[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS]
Fundado em 1929, quando o automóvel ainda era exceção no Brasil e São Paulo começava a se adaptar à circulação de veículos motorizados, o Auto Posto Alto da Aclimação, conhecido historicamente como Posto Dansa, iniciava sua operação. No atravessar das décadas o espaço se manteve visualmente intacto, resultando em 2017, no tombamento do prédio pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), do Estado de São Paulo. Conforme o órgão, o espaço é um dos poucos remanescentes dos primeiros modelos implantados na capital paulista por empresas estrangeiras durante as décadas de 1920 e 1930. Algo “bárbaro” na visão da atual proprietária, Milena Villaverde. Eliezer Cavallini, marido e sócio, soma ao coro: “É uma história viva. Isso é legal, as pessoas vêm aqui e falam da relação delas com o posto”. Carregado de histórias que vão das memórias dos consumidores à edificação tombada e centenária, o espaço recebe da AGÊNCIA DC NEWS o prêmio Comércio Histórico – Estabelecimentos Tradicionais de São Paulo, da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).
Se a tradição e as memórias ajudam a tornar o espaço referência na região da Aclimação, foi a adaptação aos novos tempos e inserção de serviços complementares ao abastecimento de veículos automotores que garantiram aos atuais sócios a manutenção da viabilidade financeira do negócio. E esse exercício é contínuo. O mais novo serviço é o lava-rápido, que começou as operações no início de dezembro. De acordo com Milena, a ideia foi aproveitar um espaço que até então era “considerado morto” da entrada do posto. Ela explica que optaram pelo lava-rápido pelo fato de o negócio não comportar serviços como de troca de óleo, que exige uma estrutura específica e maior qualificação. “Agora, o lava-rápido é água de reuso, de captação”, disse. “Então, acaba sendo uma coisa mais tranquila de se fazer para atender os próprios clientes.”
A empresária, que trabalha no ramo de postos de combustíveis desde 2012, enfrenta no posto Aclimação, antigo posto Dansa, um desafio adicional: por ser um prédio tombado, todas as alterações, ampliações e reformas são reguladas pelo município de São Paulo, inibindo mudanças que possam descaracterizar o local. Para “compensar as limitações físicas do tombamento” a solução foi ampliar a oferta de produtos, com a venda de sorvetes e bebidas, itens que aumentam o tíquete médio do negócio e levam novos visitantes. São as saídas viáveis para um local que nasceu quando o Brasil somava pouco mais de 105 mil veículos automotores registrados, segundo o IBGE. Hoje, apenas na cidade de São Paulo há 9,9 milhões de veículos para 11,9 milhões de pessoas.
Assimilar as alternativas diante do tombamento não foi fácil, nem rápido. Quando o casal adquiriu a empresa, em 2015, nem sequer imaginava a possibilidade de o edifício ser tombado. Eliezer reforça o choque da época. “Recebemos uma carta do Condephaat, do nada”, afirmou. A notificação formal do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) veio dois anos depois, em 2017, em um momento em que casal planejava realizar reformas no edifício. O grau de tombamento do posto foi total, o que implica na impossibilidade de expandir a área construída ou fazer modificações na estrutura. Devido ao status quase centenário do local, frequentemente são necessárias restaurações – mas, segundo Eliezer, sem qualquer isenção ou benefício fiscal. “Fica uma sensação de injustiça”, disse. De acordo com ele, os gastos com pintura e esgoto podem chegar a R$ 15 mil e R$ 10 mil, respectivamente. O casal desembolsa todo ano R$ 22 mil de IPTU. “Temos zero incentivo para manter o posto funcionando.”
A estrutura pode ser original, mas o negócio de dez colaboradores opera com licenças e normas técnicas atualizadas. “As pessoas perguntam se as bombas de combustível são daquela época”, afirmou Eliezer. “Não teria nem como, colocaria todo mundo aqui e em volta em risco.” O fluxo de clientes é intenso, mas o casal nunca pensou em quantificá-lo. “Mas aqui é muito bom de tíquete médio”, disse o empresário. Em média, cada consumidor deixa R$ 150 ao abastecer. O valor é puxado pelo consumo do etanol, que segue como carro-chefe da casa. Milena diz que o Auto Posto Alto da Aclimação recebe clientes de todo tipo, mas há um público fiel. “Tem quem vem aqui desde a infância porque vinha com os pais. É muito bonito”, afirmou.
