José María Aznar, 71 anos, ex-premiê da Espanha entre 1996 e 2004 (oficialmente, presidente de governo) esteve nesta segunda-feira (30) na sede da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) para ministrar a palestra magna ‘A Polarização da Política Mundial e suas Consequências Econômicas e Sociais’. Aznar disse que o acordo União Europeia-Mercosul não irá sair no curto prazo. “O Brasil prefere falar da paz na Ucrânia”, afirmou. Para ele, da parte de Brasília a agenda do acordo está pouco colocada à mesa com a intensidade necessária. E no momento atual ela também não é de interesse dos europeus, em especial da França.
Durante seu governo, o PIB per capita espanhol saiu de US$ 16,1 mil para quase US$ 25 mil, alta de 55%. Desde então, apesar de um pico em 2008, não consegue escalar a faixa dos US$ 30 mil. Questionado sobre o que tracionou a economia espanhola em seu governo, ele foi direto. “O poder público não deve gastar mais do que arrecada. E o mundo privado deve ter liberdade e menos carga tributária.” Liberdade, aliás, é um mantra em seu discurso. “Defendo a liberdade acima de tudo”, afirmou. “Porque não conheço outra força que seja tão poderosa, tão criadora e tão formidável quanto a força da liberdade.”
Advogado de formação, hoje ele comanda o think tank espanhol Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales (Faes) e o Instituto Atlántico de Gobierno (IADG), um centro de formação de lideranças para os setores público e privado, além de fazer parte do Board de diretores da News Corporation, o conglomerado de mídia da família Murdoch. Aznar é um liberal clássico, que politicamente ocupa o espaço conhecido por centro-direita. Ele se define um defensor da liberdade acima de tudo, e de um Estado sem rompantes imperiais. Por esse motivo, ao ser questionado sobre as eleições americanas, disse que não gostaria de estar na pele de um eleitor dos Estados Unidos. “De um lado, Kamala Harris me traz incertezas”, afirmou, citando que a candidata democrata não traz respostas objetivas, em especial para temas econômicos. “Por outro, não conseguiria votar numa pessoa que incentivou o ataque ao Capitólio como fez Trump.”
Aznar começou com uma necessária convocação e disser que qualquer pessoa que tenha alguma responsabilidade mais ou menos pública, seja na política, como empresário, no campo intelectual ou acadêmico deve dedicar tempo a entender o que ocorre no mundo. “Porque sem entender o que ocorre será difícil encontrar soluções, ou propostas que possam melhorar o futuro.” Aznar afirmou que estamos vivendo uma mudança de Era como nunca houve na história, marcada por duas questões – a revolução tecnológica e a disputa entre os dois maiores poderes do mundo, Estados Unidos e China. Ele foi recebido pelo presidente da ACSP, Roberto Mateus Ordine, e respondeu a perguntas de autoridades presentes, como os secretários estaduais Gilberto Kassab (de Governo e Relações Institucionais) e Fábio Prieto (Justiça e Cidadania) e dos ex-senadores Heráclito Fortes e Jorge Bornhausen, além do presidente da Facesp e da CACB, Alfredo Cotait Neto.
REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA – “A revolução tecnológica que estamos vivendo acontece no tempo mais curto que já existiu para algo do tipo. E como nunca antes ela tem características absolutamente disruptivas que afetam tudo, o sistema político, o sistema econômico, o sistema social, os sistemas culturais, as organizações. Traz consequências desafiadoras e sem comparação com nada – invenção da roda, das máquinas têxteis, das máquinas a vapor, da eletricidade… E ainda que pareça o contrário, ela mal começou a nascer.”
“E o que haverá de mais intenso nessa revolução é a chamada inteligência artificial (IA) generativa. Ela traz um componente completamente distinto: máquinas capazes de substituir o ser humano. Até aqui, falávamos de coexistência entre humanos. Agora, temos de falar da relação entre humanos e máquinas. Algo impensável, porque todo o progresso tecnológico era essencialmente baseado nos desejos de melhorar as tecnologias para combater ou vencer outros seres humanos. Agora, a IA é capaz de tomar decisões à margem do ser humano, sem a interferência dele.”
“E tudo isso se aplica do mundo do trabalho a questões de saúde. Da economia às guerras. Os maiores pensadores sobre o assunto acabam de concluir que do jeito que está, agora, a inteligência artificial só poderá ser controlado com o desenvolvimento de outra inteligência artificial, programada exclusivamente para controlar a primeira. Sim. Podemos ter graves problemas e esse é um dos riscos mais extraordinários que o ser humano já enfrentou.”
“Por isso tantas e tão transformadoras mudanças. Por exemplo. Hoje já não se discute sobre privacidade, se existe o não existe. Porque todos sabemos que a privacidade é um conceito que deixou de existir. Todos sabemos que os ativos econômicos estão baseados em nossos dados pessoais. Quanto mais dados pessoais se conheçam, maior a capacidade de intuir sobre o ser humano. E eles passam a ser usados para influenciar o comportamento das pessoas. Incluindo processos eleitorais.”
