[AGÊNCIA DC NEWS]. No cenário externo, indefinições sobre o megatarifaço adotado pelo governo dos Estados Unidos sob Donald Trump, em especial contra a China – na segunda-feira (12) os dois países anunciaram uma suspensão dessa guerra comercial por 90 dias. No cenário interno, o período de indefinições em relação a juros, inflação e câmbio. No caso brasileiro o diagnóstico é pior, por ser recorrente. Nesse caldo de incertezas a montadora chinesa GWM (Great Wall Motors) tem uma certeza: começa a operar sua fábrica em Iracemápolis (SP) em junho. O diretor de Assuntos Institucionais da companhia, Ricardo Bastos, diz não estar abalado pela situação macroeconômica do Brasil. “Nosso projeto é de longo prazo”, afirmou. “E juros e inflação maiores são ingredientes já inseridos em nossos planos.” Uma afirmação de quem conhece o perfil e os desafios do mercado nacional.
Bastos é o quinto entrevistado do Especial Indústria Automobilística, série de reportagens exclusivas da Agência de Notícias DC NEWS, que pertence à Associação Comercial de São Paulo (ACSP), com as principais lideranças do setor de veículos – em que o Brasil está entre os dez maiores mercados globais e cuja produção total (automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus) deve fechar o ano entre 2,7 milhões e 2,8 milhões de unidades, 7,8% acima de 2024. São 110 mil empregos diretos. Área tão crucial para a economia de qualquer país, se a indústria de veículos vai bem e saudável, parte relevante do setor de comércio e de serviços acompanha a performance.
Os quatro primeiros entrevistados foram Ricardo Gondo (presidente da Renault do Brasil), José Ricardo Gomes (diretor comercial da Toyota no mercado latino-americano Tyler Li (presidente da BYD) e Ciro Possobom (CEO e presidente da Volkswagen do Brasil). Bastos, que também preside a ABVE (Associação Brasileira do Veículo Elétrico), busca tranquilizar os fabricantes tradicionais de carros, que temem prejuízos para a produção local com a chegada mais forte de empresas da China. “Não vai ocorrer uma invasão chinesa no mercado brasileiro”, afirmou. A seguir, os principais trechos da entrevista.
AGÊNCIA DC NEWS – A GWM vai inaugurar a fábrica adquirida da Mercedes-Benz, em Iracemápolis (SP), no próximo mês. Como o ssenhor avalia o início das operações em um momento complexo no mercado interno e no externo?
RICARDO BASTOS – Nosso projeto é de longo prazo. PIB menor, juros e inflação maiores são ingredientes já inseridos em nossos planos. Estamos nos preparando para ser uma montadora local desde 2021, quando compramos a fábrica, antes mesmo de iniciarmos as vendas de carros importados, que só começaram em 2023. A empresa vai dar sequência neste ano ao seu projeto, com o início da operação da fábrica.
AGÊNCIA DC NEWS – O cenário não preocupa, então?
RICARDO BASTOS – Somos sensíveis à situação macroeconômica, aos juros, ao dólar, a questões externas, e estamos monitorando tudo isso. Mas não existe nada nesse cenário que nos leve a alterar nossos planos.
AGÊNCIA DC NEWS – O aumento da taxa de importação de aço, alumínio, carros e autopeças anunciado pelo governo dos EUA, mesmo com a trégua de três meses para início de cobrança, vai encarecer o custo da produção local?
RICARDO BASTOS – Para a GWM Brasil não houve nenhuma alteração de planos até porque o governo brasileiro está lidando muito bem com essa situação. É por isso que não vemos mudanças repentinas no horizonte, nem nenhuma razão para isso ocorrer. Especificamente em relação ao aço, o Brasil é um grande exportador para os EUA e, na minha visão, vai sobrar aço aqui e o preço pode baixar. De qualquer forma, quanto mais estável o ambiente internacional, melhor seria para a empresa e para os negócios.
AGÊNCIA DC NEWS – Que reflexos isso pode trazer ao Brasil?
