O Largo do Paissandu, nome que vem desde a segunda metade do século 19, é conhecido por abrigar o Ponto Chic – onde foi criado o sanduíche bauru – e, logo em frente, já na avenida São João, a chamada Galeria do Rock. Mas há quase 150 anos era conhecido com uma espécie de ‘Largo do Circo’, porque era o local em que se instalavam as companhias que entretinham os paulistanos. Foi lá, por exemplo, que em maio de 1923 estreou o Circo Queirolo, que entre seus integrantes trazia um palhaço iniciante chamado Abelardo Pinto (1897-1973), nascido em Ribeirão Preto (SP) e conhecido como Piolin (que antes usava o nome Careca). Alguns anos depois, ele já seria aclamado como o principal palhaço do país. O 27 de março, dia de seu nascimento, virou o Dia do Circo.
Assim, não poderia fincar em outro local suas estacas e lona imaginária o Centro de Memória do Circo (CMC), que abriu as cortinas em 16 de novembro de 2009, na Galeria Olido, bem ao lado da do Rock, e em frente ao largo. Desde sua inauguração, já foi visitado por 480 mil pessoas. Ali estão 80 mil itens (áudios, fotografias, objetos, textos), em grande medida doados por famílias circenses, e são organizadas exposições (uma permanente e algumas temporárias), além de oficinas, cursos e outras atividades. Um Piolin gigante fica na entrada e às vezes é levado a passear na rua por seus colegas palhaços, malabaristas, mágicos. O CMC surgiu a partir das coleções Circo Garcia e Circo Nerino, entre vários grupos tradicionais relacionados a essa atividade.
A coordenadora do CMC, Verônica Tamaoki, aponta ligações entre Piolin e os modernistas da primeira metade do século passado. “Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral eram frequentadores do Circo Alcibíades, em que Piolin era o grande destaque”, afirmou. Ele é homenageado, inclusive, na peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, com o personagem Abelardo. Piolin foi amigo dos modernistas, que o conheceram no Paissandu. E foi homenageado pelo Clube de Antropofagia em 1929, em um almoço chamado Festim Antropofágico, em que o palhaço era comido – simbolicamente, claro. Eles se baseavam nos indígenas que comiam carne humana, não apenas para matar a fome, mas para adquirir as qualidades do devorado.
Antes de ter o seu próprio circo, Piolin (barbante, em espanhol) também substituiu Chicharrão (José Carlos Queirolo, 1889-1983) no Circo Irmãos Queirolo. Chicharrão era o pai do palhaço Torresmo (Brasil José Carlos Queirolo, 1918-1996). O nome Chicharrão significa… Torresmo (chicharrón, em espanhol). “O Centro de Memória é a continuidade disso tudo. Se não fosse montado aqui no Paissandu, não teria o menor sentido”, afirmou a coordenadora do CMC – que é vinculado ao Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Enquanto percorrem a exposição, os visitantes veem o largo pela janela.
A tradição do Paissandu como um antigo epicentro das artes, e não apenas do mundo circense, continuou com o chamado Café dos Artistas. Apesar do nome, não era um estabelecimento físico, mas um ponto de encontro de empresários, gente do circo e artistas em geral. E tinha ares totalmente ecumênicos, como reforça Walter de Sousa Junior, presidente da Associação dos Amigos do CMC. “Milionário e José Rico [dupla de música caipira] se conheceram aqui”, disse Sousa.
Depois de aberto, o CMC não parou de receber documentos de famílias ligadas ao circo. Casos da própria família Pinto (de Piolin e do palhaço Figurinha, nome artístico de Nelson Garcia, 1921-2009), Seyssel (de Arrelia e Pimentinha, tio e sobrinho, que tiveram programa na TV), Pereira (de Alcibíades e Fuzarca) e a já citada família Queirolo, de Torresmo e Pururuca. Quem for visitar o local vai encontrar ainda réplicas, fotografias e objetos usados pelos artistas. As roupas de Piolin, por exemplo, que desde 1972 estavam no Museu de Arte de São Paulo (Masp), foram doadas ao CMC em 2016. Tem curiosidades como uma trupe circense japonesa (família Mange, de Manji Takezawa) e outra que introduziu a luta livre (família Mello).
