ESPECIAL Comércio Histórico. Há quase um século, Auto Posto Alto da Aclimação mantém relevância na cidade dos carros

Uma image de notas de 20 reais
Milena Villaverde comprou o posto em 2015, e fachada ainda é a mesma de 1929
(Andre Lessa/Agência DC News)
  • Prédio do Auto Posto Alto da Aclimação é tombado pelo Condephaat por valor histórico. Estrutura funciona como posto desde 1929
  • O lava-rápido é a mais nova aposta da operação. Tíquete médio é de R$ 150, puxado pelo consumo de etanol e lançamento de novos serviços
Por Anna Scudeller

[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS]
Fundado em 1929, quando o automóvel ainda era exceção no Brasil e São Paulo começava a se adaptar à circulação de veículos motorizados, o Auto Posto Alto da Aclimação, conhecido historicamente como Posto Dansa, iniciava sua operação. No atravessar das décadas o espaço se manteve visualmente intacto, resultando em 2017, no tombamento do prédio pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), do Estado de São Paulo. Conforme o órgão, o espaço é um dos poucos remanescentes dos primeiros modelos implantados na capital paulista por empresas estrangeiras durante as décadas de 1920 e 1930. Algo “bárbaro” na visão da atual proprietária, Milena Villaverde. Eliezer Cavallini, marido e sócio, soma ao coro: “É uma história viva. Isso é legal, as pessoas vêm aqui e falam da relação delas com o posto”. Carregado de histórias que vão das memórias dos consumidores à edificação tombada e centenária, o espaço recebe da AGÊNCIA DC NEWS o prêmio Comércio Histórico – Estabelecimentos Tradicionais de São Paulo, da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

Se a tradição e as memórias ajudam a tornar o espaço referência na região da Aclimação, foi a adaptação aos novos tempos e inserção de serviços complementares ao abastecimento de veículos automotores que garantiram aos atuais sócios a manutenção da viabilidade financeira do negócio. E esse exercício é contínuo. O mais novo serviço é o lava-rápido, que começou as operações no início de dezembro. De acordo com Milena, a ideia foi aproveitar um espaço que até então era “considerado morto” da entrada do posto. Ela explica que optaram pelo lava-rápido pelo fato de o negócio não comportar serviços como de troca de óleo, que exige uma estrutura específica e maior qualificação. “Agora, o lava-rápido é água de reuso, de captação”, disse. “Então, acaba sendo uma coisa mais tranquila de se fazer para atender os próprios clientes.”

A empresária, que trabalha no ramo de postos de combustíveis desde 2012, enfrenta no posto Aclimação, antigo posto Dansa, um desafio adicional: por ser um prédio tombado, todas as alterações, ampliações e reformas são reguladas pelo município de São Paulo, inibindo mudanças que possam descaracterizar o local. Para “compensar as limitações físicas do tombamento” a solução foi ampliar a oferta de produtos, com a venda de sorvetes e bebidas, itens que aumentam o tíquete médio do negócio e levam novos visitantes. São as saídas viáveis para um local que nasceu quando o Brasil somava pouco mais de 105 mil veículos automotores registrados, segundo o IBGE. Hoje, apenas na cidade de São Paulo há 9,9 milhões de veículos para 11,9 milhões de pessoas.

Escolhas do Editor

Assimilar as alternativas diante do tombamento não foi fácil, nem rápido. Quando o casal adquiriu a empresa, em 2015, nem sequer imaginava a possibilidade de o edifício ser tombado. Eliezer reforça o choque da época. “Recebemos uma carta do Condephaat, do nada”, afirmou. A notificação formal do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) veio dois anos depois, em 2017, em um momento em que casal planejava realizar reformas no edifício. O grau de tombamento do posto foi total, o que implica na impossibilidade de expandir a área construída ou fazer modificações na estrutura. Devido ao status quase centenário do local, frequentemente são necessárias restaurações – mas, segundo Eliezer, sem qualquer isenção ou benefício fiscal. “Fica uma sensação de injustiça”, disse. De acordo com ele, os gastos com pintura e esgoto podem chegar a R$ 15 mil e R$ 10 mil, respectivamente. O casal desembolsa todo ano R$ 22 mil de IPTU. “Temos zero incentivo para manter o posto funcionando.”

A estrutura pode ser original, mas o negócio de dez colaboradores opera com licenças e normas técnicas atualizadas. “As pessoas perguntam se as bombas de combustível são daquela época”, afirmou Eliezer. “Não teria nem como, colocaria todo mundo aqui e em volta em risco.” O fluxo de clientes é intenso, mas o casal nunca pensou em quantificá-lo. “Mas aqui é muito bom de tíquete médio”, disse o empresário. Em média, cada consumidor deixa R$ 150 ao abastecer. O valor é puxado pelo consumo do etanol, que segue como carro-chefe da casa. Milena diz que o Auto Posto Alto da Aclimação recebe clientes de todo tipo, mas há um público fiel. “Tem quem vem aqui desde a infância porque vinha com os pais. É muito bonito”, afirmou.

