ESPECIAL 25 DE MARÇO –160 ANOS. Como a presença chinesa transformou o maior corredor de importados do país

Uma image de notas de 20 reais
Nas galerias, pequenas lojas, com 4 metros quadrado, impõem o estilo chines no comércio popular
(Paulo Pinto/Agência Brasil)
  • Modelo chinês de galerias e miniboxes impulsiona a marca de 3.800 lojas na região; hoje, 53% delas está sob comando de asiáticos
  • Paulo Chaina, dono da PLB, é chinês, mas está no Brasil desde os cinco anos e foi aqui que construiu seu império online e físico
Por Melina Dias | Paula Cristina

[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS]
Antes de transformar a importadora PLB, localizada na 25 de Março, em uma vitrine digital com mais de 2 milhões de seguidores nas redes sociais, o chinês Li Jin (Paulo) percorreu um caminho que começa na travessia de seu pai nos anos 1990 e passa por dívidas milionárias, feiras improvisadas e uma reinvenção completa do negócio familiar na era dos vídeos curtos. Ao lado da esposa, Feiping Lin (Lulu), ele se tornou o rosto mais visível de um movimento muito maior. Nas últimas duas décadas, imigrantes chineses implantaram na região um modelo próprio de comércio, com galerias hiperadensadas, miniboxes de poucos metros quadrados e uma lógica de sublocações sucessivas. Hoje, os chineses profissionalizaram importações, ampliaram a presença digital e passaram a disputar narrativas em um ambiente marcado por estigmas, acusações de pirataria e até investigações. Trata-se da 25 dos chineses, reportagem que integra o Especial 25 de Março –160 Anos, produzido pela AGÊNCIA DC NEWS e que apresenta hoje um capítulo de coragem, adaptação e uma arquitetura comercial da comunidade asiática que hoje representa 53% dos negócios da região, segundo a Univinco. 

A trajetória de Lulu e Paulo se insere em movimento que começou em 1980, mas se popularizou no início dos anos 2000, quando São Paulo passou a compor uma rota transnacional entre Brasil e China. Segundo o sociólogo Carlos Freire da Silva, em sua tese Conexões Brasil-China: a migração chinesa no centro de São Paulo, tudo começa com o fortalecimento das cidades de Guangzhou e Yiwu como polos atacadistas que criaram “uma dinâmica socioeconômica que liga centros comerciais no sul da China ao comércio popular do Centro de São Paulo”. Essa descrição do narra o traço da história de Paulo. A trajetória de sua família começa com a chegada do pai, que desembarcou no Brasil em 1998 após um mês de viagem de navio em condições precárias. Por aqui passou a morar com outros 15 imigrantes em um apartamento pequeno no Centro. Sem falar português e praticamente sem dinheiro, passou fome e foi para a Argentina trabalhar como cozinheiro. Voltou ao Brasil no começo dos anos 2000, quando as feiras da madrugada e a 25 de Março chamaram atenção dos chineses que queriam exportar. “Ele acordava às três da manhã, carregava mercadoria e vendia nos bairros. Trabalhava das sete da manhã às nove da noite, de segunda a segunda”, disse Paulo.

Foi então que Paulo chegou ao Brasil, aos cinco anos, ainda carregando seu nome chinês Li Jin, que anos depois se tornaria “Paulo Chaina” — escrito assim mesmo, com a, em uma forma abrasileirada de dizer “China” que acabou virando a persona que ele usa nos vídeos e na comunicação com os clientes. Entre feiras, estacionamentos, lojas improvisadas e mercadorias carregadas na mão, Paulo acompanhava o pai no circuito da cidade, em especial da Feirinha da Madrugada, que aconteceu por anos na 25 de Março e depois no Brás. Por algum tempo, disse Paulo, a estrutura era desorganizada e sem regulamentação clara. “Naquela época, qualquer coisa vendia. Você segurava uma cadeira e vendia.” O dinheiro acumulado permitiu dar o passo seguinte: aprender a importar diretamente da China.

Escolhas do Editor

A expansão inicial levou a família a ocupar três andares de um prédio comercial na região da 25, isso por volta de 2010. Mas conflitos familiares, sociedades mal resolvidas e problemas de gestão abriram um rombo que consumiu tudo o que tinham e resultou em uma dívida de R$ 7 milhões. Paulo, ainda adolescente, assumiu ao lado do pai a tentativa de salvar o negócio. “Falavam que eu era vagabundo, que não prestava. Mas eu disse para o meu pai: todo mundo pode abandonar você – eu não.” A reconstrução ganhou tração durante a pandemia, quando parte dos comerciantes chineses deixou o Brasil e as importações entraram em colapso. Paulo, seu pai e Lulu (sua esposa) decidiram ficar. “Eu pensava: ‘se eu morrer hoje ou amanhã, pelo menos meu filho não passa fome.’” Deu certo. Com a dívida quitada e o negócio reestruturado, a família fundou a PLB — nome que nasceu quase por acidente, depois que uma gráfica chinesa recusou o nome original (Paulo Bijuterias) por considerá-lo “longo demais”.

