rizzo: "Meu olhar é de quem tem a minha idade. Nasci em São Paulo, e a vi se transformar"
(Alf Ribeiro/Folhapress)
Crítico e cineasta prepara o terceiro curta sobre comércios que vêm desaparecendo de São Paulo: "No fundo, é um olhar sobre as pessoas"
Para ele, "resistência" ao cinema brasileiro é menor, mas ainda faltam políticas de formação de público e de acesso
Por Vitor Nuzzi
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[AGÊNCIA DC NEWS]. Desde o final de 2023 morando na cidade do Porto – mas com visitas regulares ao Brasil –, o jornalista, professor, crítico e cineasta Sérgio Rizzo, além da “vida mais pacata” e dos filmes, tornou-se adepto (torcedor) “de carteirinha” do Futebol Clube do Porto. Sempre que pode, vai ao Estádio do Dragão assistir aos jogos. Mas o time não vive um bom momento, o que foi possível constatar na recente Copa do Mundo de Clubes, disputada nos Estados Unidos e vencida pelo inglês Chelsea. Eliminado ainda na fase de grupos, o Porto foi um dos últimos colocados. “Toda a última temporada foi catastrófica”, afirmou Rizzo. O clube vive uma transição após eleger novo presidente (André Villas-Boas) – o anterior (Jorge Nunes Pinto da Costa) ficou no cargo durante 42 anos. O Porto também tem técnico novo: Francesco Farioli, “um italiano formado em Filosofia em Florença”. Rizzo se apropria do slogan do Barcelona para afirmar que o Porto é mais do que um clube, “é um símbolo da cultura do norte de Portugal, em oposição ao poderio de Lisboa”.
Mas a vida do outro lado do oceano e as turbulências esportivas não tiraram de Rizzo o foco cinematográfico e o olhar para sua São Paulo. Ele é paulistano, nascido no hospital Beneficência Portuguesa, com infância e adolescência vividas na Vila Prudente, na Zona Leste – foi na Gazeta da Vila Prudente que escreveu sua primeira coluna sobre cinema. Neste instante, entre outros trabalhos, ele se prepara para finalizar o terceiro curta-metragem. O terceiro que conta a história de comércios que estão desaparecendo na cidade. “Esses filmes são na verdade, no fundo, sobre pessoas”, disse o cineasta à AGÊNCIA DC NEWS. “Pessoas como eu e você, que cotidianamente vão tocando o mundo adiante, vão fazendo a coisa funcionar.” O primeiro curta, Passo, fala da rotina de um sapateiro, seu Nelson, cuja loja está prestes a fechar – ele praticamente não aparece, nem os clientes, apenas os pés. O segundo conta a história da Vídeo Connection, locadora que resiste desde 1985 no Edifício Copan. E o terceiro, ainda não finalizado, é sobre uma banca de jornais perto da avenida Paulista.
Vídeo Connection foi selecionado para o 36º Kinoforum, Festival Internacional de Curtas de São Paulo, de 21 a 31 de agosto. Rizzo torce para que se confirme a reabertura do Cine Copan. Destaca a relevância para o Centro e para o mercado cinematográfico. E lembra de sua aventura adolescente naquele cinema. Confira a entrevista abaixo.
AGÊNCIA DC NEWS– Qual é a importância da possível reabertura de um cinema como o Copan, em uma região (Centro) que tanto sofreu com o abandono? SÉRGIO RIZZO– É importante que o espaço um dia ocupado pelo Cine Copan seja retomado pelo mercado cinematográfico. Ele ficou muito tempo ocupado por uma igreja, a exemplo de tantas outras salas em São Paulo e no Brasil. Só o fato de voltar a ser um cinema é motivo de comemoração. Eu gostaria apenas de ter mais informações. Já tinha ouvido essa história na época em que a gente rodou o Vídeo Connection lá no Copan. É uma história que envolve dívidas da igreja, de IPTU, condomínio, e portanto o uso do imóvel estava travado. Mais recentemente, ouvi que isso tinha sido mais ou menos resolvido e que haveria uma empresa interessada no espaço. Que precisa ser totalmente reformado, totalmente reequipado.
