Sebo Desculpe a Poeira: 4 mil livros em 18 metros quadrados e 10 anos de (muita) história

Uma image de notas de 20 reais
Lombardi: de jornalista a livreiro, mantendo a tradição de sebos em Pinheiros
Divulgação
  • "O livro é um dos objetos perfeitos. Assim como a roda e a colher, nunca será reinventado. E não pode ser melhorado"
  • Mesmo sem o "fetiche do livro raro", Ricardo Lombardi preserva a figura do livreiro que dá sugestões aos clientes
Por Vitor Nuzzi Compartilhe: Ícone Facebook Ícone X Ícone Linkedin Ícone Whatsapp Ícone Telegram

São Paulo é uma cidade de coisas que passam despercebidas e uma central de pequenas curiosidades. A frase original, do jornalista e escritor Gay Talese, refere-se a Nova York. Mas pode se aplicar à megalópole brasileira. Por exemplo, na Sebastião Velho, minúscula e sossegada rua de paralelepípedos e prédios tombados, em Pinheiros, na Zona Oeste paulistana, um homem alto, de bermuda e camiseta pretas, está às voltas com meia dúzia de sacolas de supermercado, daquelas recicláveis, todas repletas de livros. Uns 250, no total. É Ricardo Lombardi, dono do sebo Desculpe a Poeira, com um lote recém-adquirido. São pelo menos três destes por mês. Eles serão catalogados para fazer parte do acervo de 4 mil livros da loja, que em julho completou dez anos. Primeiro serão levados ao escritório de Lombardi, no prédio ao lado, onde mora – e no qual estão outros 10 mil livros.

O paulistano (de Pinheiros) Ricardo Lombardi, 54 anos, é o que se pode chamar de “rato de sebo”. De livros e discos. Sempre frequentou, especialmente em um bairro que é conhecido por esses estabelecimentos alternativos – que já foram tema de filme, como Durval Discos (2002), dirigido por Anna Muylaert. O Desculpe a Poeira tem duas origens: era o nome de um blog que Lombardi mantinha com dicas culturais. E também uma frase cunhada pela escritora estadunidense Dorothy Parker como sugestão espirituosa para o seu epitáfio (“Excuse my dust”). Foi o caminho que ele encontrou para deixar o trabalho como jornalista de sólida carreira. Foi repórter de turismo e cultura, passou por revistas masculinas, onde chegou a diretor de redação, e estava no comando do portal Yahoo! quando iniciou sua transição. Tornar-se livreiro era um projeto que já matutava havia algum tempo. Por que não um sebo? Mas não sem alguns sustos. “Quando veio a pandemia, achei que eu ia falir. Mas vendi muito pela internet”, disse o livreiro. “É um negócio sustentável.”

Um cliente pergunta se ele é amigo do também jornalista Humberto Werneck. Sim, trabalharam juntos, assim como outros da geração de mineiros que frequentou as redações paulistas, como Ivan Ângelo e Murilo Felisberto, da turma do extinto Jornal da Tarde. Quem pergunta é outro mineiro, Marcílio França Castro, que acaba de lançar O Último dos Copistas, seu primeiro romance, e está por ali, de olho em vários livros. Mais tarde, após rápida negociação envolvendo valores, ele levará alguns exemplares. “Se existe uma razão para eu escrever, é fazer com que o leitor saia do meu livro para buscar outros livros”, disse o autor em entrevista recente.

Escolhas do Editor

GARAGEM – Lombardi ressalta o intenso trabalho nas redes sociais para divulgar o Desculpe a Poeira. O espaço é pequeno: 18,6 metros quadrados (3×6,2), com pé-direito de 2,72 metros. Era uma garagem (com espaço para um veículo) que a mãe alugava e que ele ocupou assim que teve chance (ela mora no mesmo prédio). No ano passado, a garagem passou por uma reforma organizada pelo escritório Nitsche Arquitetos. Continuou um espaço apertado, mas chama a atenção de quem passa. Há uma prateleira logo na entrada, com livros selecionados pelo dono, uma bancada de trabalho no fundo (2,77×2,72m), além de estantes de parede e uma central (3,08×2,20m), neste caso com as obras separadas por tema. Parte dos livros fica na área externa, sobre mesas, mas Lombardi não deixa de consultar a previsão do tempo para evitar contratempos climáticos.

Ele garimpa bastante, mas principalmente recebe interessados em vender livros ou coleções. É verdade que às vezes aparece alguém querendo repassar apostilas de cursinho. Diante da recusa, ele ouve a réplica: mas não é um sebo? Sob um jazz suave – o suficiente para não distrair os clientes –, Lombardi gosta mesmo é de conversar com quem aparece por lá. Costuma passar o dia todo na livraria, a não ser que tenha de ir retirar algum lote novo – nesse caso, o Desculpe a Poeira fica sob os cuidados de Júlia, sua jovem assistente. O sebo fecha aos domingos e segundas. De terça a sexta, funciona das 12h às 20h. Aos sábados, das 11h às 18h.

Lombardi conta que teve a preocupação de guardar a imagem do livreiro para quem as pessoas pedem sugestões. “Quis abrir um negócio que fosse parecido com aqueles de quando eu era jovem”, disse o livreiro-leitor, que apesar da atração pelo papel não costuma ter dificuldade de desapegar. “Não tenho o fetiche do livro raro.” Isso não o impediu de sentir certo arrependimento ao vender um exemplar de Grande Sertão: Veredas autografado pelo próprio Guimarães Rosa. Por outro lado, ele teria ficado “4 mil reais mais pobre”. O épico publicado em 1956 garantiu todas as contas do mês. E certamente foi para um roseano raiz.

A última terça-feira (29 de outubro) foi o Dia Nacional do Livro, em referência à data de fundação da Biblioteca Nacional, em 1810. Ocasião para perguntar a definição de Lombardi sobre livros. “Me ocorre dizer que o livro como o conhecemos é um dos objetos perfeitos. Assim como a roda e a colher, nunca será reinventado. E não pode ser melhorado.” E quanto ao digital? “Sempre precisará de energia elétrica – o que pode ser um problema.”

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