RICARDO BASTOS – O País tem muito a ganhar, pois passará a ser objeto de maior atenção como um país que tem estabilidade de regras. Seja chinesa, japonesa, europeia ou americana, as empresas colocam dinheiro onde sentem que há estabilidade de regra e segurança. E o Brasil se mostra como um país que respeita as regras.
AGÊNCIA DC NEWS – Há avaliações de que a China pode aumentar exportações de veículos para o Brasil para desovar seus estoques em razão do fechamento do mercado americano. Isso é possível?
RICARDO BASTOS – A China exporta muito pouco para os EUA, então não é isso que vai desviar volume de exportação de carros de lá para o Brasil no curto prazo. Mais à frente é outra realidade. Então, não vai ocorrer uma invasão chinesa no mercado brasileiro.
AGÊNCIA DC NEWS – A produção local vai começar com índice baixo de nacionalização e boa parte das peças será importada da China. Com a previsão de o dólar ficar na faixa dos R$ 6,00, pode ocorrer mudanças no planejamento de produção deste ano e de 2026?
RICARDO BASTOS – O dólar está um pouco acima da faixa que prevíamos, que era mais próxima de R$ 5,00 [na quarta-feira, 14, o dólar abriu em R$ 5,60], o que gera maior impacto para nós. Porém, a produção local nos ajuda com menos Imposto de Importação, pois não incidirá mais sobre o carro inteiro. E para as autopeças, a base de cálculo é menor. Alguns componentes serão comprados aqui, o que ajudará a diminuir o impacto cambial. Já temos mais de 100 fornecedores dispostos a trabalhar conosco. A partir de 2027 também vamos iniciar exportações e conseguiremos ter um head natural do câmbio. Isso vai ajudar a proteger o negócio no futuro e evitar o custo de head na operação que temos hoje.
AGÊNCIA DC NEWS – No mercado brasileiro, mais de 60% das vendas de veículos são financiadas. Qual será a estratégia para atrair o consumidor?
RICARDO BASTOS – Nossa área de finanças se prepara para isso, por exemplo com oferta de juro zero e taxas reduzidas, mas tudo vai depender do mercado. Temos a única plataforma de financiamento online com aprovação em até um minuto e várias promoções. Vamos reagir junto de nossos concorrentes. Obviamente as condições tendem a não ser tão agressivas quanto foram no passado.
AGÊNCIA DC NEWS – Com produção local, a política de preços será mantida?
RICARDO BASTOS – Sim, porque nosso modelo de negócios não muda. Nossos veículos são 100% faturados pela GWM, têm preço único no Brasil inteiro e isso não muda nem para o importado nem para o produzido aqui. Também focamos na valorização do carro usado na troca por um zero. Recentemente criamos um fundo de investimento chamado FIDC para ajudar os concessionários a pagarem preços melhores pelo carro usado dado na substituição pelo novo.
AGÊNCIA DC NEWS – Então podem ficar até mais competitivos?
RICARDO BASTOS – Com a produção local vai ficar ainda mais fácil (fazer ações de venda) porque vamos ter controle sobre a produção, volumes e estoques. Nosso pós-venda vai melhorar ainda mais, pois teremos fornecedores locais, por exemplo de pneus e de itens de manutenção frequente como filtros e óleo. Também criamos um programa de assinatura, que é a locação por períodos de um a três anos, em parceria com a Abla (Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis).
AGÊNCIA DC NEWS – A fábrica vai abrir as portas sob um fogo cruzado de montadoras chinesas e tradicionais, que pedem ao governo a antecipação da cobrança da taxa máxima de Imposto de Importação para carros elétricos e híbridos. Desde janeiro de 2023 a taxa, antes isenta, aumenta gradualmente e deve chegar aos 35% em julho de 2026. Como o senhor vê esse movimento?
RICARDO BASTOS – Estamos no ritmo de inauguração da fábrica e vamos parar de importar o Haval, que é nosso principal modelo, para produzi-lo localmente. Para nós, esse debate já está superado. Queremos que a regra seja cumprida. Desde o final de 2023 o governo publicou a regra e definiu o cronograma. Para que continuar insistindo em mudá-la? Em vez disso, poderíamos estar trabalhando mais no tema da eletrificação, em colocar mais carregadores rápidos para carros elétricos, em trazer mais tecnologias, trabalhar junto aos fornecedores, por exemplo, para fazer baterias aqui.