AGÊNCIA DC NEWS – Mais um cinema de rua, algo que é cada vez menos visto. SÉRGIO RIZZO – Salas de rua têm diminuído ao longo das últimas décadas em São Paulo. O Copan está dentro de uma galeria, mas tem características justamente de uma sala de rua. É um edifício icônico na cidade, tem uma população fixa e uma população circulante muito grande.
AGÊNCIA DC NEWS– Você foi muitas vezes ao Cine Copan? Que lembranças tem de lá? SÉRGIO RIZZO – Tenho muitas lembranças do Copan, porque ele fazia parte do circuito da minha adolescência, quando eu comecei a ir sozinho aos cinemas. Uma sessão inesquecível foi a de Os Embalos de Sábado à noite, com o John Travolta. Inesquecível por vários motivos. Um deles é que eu não tinha idade. A gente usava carteirinhas escolares falsificadas. Eu já era alto para minha idade [12 ou 13 anos].
Eu me sinto um pouco numa corrida de filmar essas coisas todas, porque daqui a pouco elas desaparecem
Sérgio Rizzo, cineasta
AGÊNCIA DC NEWS– Uma aventura. SÉRGIO RIZZO– Eu lembro da emoção de passar pelo sujeito que controlava a entrada. E estava absolutamente abarrotada a sala. Muita gente via o filme mais de uma vez – o ingresso não era por sessão, era por entrada na sala. Lembro que tinha gente nas escadas, sentadas no chão. Deve ter sido logo no começo da exibição do filme no Brasil [o longa foi lançado aqui em 1978].
AGÊNCIA DC NEWS– O Copan também abriga uma videolocadora, algo quase inimaginável nos dias atuais. Seu filme é um olhar sobre essa “resistência”? SÉRGIO RIZZO– O filme que nós fizemos é, sim, sobre resistência. Ele se insere dentro de uma pequena de curtas-metragens documentais que eu tenho feito sobre tipos de comércio em desaparecimento. O primeiro se chama Passo, que é sobre uma sapataria que ficava localizada na rua da Consolação, no quarteirão entre a alameda Santos e a alameda Jaú. Hoje não existe mais nada naquele quarteirão, porque tudo foi comprado, demolido, inclusive um prédio de uns dez andares.
AGÊNCIA DC NEWS– Algo comum em São Paulo, não? SÉRGIO RIZZO– Foi um sobre tipo de comércio que estava desaparecendo, sobre um tipo de profissional que também estava sumindo e também, portanto, sobre especulação imobiliária. Vídeo Connection é o segundo dessa série. Tem um terceiro, que eu já rodei e daqui a pouco a gente começa a montar, que é sobre uma banca de jornais completamente atípica, que continua funcionando na avenida Professor Alfonso Bovero, quase na esquina com a rua Caraíbas.
AGÊNCIA DC NEWS– Você é testemunha e intérprete das transformações da cidade. SÉRGIO RIZZO – O meu olhar é de quem tem a minha idade. Tenho 59 anos. Nasci em São Paulo, e vi, portanto, a cidade se transformar muito, é um olhar que tenta flagrar a passagem do tempo. Eu me sinto um pouco numa corrida de filmar essas coisas todas, porque daqui a pouco elas desaparecem. A sapataria desapareceu. O sapateiro fechou as portas, pressionado pela compra do imóvel por uma incorporadora.
AGÊNCIA DC NEWS– São formas de olhar? SÉRGIO RIZZO – É claro que o modo mais interessante de olhar para esses filmes, pelo menos o modo que me atrai, é o de olhar para as pessoas, e não só as pessoas responsáveis pelos comércios. No filme Passo, é o próprio sapateiro, mas também as pessoas que frequentavam a sapataria, e que não eram apenas as pessoas interessadas em fazer reparos nos seus sapatos. Havia uma lógica de sociabilização. Elas passavam às vezes só para conversar com o sapateiro, com a outra pessoa que estava lá. Eu aprendi a viver numa São Paulo em que as coisas se davam dessa maneira. Não só nos bairros, mas também numa região central como a da avenida Paulista.