Apesar de apreciadores da região, o casal se queixa da segurança no entorno do posto, localizado na esquina da avenida Aclimação com a rua Pais de Andrade. Eliezer explica que a necessidade de o posto de funcionar 24 horas surgiu após casos de furto e vandalismo. “Fechamos à noite e voltamos de manhã e roubaram as placas, as tampas de aço do chão…” Ele afirma já ter ocorrido de a equipe presente no estabelecimento ser abordada em tentativas de assalto, o que culminou na contratação de um segurança. Para ele, o funcionamento de domingo a domingo é a única alternativa.

Com tanto movimento e história, hoje, o local também é visado como cenário para gravações e sessões fotográficas, mas com a rotina 24 horas por sete dias da semana, a negociação fica difícil. Milena disse que certa vez uma marca de bolsas tentou usar o espaço durante o fim de semana para as fotos de uma campanha de marketing. A sessão não ocorreu. “Pedimos o equivalente do faturamento do fim de semana e disseram que ultrapassava o orçamento deles”, afirmou. “Não chegamos a descobrir qual era a marca, mas era alto padrão.” Segundo Eliezer, o mesmo ocorreu com uma fintech de soluções financeiras que pretendia usar o espaço durante um dia para uma gravação. “Consideramos fechar para eles”, disse o empresário. “Mas queriam nos pagar R$ 2 mil. Não tem nem como.”

SUCESSÃO – Aos 53 anos, Milena diz que a empresa não seguirá para a segunda geração. A filha do casal, de 24, nunca cogitou tocar o empreendimento ou o outro posto de combustível que o casal. “Ela foi para outro campo, foi estudar medicina veterinária”, afirmou. Milena resume: “Para cuidar de um negócio como esse, tem que gostar e sentir prazer”. O marido, de 48, atesta a afirmação. O avô de Eliezer teve uma garagem com posto de gasolina na rua São Caetano, o que encantou o então rapaz. “Gostei muito. Gostei e aprendi só isso”, disse ele. “Trabalho com isso há 30 anos.”

Mesmo assim, a empresária não desiste da paixão pelo segmento. Milena antecipa que comprou outro posto com o marido, agora na Rodovia Ayrton Senna, antiga Rodovia dos Trabalhadores e Radial Leste. “Não tenho a pretensão de parar, mas também não espero que alguém queira seguir nos meus moldes”, disse. Ela não exclui a eventual venda do Auto Posto da Aclimação, dado os gastos e a falta de incentivo, mas a felicidade e ânimo que o negócio traz ainda superam o lado negativo. Responsável por um negócio próximo do centenário, o casal não tem planos de parar – talvez em um posto de gasolina, mas de seguir viagem.

PASSADO HISTÓRICO – A história do ponto acompanha o cresciemento do Brasil. Inaugurado anterior à criação da Petrobras, quando o Brasil dependia quase integralmente de combustíveis importados e a distribuição de derivados era dominada por empresas estrangeiras. Nos anos 1920, companhias como a Anglo-Mexican Petroleum Company Limited (braço da atual Shell no país) passaram a estruturar os primeiros pontos fixos de abastecimento nas cidades brasileiras, substituindo a venda de combustível em tambores e carroças por estações permanentes. A inovação era uma tendêncial internacional. Foi nesse contexto de modernização incipiente da mobilidade urbana que o posto da Aclimação entrou em operação, em 1929, como parte de uma infraestrutura ainda rara, voltada a um automóvel que começava a se inserir no cotidiano das grandes cidades.

Ao longo das décadas seguintes, a frota brasileira cresceria rápido. Em novembro deste ano, eram 128,6 milhões de veículos de todos os tipos (dos leves aos pesados, além de motocicletas). O município de São Paulo não apenas acompanhou o movimento, como o liderou e se urbanizou em torno do carro – enquanto a cidade representa 5,6% (11,9 milhões de habitantes) do total da população brasileira (213,4 milhões), a frota inscrita na capital paulista (9,9 milhões) equivale a 7,7% do total do país. E o posto da Aclimação permaneceu no mesmo endereço acompanhando tudo. A edificação preserva características arquitetônicas raras entre os remanescentes desse tipo de infraestrutura: sua linguagem neocolonial hispano-americana, comum nos postos construídos pelas grandes petrolíferas na época, manifestava-se em frontões arredondados, colunas largas e elementos decorativos que remetiam aos modelos trazidos do México e dos Estados Unidos, além de um painel de azulejos no topo da fachada com a concha e a inscrição da Anglo Mexican Petroleum Company Limited, nome original da Shell no Brasil. Essa combinação entre permanência física, linguagem arquitetônica e função urbana contínua ajuda a explicar por que o imóvel atravessou a modernização da cidade sem perder sua identidade – e por que, décadas depois, foi reconhecido como patrimônio histórico que é.

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