MUNDO POLARIZADO – “Outro grande desafio é que desde o fim da Guerra Fria vivíamos em um mundo unipolar. A grande potência ocidental, os Estados Unidos, ganharam a Guerra Fria e se tornaram a única referência em termos de poder. E agora isso já não existe mais. Vivemos uma grande disputa entre poderes, entre Estados Unidos e China, e ela pode tanto inibir o outro poder quanto levar a um confronto. Hoje, China e seus parceiros básicos – Coreia do Norte, Irã e Rússia – não dizem apenas que querem participar mais da atual ordem internacional. O que dizem é que eles querem outra ordem internacional. Todas as crises globais saem desse cenário.”
“Quando falamos da crise na Ucrânia, de uma possível crise no Pacífico, em Taiwan, ou o que está se passando no Oriente Médio, estamos falando sobre a mesma coisa. Tudo isso é uma forma de revisar o poder do mundo ocidental. Hoje, em termos de ativos, os Estados Unidos e seus aliados têm mais que os ativos da China e de seus aliados. Uma superioridade tecnológica, militar, econômica. Por isso, para a China em princípio não interessa um confronto aberto com o mundo ocidental e com os Estados Unidos. O que interessa o que os ingleses chamam de war of attrition. Vencer pelo cansaço. À China interessa criar situações para fazer a presença dos Estados Unidos e de seus aliados muito incômoda de diferentes maneiras. Isso levou novamente o mundo a se dividir em dois grandes blocos. E aí a globalização perdeu força, renasce o protecionismo, renasce o nacionalismo.”
CONFLITOS GLOBAIS – “Como resultado temos hoje quaro grandes conflitos globais. Invasão da Ucrânia pela Rússia. Quando um país invade outro, rompe a soberania, e para o mundo é muito difícil aceitar que essa situação se consolide sem se pagar um preço muito alto. Até agora, o que o mundo ocidental fez foi armar os ucranianos, mas evitando uma guerra direta com os russos.”
“E a China está muito interessada no que se desenrola ali porque seu grande objetivo em termos de integridade territorial é Taiwan, que a China quer sob seu controle antes de 2050. Se as coisas com a Ucrânia fossem diferentes e a Rússia triunfasse [rapidamente], a situação de Taiwan seria muito perigosa. Porque a consequência de um confronto exitoso com Taiwan, Filipinas [pelo Mar da China], seria a expulsão dos Estados Unidos do controle sobre Ásia-Pacífico, do controle sobre o tráfico marítimo de todo o continente asiático. Hoje, 90% do tráfico marítimo está controlado pelos Estados Unidos.”
“O terceiro e o quarto pontos de conflito estão no Oriente Médio. Israel luta por sua sobrevivência, porque seus inimigos querem eliminar Israel. E eliminar a existência de Israel é eliminar a presença dos Estados Unidos ali. Na mesma região, há outro embate, o quarto ponto. Entre o mundo sunita e o mundo xiita. Entre Arábia Saudita e seus aliados e o Irã e seus aliados. Tudo numa região que é chave desde o ponto de vista energético ao do abastecimento.”
UNIÃO EROPEIA – “A União Europeia é um milagre. Um milagre que começou com o fim da Segunda Guerra a partir de dois elementos fundamentais que não dependiam dos europeus, mas dos norte-americanos: um foi o Plano Marshall, que salvou da fome milhões de europeus; o outro foi a criação da Otan, que salvou a Europa de cair sob [Josef] Stalin. E ao final a União Europeia é fruto de uma decisão dos grandes países europeus de fazer uma reflexão muito simples: ‘Por que em vez de nos matarmos, a gente não convive e compartilhamos as coisas?’ E isso tem sido um grande êxito.”
“Mas neste momento a União Europeia tem problemas muito sérios, além da guerra na Ucrânia. Também surgiram rompimentos, como o Brexit, e existem elementos de polarização muito importantes, com baixo crescimento econômico. Dito de outro modo, a influência da União Europeia nos assuntos globais, que era una influência essencialmente diplomática, econômica e cultural, tem caído. E seu foco de interesse agora, por esses problemas todos, está mais em assuntos locais do que nos de outros lugares. Um exemplo é a presença da EU na América Latina, que decresceu.”
“Por isso quando me falam do acordo União Europeia-Mercosul, eu digo, seria um acordo formidável. Quase 800 milhões de pessoas [apenas na Europa], liberdade de comércio, presença mais forte da UE na região, elemento-chave para termos uma visão conjunta do mundo atlântico. Mas… Hoje não existem as condições para isso. Do lado europeu não há. Nem do lado sul-americano. Do ponto de vista europeu, há muitos problemas para resolver. E do outro lado, é preciso fazer uma reflexão muito importante: onde quero chegar, com quem quero estar? Essa reflexão é absolutamente fundamental. Nessa equação, o Brasil é elemento-chave. Por sua dimensão geográfica, seu potencial econômico, seus recursos naturais. Seus números sempre impressionantes. Mas a pergunta segue a mesma: o que quero e o que estou fazendo para que isso aconteça?”