Museu do Livro Esquecido tem apenas dez meses e reforça vocação cultural do Centro
Aberto há dez meses no bairro da Liberdade, em São Paulo, Museu do Livro Esquecido é uma ode à obra – desde a escrita até a encadernação
Está instalado em um casarão centenário, perto das praças da Sé e João Mendes. Livro e casa "carregam a marca do tempo", diz o coordenador
Por Vitor Nuzzi
[AGÊNCIA DC NEWS]. No limite da Sé com a Liberdade, entre a Conde de Sarzedas e a dos Estudantes, fica uma ruazinha de apenas um quarteirão e muito tranquila, mas ao lado da agitação cotidiana das praças da Sé e da João Mendes. Em meio a imóveis mais novos, um casarão centenário abriga o Museu do Livro Esquecido, que na última terça-feira (17) completou dez meses de funcionamento e até agora recebeu aproximadamente 5 mil visitantes. Um espaço criado para ressaltar o livro físico, em tempos de tablets e e-readers. “O livro carrega uma história pela sua própria materialidade”, afirmou o coordenador do museu, Pedro H. Zimerman. “A forma como as palavras estão dispostas na página nunca está desprendida no ar.”
A própria passagem do tempo nas páginas do livro enriquece a leitura, acrescenta o coordenador. “Por isso, a ideia de conexão com a casa.” O casarão é obra do arquiteto italiano e professor Felisberto Ranzini (1881-1976), que era criança quando sua família veio para o Brasil. Ele projetou o imóvel na rua Santa Luzia para morar com a família, a partir de 1924. Foi residência dos Ranzini por três gerações, até 2006, vendida pelos netos e restaurada por um grupo de sócios, que adquiriu o local já idealizando o museu. Ranzini assina várias obras na capital paulista, como a Casa das Rosas (1935), na avenida Paulista, que originalmente foi residência do casal Lúcia Ramos de Azevedo e Ernesto Dias de Castro. Lúcia era filha de Ramos de Azevedo, dono do escritório de arquitetura que projetou, entre vários clássicos paulistanos, o Theatro Municipal (1911) – em colaboração com os italianos Cláudio Rossi e Domiziano Rossi – a agência central da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (1922) e o Mercado Municipal (1933). Ranzini trabalhou no famoso escritório de Ramos de Azevedo por quatro décadas.
A casa da Rua Santa Luzia foi tombada em 2015 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Tem porão, onde hoje funciona uma oficina de encadernação mantida pelo museu. Ali pode ser vista uma antiga prancha de desenho, além de um tipógrafo e até uma geladeira dos anos 1930, cujo sistema de refrigeração era feito com barras de gelo. Naquela área também havia uma câmera escura, laboratório fotográfico de Felisberto Ranzini, e uma adega. No quintal, uma placa quase escondida indica o local da bica de Santa Luzia, onde as pessoas iam se abastecer. A fonte foi lacrada pelo serviço sanitário no início da década de 1920.
CRIME – Como convém a um espaço de preservação da memória – assim como é comum a cada canto do Centro paulistano –, há muitas camadas de história num mesmo endereço. E no caso da bica, palco de um crime famoso na corte brasileira de Dom Pedro I. Ali, Maria Domitila de Castro (1797-1867), de tradicional família paulista e futura marquesa de Santos, foi esfaqueada aos 21 anos, em março de 1819, pelo marido, o alferes mineiro Felício Pinto Coelho de Mendonça (1789-1833). Ela sobreviveu e três anos mais tarde tornou-se amante de Dom Pedro I, com quem se relacionou entre 1822 e 1829 e teve cinco filhos. Titília, como era conhecida, era uma mulher à frente de sua época, casou-se mais uma vez, teve ativa vida política e social e construiu uma fortuna, que a mantinha independente. Seu corpo foi enterrado no Cemitério da Consolação.
Casarão foi aberto em 1924, para abrigar a família de Felisberto Ranzini (Andre Lessa / Agência DC News)
Um lugar de tanta história merecia se tornar museu, mesmo que por outros motivos. O acervo, que ainda está sendo catalogado, reúne 7 mil exemplares. São dois acervos, para ser mais preciso: o acadêmico (história do livro e tipografia) e o de livros raros e periódicos. O mais antigo é de 1489, com cartas de São Jerônimo. Tem edições do século 16 entre as obras mais antigas e exemplares em grego, árabe, hebraico e latim. Dos brasileiros, uma edição de Quarto de Despejo com dedicatória da autora, Carolina Maria de Jesus (1914-1977), datada de 8 de setembro de 1960, primeira edição, da Livraria Francisco Alves. Em novembro do ano passado, o museu promoveu um clube de leitura sobre o livro, com a presença de Vera, filha de Carolina. Em fevereiro deste ano, a obra escolhida foi O Alienista, de Machado de Assis, com dois encontros. No primeiro, os participantes receberam cópias da primeira publicação, publicada entre 1881 e 1882 no jornal A Estação, que circulou no Rio de Janeiro entre o final do século 19 e o início do século 20. No segundo, com o pesquisador Ricardo Iannace, uma das discussões foi justamente sobre ler em formatos diferentes (livro e folhetim). A partir do próximo sábado (28) e durante um ano, até 28 de junho de 2026, o museu promove a exposição O Triunfo da Vaidade: Matias Aires e suas Reflexões, com base em obra do autor e filósofo brasileiro (1705-1763).
O museu já organizou duas turmas de costura. De livros, claro. Em maio, por exemplo, a encadernadora e restauradora Mônica Balestrin (@oficiodolivro), falou e ensinou sobre Costura Medieval. O museu forneceu couro e outros insumos para que cada participante pudesse fazer seu próprio livro ou caderno. É um exemplo do objetivo do museu: preservar a própria memória do livro, a partir de sua confecção. Segundo dizeres da própria instituição ao informar sobre o evento, “os livros, assim como as pessoas, envelhecem, e não podemos impedir seu fim natural”. O espaço, inclusive, tem uma área de Conservação Preventiva. Pela descrição, é através de ações diretas ou indiretas, eles se propõem a atuar na linha de frente da batalha contra o tempo, “garantindo a durabilidade dos bens culturais e assegurando sua acessibilidade hoje e no futuro”.
Pedro Zimerman, coordenador do museu: “O texto nunca está desprendido no ar” (Andre Lessa / Agência DC News)
MUSEU DO LIVRO ESQUECIDO Onde: Rua Santa Luzia, 31, Liberdade. Horários: sábados e domingos, das 10h às 17h – ingressos a R$ 20 (R$ 10 a meia entrada). Visitas guiadas às terças, em seis horários, a partir das 15h50. Quanto: R$ 20 (geral), R$ 15 (moradores da Sé, da Liberdade e do Glicério) e R$ 10 (meia entrada).
(Andre Lessa / Agência DC News)
HISTÓRIA
Fachada do antigo Casarão Ranzini, na Liberdade
(Andre Lessa / Agência DC News)
MEMÓRIA
Paredes na entrada da casa tem pinturas do próprio arquiteto
(Andre Lessa / Agência DC News)
CONSERVAÇÃO
Salão na parte térrea abriga parte do acervo
(Andre Lessa / Agência DC News)
ACERVO
Local tem 7 mil títulos, que ainda estão sendo catalogados
(Andre Lessa / Agência DC News)
LITERATURA
Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, foi tema de clube de leitura