Nessa época também veio a mudança de estratégia. Paulo percebeu que não venceria a concorrência apenas com preço nas plataformas digitais. A disputa por preço na Shopee já era imensa. Ele decidiu, então, criar uma marca-persona. Reunindo bom-humor, propaganda e curiosidade sobre a vida que leva com a esposa no Brasil ele produziu conteúdos virais, com mais de 5 milhões de visualizações, fazendo desde paródias musicais até brincadeiras com sua origem. Esse estilo de vídeos, aliado à persona expansiva e divertida de “Paulo Chaina” e sua esposa Lulu, virou assinatura: eles saíram de dois funcionários antes da pandemia para mais de 40 atualmente, e uma presença online que hoje ultrapassa 2 milhões de seguidores entre Instagram, TikTok, Kwai e YouTube. A empresa também acaba de lançar um novo ponto logístico no Brás, que se soma ao espaço que ocupa na Galeria 25 de Março. “Esforço traz felicidade. Esforço faz diferença. Pode acontecer qualquer coisa, mas você tem que continuar”, disse Paulo.

Paulo Chaina, da PLB Importadora. Empresa foi de dois funcionários para 40 em cinco anos

MADE IN CENTRO – O fluxo migratório em que Lulu e Paulo estão inseridos não apenas reposicionou a 25 de Março na rota internacional de comércio, mas também reconfigurou a vida cotidiana do Centro. À medida que famílias chinesas se estabeleciam no entorno, surgiram creches bilíngues, serviços especializados e redes de apoio comunitário que facilitaram a adaptação dos recém-chegados. Um dos efeitos mais simbólicos ocorreu no Colégio São Bento, que enfrentava queda de matrículas no início dos anos 2000, e desde 2007 tem investido para atrair alunos chineses oferecendo acolhimento aos recém-chegados. Hoje, mais de um terço do corpo discente tem lastro asiático. Na própria 25 outras mudanças aconteceram, em especial na arquitetura das antigas lojas de armarinhos, popularizadas pelos árabes, que perderam espaço para um sistema de galerias verticais, boxes de poucos metros quadrados e subdivisões sucessivas do espaço, que multiplicou a capacidade comercial da região.

Os números impressionam. Se, em 1920, a Prefeitura contabilizava cerca de 500 lojas na região, hoje a área abriga 3.800 estabelecimentos, dos quais 3.210 estão em prédios comerciais e galerias — 84% do total, segundo o Censo 2024 da Univinco. Embora todos os imóveis da região pertençam a famílias sírio-libanesas, a operação cotidiana mudou: 53% do comércio ativo está hoje nas mãos de comerciantes chineses e de outros países asiáticos, de acordo com a Univinco. Para o pesquisador Carlos Freire da Silva, essa lógica hiperadensada tornou-se “um dos motores de renovação do comércio popular da região”, redefinindo a paisagem da rua e consolidando a 25 como um dos maiores corredores de produtos importados do país

IMPASSE – O crescimento do modelo chinês de comércio também trouxe tensões – algumas antigas, outras reavivadas em escala global. Além do estigma recorrente de “produtos falsificados” que ronda a rua há décadas, a comunidade enfrenta hoje uma pressão mais complexa, associada à pirataria digital, às disputas fiscais e à percepção de que a importação de baixo custo ameaça setores tradicionais do varejo. Nesse sentido, a Univinco, que representa os lojistas da região da 25 de Março, encaminhou um ofício ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pedindo apoio mais enfático contra a sonegação fiscal e a pirataria na região. O documento destaca a importância da região para a economia local e a necessidade de proteção contra a concorrência desleal. Segundo o diretor da Univinco Jorge Dib, a entidade oferece sua experiência prática e propostas para o fortalecimento da legalidade e da formalização no setor. “Aguardamos a resposta do governo brasileiro sobre o pedido de apoio”, afirmou.

A crítica ganhou peso adicional com a inclusão da Rua 25 de Março no Review of Notorious Markets for Counterfeiting and Piracy, relatório anual do governo dos Estados Unidos que lista mercados físicos considerados polos de circulação de produtos falsificados. No documento, a área é descrita como “um dos maiores mercados atacadistas e varejistas de produtos falsificados no Brasil e na América Latina”, com mais de mil lojas vendendo itens de todos os tipos. Segundo a análise, a região é um polo com “estruturas para distribuir mercadorias falsificadas e pirateadas por toda São Paulo e para outras regiões do Brasil”. A menção foi reforçada quando Donald Trump voltou a citar a 25 como risco à “economia livre” para justificar as tarifas impostas ao Brasil.

A resposta local combina fiscalização intensiva e coordenação entre órgãos públicos: segundo o subprefeito da Sé, Marcelo Vieira Salles, a diretriz é clara. “Vamos apreender tudo o que não tem nota ou origem, que possa burlar o fisco ou descumprir normas”. Em entrevista à AGÊNCIA DC NEWS, ele afirmou que as operações são feitas em conjunto com a Receita Federal, a Delegacia Antipirataria e a Fazenda Estadual, e apresenta os números: 35.879 apreensões até setembro de 2025, ante 28.727 em 2024. Para Salles, segurança e ordenamento “caminham juntos” e são determinantes para garantir o funcionamento diário da rua, mesmo sob escrutínio internacional.

Apesar das tensões, a presença chinesa na região não se resume ao comércio. Nos últimos anos, festivais como o Festival da Lua e a Festa Luzes da China, realizada no Pari, passaram a reunir milhares de pessoas e funcionam como ponte simbólica entre as comunidades que dividem o Centro. As associações chinesas, em parceria com comerciantes locais, iluminam ruas, promovem apresentações culturais e reforçam laços num território marcado por disputas e convivências. São gestos discretos, mas reveladores: em meio ao ruído político e às pressões externas, a rotina da 25 também se sustenta por encontros cotidianos – como o de Lulu e Paulo, que seguem vendendo, gravando vídeos e conversando com clientes de todos os cantos. No fim, é nessa mistura que a rua continua reconhecendo a si mesma.

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