AGÊNCIA DC NEWS – Outro ponto de tensão com as fabricantes ligadas à Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) é um estudo para abertura de processo antidumping contra marcas chinesas que atuam no Brasil…
RICARDO BASTOS – Isso é lamentável. Mas se ocorrer estamos supertranquilos.
AGÊNCIA DC NEWS – Por quê?
RICARDO BASTOS – Porque seguimos todas as regras. Já mostramos publicamente que os preços de alguns modelos vendidos no Brasil são o dobro do cobrado na China, uma parte por causa da questão tributária brasileira. Então é difícil encontrar argumento para falar que a gente faz dumping.
AGÊNCIA DC NEWS – O plano de investimento de R$ 10 bilhões até 2032 está mantido? Quanto foi usado até agora?
RICARDO BASTOS – Dos R$ 4 bilhões previstos até 2026, cerca de 80% serão completados neste ano. Temos mais R$ 6 bilhões autorizados pela matriz até 2032.
AGÊNCIA DC NEWS – Para a fábrica?
RICARDO BASTOS – Não será para a fábrica de Iracemápolis, mas a outros negócios.
AGÊNCIA DC NEWS – Quais?
RICARDO BASTOS – Negócios como o uso de hidrogênio para mover os veículos. O grupo tem uma produtora de equipamentos para caminhões, ônibus, barcos e também para geração de energia elétrica. E esse é um dos negócios que estamos avaliando. Participamos, por exemplo, do projeto de um barco movido a hidrogênio verde em parceria com a Itaipu e a Náutica que será apresentado durante a COP 30, em novembro. Há também a possibilidade do nosso equipamento ser usado para produzir energia elétrica em pequenas comunidades na Amazônia. Em vez de transportar diesel para gerar energia nessas comunidades, será possível usar o transformador de hidrogênio no próprio local. São temas que precisam avançar, mas podem ocorrer mais à frente.
AGÊNCIA DC NEWS – Inicialmente foi anunciado que o primeiro modelo nacional seria uma picape, mas depois a GWM mudou para o SUV Haval. Por quê?
RICARDO BASTOS – A mudança ocorreu após a decisão da volta gradual do Imposto de Importação. Decidimos então pela nacionalização do nosso carro de maior volume de vendas, o Haval, que representa quase 80% dos negócios. Inicialmente ele será produzido nas versões híbrida a gasolina e híbrida plug-in. E em 2026 teremos a versão híbrida flex (que pode usar etanol).
AGÊNCIA DC NEWS – Quando chegará a vez de produzir 100% elétricos?
RICARDO BASTOS – O 100% elétrico ainda não tem data para produção local, mas é possível que seja antes de 2030. Há questões a serem avançadas, como a de infraestrutura e instalação de mais carregadores rápidos públicos.
AGÊNCIA DC NEWS – Como está a contratação de trabalhadores?
RICARDO BASTOS – Até agora contratamos cerca de 100 pessoas e na inauguração teremos 500. O quadro total no fim do ano será de 800 funcionários.
AGÊNCIA DC NEWS – Qual sua previsão para o mercado total de automóveis neste ano e para as vendas da GWM?
RICARDO BASTOS – Trabalhamos com um cenário de crescimento das vendas da indústria em torno de 6% a 8%. Mas tomara que seja um pouco acima disso. Para nossa marca prevemos crescimento de 15%. No ano passado crescemos 156% – de 11,5 mil para 29,5 mil unidades. Este ano vamos para 34 mil. Não é um número tão significativo ainda porque temos de fazer o ajuste da fábrica. Essa alta vai estar mais ligada à diversificação de modelos.
AGÊNCIA DC NEWS – Quais as novidades?
RICARDO BASTOS – Teremos uma nova versão do Ora (elétrico já vendido no país). Também iniciamos a importação do Tank 300, off-road tecnológico e confortável, e no segundo semestre chegará o Wey 07, SUV de luxo, ambos híbridos. O grande desafio é que temos de fazer a transição da importação para a produção nacional e isso não é simples.