Apesar de apreciadores da região, o casal se queixa da segurança no entorno do posto, localizado na esquina da avenida Aclimação com a rua Pais de Andrade. Eliezer explica que a necessidade de o posto de funcionar 24 horas surgiu após casos de furto e vandalismo. “Fechamos à noite e voltamos de manhã e roubaram as placas, as tampas de aço do chão…” Ele afirma já ter ocorrido de a equipe presente no estabelecimento ser abordada em tentativas de assalto, o que culminou na contratação de um segurança. Para ele, o funcionamento de domingo a domingo é a única alternativa.
Com tanto movimento e história, hoje, o local também é visado como cenário para gravações e sessões fotográficas, mas com a rotina 24 horas por sete dias da semana, a negociação fica difícil. Milena disse que certa vez uma marca de bolsas tentou usar o espaço durante o fim de semana para as fotos de uma campanha de marketing. A sessão não ocorreu. “Pedimos o equivalente do faturamento do fim de semana e disseram que ultrapassava o orçamento deles”, afirmou. “Não chegamos a descobrir qual era a marca, mas era alto padrão.” Segundo Eliezer, o mesmo ocorreu com uma fintech de soluções financeiras que pretendia usar o espaço durante um dia para uma gravação. “Consideramos fechar para eles”, disse o empresário. “Mas queriam nos pagar R$ 2 mil. Não tem nem como.”
SUCESSÃO – Aos 53 anos, Milena diz que a empresa não seguirá para a segunda geração. A filha do casal, de 24, nunca cogitou tocar o empreendimento ou o outro posto de combustível que o casal. “Ela foi para outro campo, foi estudar medicina veterinária”, afirmou. Milena resume: “Para cuidar de um negócio como esse, tem que gostar e sentir prazer”. O marido, de 48, atesta a afirmação. O avô de Eliezer teve uma garagem com posto de gasolina na rua São Caetano, o que encantou o então rapaz. “Gostei muito. Gostei e aprendi só isso”, disse ele. “Trabalho com isso há 30 anos.”
Mesmo assim, a empresária não desiste da paixão pelo segmento. Milena antecipa que comprou outro posto com o marido, agora na Rodovia Ayrton Senna, antiga Rodovia dos Trabalhadores e Radial Leste. “Não tenho a pretensão de parar, mas também não espero que alguém queira seguir nos meus moldes”, disse. Ela não exclui a eventual venda do Auto Posto da Aclimação, dado os gastos e a falta de incentivo, mas a felicidade e ânimo que o negócio traz ainda superam o lado negativo. Responsável por um negócio próximo do centenário, o casal não tem planos de parar – talvez em um posto de gasolina, mas de seguir viagem.
PASSADO HISTÓRICO – A história do ponto acompanha o cresciemento do Brasil. Inaugurado anterior à criação da Petrobras, quando o Brasil dependia quase integralmente de combustíveis importados e a distribuição de derivados era dominada por empresas estrangeiras. Nos anos 1920, companhias como a Anglo-Mexican Petroleum Company Limited (braço da atual Shell no país) passaram a estruturar os primeiros pontos fixos de abastecimento nas cidades brasileiras, substituindo a venda de combustível em tambores e carroças por estações permanentes. A inovação era uma tendêncial internacional. Foi nesse contexto de modernização incipiente da mobilidade urbana que o posto da Aclimação entrou em operação, em 1929, como parte de uma infraestrutura ainda rara, voltada a um automóvel que começava a se inserir no cotidiano das grandes cidades.
Ao longo das décadas seguintes, a frota brasileira cresceria rápido. Em novembro deste ano, eram 128,6 milhões de veículos de todos os tipos (dos leves aos pesados, além de motocicletas). O município de São Paulo não apenas acompanhou o movimento, como o liderou e se urbanizou em torno do carro – enquanto a cidade representa 5,6% (11,9 milhões de habitantes) do total da população brasileira (213,4 milhões), a frota inscrita na capital paulista (9,9 milhões) equivale a 7,7% do total do país. E o posto da Aclimação permaneceu no mesmo endereço acompanhando tudo. A edificação preserva características arquitetônicas raras entre os remanescentes desse tipo de infraestrutura: sua linguagem neocolonial hispano-americana, comum nos postos construídos pelas grandes petrolíferas na época, manifestava-se em frontões arredondados, colunas largas e elementos decorativos que remetiam aos modelos trazidos do México e dos Estados Unidos, além de um painel de azulejos no topo da fachada com a concha e a inscrição da Anglo Mexican Petroleum Company Limited, nome original da Shell no Brasil. Essa combinação entre permanência física, linguagem arquitetônica e função urbana contínua ajuda a explicar por que o imóvel atravessou a modernização da cidade sem perder sua identidade – e por que, décadas depois, foi reconhecido como patrimônio histórico que é.