TV – Waldemar Seyssel (foto abaixo), o Arrelia, é outro nome símbolo do circo e presente nas memórias do CMC. Ele substituiu no picadeiro seu pai, Ferdinando, o palhaço Pinga-Pulha (1876-1975), e estreou em março de 1927. Mas não deixou de cumprir pedido da mãe e se formou em Direito na tradicional faculdade da USP, no largo de São Francisco. Manteve o Circo Seyssel de 1942 a 1952 no largo da Pólvora, bairro da Liberdade, e depois foi para o Anhangabaú, sob o viaduto Santa Ifigênia. O circo pegou fogo em 1953, mesmo ano de estreia de seu programa na TV Record, que ficou no ar até 1974. Arrelia morreu em 2005, aos 99 anos.
Ainda fazem parte do acervo o cinturão de Joanita Pereira (1849-1892) e o diário de Polydoro, do português José Ferreira Polydoro (1854-1916), chamado de pai dos palhaços brasileiros. Joanita e Albano Pereira foram os pais de Alcibíades (1883-1962), que dá nome ao circo onde despontou Piolin. E avós de Albano Pereira Neto (1913-1975), o clown Fuzarca. O cinturão foi dado a Joanita em Londres, em 1868 – é o item mais antigo do CMC. Já o adestrador Albano, que entre vários lugares se apresentou no largo São Bento, ganhou um cavalo do imperador Dom Pedro II. Teve final trágico, atingido por uma bala perdida durante briga entre espectadores em Rio Novo (MG). Nessa mesma cidade, Galdino, pai de Piolin, acolheu em seu circo enfermos da gripe espanhola, em 1919.
O CMC publicou, em 2020, o Diário de Polydoro, reproduzindo os detalhados relatos do português José Ferreira Polydoro e suas andanças pelo interior do Brasil. Nos fac-símiles, ele conta quando e onde se apresentou, de 1873 a 1916 – ano de sua morte, aos 62 anos, quando atuava no Circo Paulistano –, em várias companhias. E até quem ficou devendo, e quanto, por apresentações encomendadas e não pagas. Com quase 400 páginas, o livro traz também textos de pesquisadores.
OUTRAS ARTES – Os responsáveis mapearam ainda a relação entre circo e música, que se revela inesgotável. O jornalista, escritor e pesquisador Ayrton Mugnaini Jr. escarafunchou obras desde 1890. Foram para o acervo, segundo ele, amostras de 400 gravações. Desde ópera (Vesti La Giubba, da ópera Pagliacci, que estreou em 1892) a marchinhas (como Ride, Palhaço, de Lamartine Babo, paródia lançada por Mário Reis em 1934), incluindo Beatles (Being for the Benefit of Mr. Kite!). E a sempre lembrada O Circo, de Sidney Miller, gravada por Nara Leão em 1967. O próprio Ayrton Mugnaini, também músico, está escrevendo um livro sobre o tema.
Se a pesquisa sair da música e for para o cinema, a lista também será grande. Entre outras obras, estão O Circo (Charles Chaplin, 1928), Os Irmãos Marx no Circo (1939), O Maior Espetáculo da Terra (Cecil B. DeMille, 1952) e Os Clowns (Federico Fellini, 1970). E, por exemplo, o longa brasileiro Os Saltimbancos Trapalhões (1981), com canção-tema composta por Chico Buarque (Piruetas). A configuração do circo mudou muito ao longo do tempo. Mas muitos à antiga ainda rodam pelo interior do país. E continuam a existir no imaginário das crianças atuais e de ontem. No caso paulistano, o Largo do Paissandu permanece seu ponto de encontro.
Centro de Memória do Circo
Onde: Galeria Olido (Av. São João, 473).
Horários: segunda-feira e de quarta-feira a sexta-feira (10h às 20h). Sábados, domingos e feriados (13h às 20h). Fecha às terças-feiras.
Preço: entrada gratuita.
Visitas monitoradas: agendamento pelo e-mail memoriadocirco@gmail.com