ARTIGO
O ex-ministro Antônio Delfim Netto, falecido hoje em São Paulo, excedeu em 20 anos a expectativa de vida dos brasileiros. Não é pouca coisa, ainda mais para um senhor que não aparentava um físico tão saudável – era de baixa estatura e, em grande parte da vida, bastante obeso. Mas tal fragilidade era só aparência, como demonstrou Delfim ao longo destes seus 96 anos de vida com uma vitalidade sem igual.
Não cabe aqui discorrer em detalhes sobre sua vida acadêmica, profissional e política deste paulistano nascido no Cambuci cuja capacidade intelectual ímpar lhe possibilitou construir uma biografia multifacetada, vigorosa e complexa. Pela longevidade, vitalidade e extensão na vida pública, espectro de relacionamentos – capacidade de interlocução com extremos ideológicos na política – Delfim Netto será lembrado e estudado como uma das mais importantes figuras políticas dos últimos 100 anos, bem como um dos seus principais economistas.
Cada economista ou político brasileiro poderá descrever sua própria experiência e convivência com Delfim Netto. Em 1998 defendi no mestrado a dissertação intitulada O Pensamento Popperiano e suas Implicações para a Economia, dez anos depois de ter contato com o principal livro de Karl Popper, A Lógica da Pesquisa Científica, na bibliografia de um curso com o ilustre professor Gustavo de Sá e Silva, ex-diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP-FGV). Popper tem sido uma paixão intelectual e alguns anos depois daquela dissertação li nos jornais sobre a influência do professor vienense, naturalizado inglês, na vida acadêmica do professor Delfim Netto, influência de enorme importância na construção dos alicerces metodológicos da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). O professor Affonso Celso Pastore, recém- falecido, falava bastante sobre isso em suas últimas memórias. A diferença entre ortodoxia e heterodoxia econômica passava por Popper e seu falsificacionismo: uma teoria é tanto mais explicativa quanto mais testes estatísticos e econométricos ela tenha superado.
Nos idos de 2007, contratado para desenvolver o business plan de uma instituição financeira, tive o primeiro contato pessoal com Delfim Netto. Ironicamente, ele havia sido contratado para ‘auditar’, sabatinar meu projeto. Fiz múltiplas visitas a seu chateau no bairro do Pacaembu, em frente ao estádio. Conheci, então, a figura complexa, multifacetada e controversa – afinal, havia sido um dos defensores do Ato Institucional 5, ápice do regime ditatorial brasileiro daqueles anos 60 e 70. Era dele também a controversa proposição normativa do “cresçamos o bolo para posteriormente distribuí-lo”, política econômica daqueles anos do milagre econômico cujos impactos deletérios sobre a distribuição de renda brasileira não podem ser refutados. De todo modo, a recepção, em sua sala repleta de caricaturas dos jornais o retratando ao longo de sua vida, era sempre educada e de nada intimidadora. Pude, em uma delas, conversar sobre nosso gosto comum, as ideias popperianas.
Com esse relacionamento construído, convidei Delfim Netto para falar a meus alunos sobre os desdobramentos da crise financeira de 2008, poucas semanas após sua eclosão. Foi uma aula magistral, sem sombra de dúvidas. Alguns anos depois, como então economista do Instituto de Desenvolvimento do Varejo (IDV), pude, em uma das reuniões mensais dos associados, apresentar o cenário econômico e setorial do instituto para o ilustre convidado. Ao final, conduzindo-o até seu carro, pudemos relembrar daqueles momentos passados em comum. Delfim já apresentava um semblante bem frágil, mas ainda viveria mais de uma década. Bastante mais recluso, mas ainda assim presente no debate socioeconômico do Brasil. Como sempre.
Ricardo Meirelles de Faria é mestre e doutor em Economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, tendo também feito programas de intercâmbio acadêmico na Università Luigi Bocconi e na Georgetown University. Atualmente é professor de Macroeconomia, Economia Brasileira, Política Monetária e Banking na FGV-SP. Fundador e economista-chefe da Linus Galena Consultoria Econômica.