A participação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro ainda enfrenta grandes obstáculos. Apenas 52% das mulheres negras e 54% das mulheres brancas estão no mercado de trabalho remunerado, índices bem abaixo dos homens negros (75%) e brancos (74%). Além dessa menor presença no mercado formal, as mulheres dedicam, em média, dez horas semanais a mais do que os homens em tarefas domésticas e cuidados não remunerados. Esses dados, revelados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na nova versão da plataforma Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, destacam as disparidades enfrentadas pelas mulheres no Brasil.
Com esse cenário em mente, Thais Almeida Lopes fundou, em 2023, a social tech – uma startup de impacto social – Mães Negras do Brasil. Engenheira mecatrônica e mãe, Thais tem como objetivo impulsionar mudanças estruturais voltadas para a equidade de gênero e raça no mercado de trabalho. A startup já tem mais de 1 mil inscritas e oferece ferramentas que visam o desenvolvimento pessoal e profissional de mães negras, além de promover a saúde mental e criar oportunidades reais de trabalho e geração de renda. É um grande hub de serviços, apoio e propagação de conhecimento. “Minha trajetória profissional, a maternidade e o comprometimento com um futuro sustentável me trouxeram até aqui”, afirmou Thais à DC NEWS. “Meu propósito é promover e ser a mudança que quero ver no mundo, e isso passa por ver mães negras valorizadas e vivendo bem em nosso país.” Segundo ela, é importante quebrar a visão estereotipada de que mães negras estão sempre em situação de vulnerabilidade.
DC NEWS – Como surgiu a social tech Mães Negras do Brasil?
Thais Almeida Lopes – Surge da minha experiência como mãe negra e profissional de tecnologia, especialmente durante uma pandemia, quando sinto ausência de apoio. A pandemia escancarou essa falta de suporte, especialmente para mulheres negras. Eu estive em um momento de questionamento sobre meu futuro profissional, mesmo vindo em uma trajetória rápida de ascensão social. Ao olhar ao redor, percebi que poucas mulheres como eu ocupavam esses espaços.
DCN – Havia lacunas?
Thais – Sentia a necessidade de uma rede de apoio e ao mesmo tempo via que aquilo que eu havia feito não era suficiente. Esse processo me levou a uma conexão mais profunda com minha essência.
DCN – Como vocês atuam?
Thais – Nós somos uma empresa de base tecnológica e de impacto social. Temos uma plataforma digital onde as mães podem se inscrever. Entre os temas abordados estão carreira, maternidade, gestão financeira, saúde mental e planejamento de negócios. Há versões gratuitas, em que acessam nossos grupos de conversa, um encontro mensal e um clube de benefícios com descontos. Há planos pagos, que dão a possibilidade de oferecer seus serviços em nosso marketplace, participar de mentorias coletivas e eventos específicos, além de programas como o de letramento racial e workshops. Também atuamos no modelo B2B, oferecendo planos de associação para empresas, que podem ter a plataforma como benefício para funcionárias mães negras, além de serviços como contratação de palestrantes e apoio à contratação de mães negras.
DCN – Como está o projeto?
Thais – A comunidade começou em fevereiro de 2023 e atualmente tem 1,5 mil mulheres de 25 estados brasileiros – 95% na versão gratuita e 5% são pagantes. No formato B2B são 20 empresas parceiras, que incluem tanto empresas que são de pessoas aliadas quanto empresas lideradas por mulheres negras.
DCN – Você sente que as empresas estão buscando mais falar sobre diversidade e maternidade no mercado de trabalho?
Thais – Muitas empresas parecem estar perdendo força no compromisso com a diversidade. Houve um aumento no interesse por esse tema, especialmente após o movimento desencadeado após a morte de George Floyd [negro americano morto estrangulado por um policial branco em Minneapolis, EUA, em 2020], que trouxe à tona discussões sobre raça e inclusão. Esse avanço, inicialmente focado na diversidade racial, acabou beneficiando outros grupos, como a comunidade LGBTQIA+, pessoas com deficiência, e também questões relacionadas à maternidade e paternidade.
DCN – E o que ocorreu?
Thais – Com a crise econômica [pós-pandemia] entre 2022 e 2023, muitas empresas começaram a reduzir seus investimentos em programas de diversidade, e várias áreas dedicadas a esse tema foram descontinuadas. Isso resulta em uma menor prioridade para a diversidade, uma realidade que tem sido considerada natural em alguns contextos corporativos. Ainda assim, embora o engajamento das empresas tenha diminuído, o que se observa é uma maior conscientização entre as mulheres, especialmente em relação à maternidade e à economia do cuidado.