Cena do curta Passo: rastro de uma cidade que desaparece e leva seus personagens (Divulgação)
AGÊNCIA DC NEWS– Não é só o comércio, então? SÉRGIO RIZZO – A sapataria funcionando lá, daquele jeito, era uma coisa insólita, de um tempo que permite muito pouco que essas coisas aconteçam. No filme da locadora, também são as pessoas que circulam ali, além do Paulo [Paulo Sérgio Baptista Pereira, o dono]. O filme da banca, a mesma coisa, são os dois irmãos que cuidam, herdaram do pai, e tem toda uma história em família. É um ponto de encontro das pessoas. Esses filmes são na verdade, no fundo, sobre pessoas. Pessoas como eu e você, que cotidianamente vão tocando o mundo adiante, vão fazendo a coisa funcionar. Esses filmes nasceram dessa ideia de encontro.
AGÊNCIA DC NEWS– Filmes recentes parecem ter dado outra dimensão à produção brasileira, pelo menos fora do país. E por aqui? SÉRGIO RIZZO – Eu diria que conseguiram sim, de uma maneira ainda tímida, convencer parte do público brasileiro a apostar, digamos assim, em uma sessão de filme brasileiro. Acho que parte das pessoas que tinha ainda o hábito de ir ao cinema, mas alguma resistência, reconsiderou. É tímido ainda, mas é algo a comemorar também, a celebrar. De qualquer maneira, esses fenômenos são de médio e longo prazo.
AGÊNCIA DC NEWS– O que precisa ser feito? SÉRGIO RIZZO – A reconquista, digamos, do público pelo cinema brasileiro não pode depender só de um, dois, três filmes que ganham prêmios. Isso passa por uma série de aspectos, entre eles a formação de público, de espectadores, passa por iniciativas voltadas sobretudo a jovens, adolescentes, passa por uma presença em escolas, que torne para esse público uma coisa natural assistir um filme brasileiro.
AGÊNCIA DC NEWS– A realização contínua de mostras e festivais de cinema no Brasil – além da extensa produção – comprova vigor da indústria do audiovisual e dos autores brasileiros, ainda que nem sempre isso seja reconhecido, ou até atacado? SÉRGIO RIZZO – A indústria de audiovisual no Brasil é muito vigorosa. A tristeza é que ela é desproporcionalmente pouco conhecida pela população. E é vítima de preconceito de quem nem vê filmes brasileiros. Nem vê e diz que é isso ou aquilo. Quando tenho a oportunidade, eu pergunto: o que você andou vendo? A pessoa diz um filme, dois, nos últimos dois, três anos. Eu faço parte do comitê de seleção do É Tudo Verdade [Festival Internacional de Documentários]. Só lá são 100, às vezes 120 filmes inscritos, o que significa que a produção de documentários brasileiros é muito maior do que isso por ano.
AGÊNCIA DC NEWS – O que explica essa má vontade? SÉRGIO RIZZO – O preconceito tem a ver com o desconhecimento. Lamentavelmente. É uma indústria vigorosa pouco conhecida em seu próprio país.
AGÊNCIA DC NEWS– Falta informação também? SÉRGIO RIZZO – Além de políticas de formação de público, precisa ter políticas de acesso. Você não pode querer que as pessoas em Cidade Tiradentes [bairro da Zona Leste paulistana] assistam a filmes brasileiros se não tem filme brasileiro lá. Citei Cidade Tiradentes porque lá tem um centro de formação e tem uma sala da SPCine [empresa de audiovisual da prefeitura de São Paulo]. Então, até dá para ver, mas eu me pergunto quantas pessoas sabem que tem uma sala de cinema, sabem que o preço é absolutamente popular e têm, portanto, à mão essa oportunidade de lazer. Me pergunto: quantos sabem, e dos que sabem, quantos criaram o hábito de ir até lá? O mesmo vale para todo o circuito da SPCine que se espalha principalmente por bairros periféricos da classe trabalhadora em São Paulo. Quem sabe [onde ficam]? São salas em muitos casos dentro de escolas. Estamos falando de uma batalha longa.