DCN – O que você percebe nesse sentido?
Thais – As mulheres estão se sentindo mais empoderadas para falar sobre suas realidades, mesmo que as empresas não estejam priorizando essas questões. A economia do cuidado continua sendo um tema importante que, inevitavelmente, esbarra em questões de maternidade.
DCN – Existe muita distância ainda entre discurso e prática?
Thais – Sim. Há uma discrepância entre discurso e prática. Muitas empresas, lideradas por pessoas que ainda sustentam visões tradicionais e até machistas, implementam políticas de diversidade de forma superficial. Esses líderes, que defendem a inclusão no ambiente de trabalho, muitas vezes reproduzem dinâmicas desiguais em suas próprias casas, contratando mulheres negras para funções domésticas e desvalorizando esse trabalho.
DCN – O que está errado?
Thais – A inclusão de mulheres negras no mercado não deve ser apenas uma questão de preenchimento de cotas, mas sim uma transformação que passa por uma reeducação social e racial. Isso implica na desconstrução de estereótipos e na valorização da experiência e da identidade negra, promovendo espaços onde as mulheres possam se sentir à vontade para ser quem são.
DCN – Qual o cenário que você vê hoje no mercado de trabalho?
Thaís – A representatividade das mulheres, especialmente das mulheres negras, ainda é baixa, principalmente em cargos de liderança. Mesmo em 2024, ainda existem líderes empresariais influentes que reforçam estereótipos de que mulheres não deveriam ocupar posições de alta liderança, como CEOs. Esse tipo de mentalidade reflete não apenas uma visão ultrapassada sobre o papel das mulheres, mas também perpetua desigualdades estruturais, especialmente em relação à raça. Existe uma percepção enraizada de que mulheres negras devem ocupar posições subalternas, o que reforça estereótipos e limita seu acesso a espaços de poder e decisão.
DCN – Ainda uma questão estrututal?
Thais – Muitas vezes, quando uma mulher negra ocupa uma posição de destaque, é vista com estranheza, como se não pertencesse àquele lugar. Isso evidencia o racismo estrutural que permeia o mercado. Essa discriminação também se manifesta na estética. Mulheres negras enfrentam uma pressão constante de se “embranquecer” para serem aceitas, seja pelo cabelo ou pelas roupas, criando barreiras invisíveis que as forçam a adaptar sua imagem para sobreviver nesses espaços. Isso resulta em uma perda cultural e de identidade, além de reforçar a ideia de que o espaço corporativo não é lugar para a diversidade.
DCN – O que as empresas precisam fazer para mudar esse cenário?
Thais – Para mudar o cenário de baixa representatividade de mulheres, especialmente mulheres negras, em posições de liderança, o primeiro passo para as empresas é garantir a contratação de pessoas diversas em todos os níveis. No entanto, essa contratação precisa vir acompanhada de processos inclusivos, que respeitem e valorizem a diversidade, permitindo que essas pessoas se desenvolvam e contribuam efetivamente para a transformação da cultura organizacional. A diversidade deve ser refletida não apenas nos cargos de entrada, mas também em posições estratégicas e de liderança. Isso é fundamental para que essas vozes estejam ativamente envolvidas no desenho de políticas e estruturas mais inclusivas e que promovam uma mudança real e sustentável.
DCN – Só facilitar a entrada não basta…
Thais – Não adianta afirmar que uma empresa é inclusiva se ela não tem diversidade nos seus quadros ou se apenas realiza treinamentos pontuais, como o letramento racial, sem de fato integrar essas pessoas no processo decisório. Além disso, as empresas precisam revisar suas políticas de modo a se tornar mais acolhedoras para mulheres que são mães ou que pretendem ser. Isso inclui criar um ambiente que respeite os ciclos de vida, como a maternidade, e que não penalize essas escolhas. Um exemplo seria o desenvolvimento de planejamentos organizacionais mais cíclicos e não lineares, que considerem fases da vida das pessoas.
DCN – Quais seriam os ganhos?
Thais – Quando as empresas adotam uma abordagem mais realista e sustentável, que respeita a natureza humana e a necessidade de equilíbrio, elas conseguem não só melhorar a qualidade de vida de seus colaboradores, mas também estender sua produtividade ao longo de uma carreira mais longa e satisfatória. Assim, é possível criar um ambiente onde o crescimento profissional e a vida pessoal possam coexistir sem sacrificar a saúde, o bem-estar ou o planeta.