Barrilete: quando a literatura e o futebol se encontram, na primeira livraria dedicada ao esporte
Copa de 1986: sob os olhares de Ali Bin Nasser (Tunísia), Maradona e Shilton se cumprimentam. Cordialidade acabou ali
(Fifa)
Livraria no Bixiga foi aberta há apenas oito meses, por um advogado e um defensor público. "Mercado está crescendo", diz um dos sócios
Espaço de 11 metros quadrados concentra 500 títulos sobre futebol. "Queremos participar do movimento de valorização do Centro"
Por Vitor Nuzzi
[AGÊNCIA DC NEWS]. Entrar inadvertidamente na Barrilete pode pegar o leitor desprevenido em uma dividida. Porque ali pode estar um grupo discutindo tanto o lance polêmico de um jogo remoto como a mais recente derrota da seleção brasileira. E gente que conhece o assunto, como o professor e escritor Luciano Ubirajara Nassar, autor de várias biografias (esportivas, claro) – e ex-jogador –, desfiando memórias e impressões com seu interlocutor. De repente, se descobre que existe até um podcast destinado a ajudar ex-atletas em dificuldades. É preciso se preparar para o inevitável debate, nas improvisadas mesas-redondas no acanhado campo de 11 metros quadrados (um campo oficial pode ter quase 11 mil metros quadrados, considerando as medidas máximas). “Esse era o objetivo desde o começo. Fazer um ponto de encontro de quem gosta de futebol”, disse um dos sócios da livraria, Carlos Eduardo Mitsuo Nakaharada. Oito meses atrás, ele e Diego Rezende Polachini, ambos com 38 anos, abriram a Barrilete, livraria especializada em futebol, em uma ruazinha tranquila (Luís Barreto) da Bela Vista, o Bixiga. É provavelmente o primeiro estabelecimento com esse foco (esportivo e mercadológico).
O nome escolhido por Carlos já exige que se conte uma história, que vem de 1986, e de um jogo em especial. Em 22 de junho, as seleções da Argentina e da Inglaterra disputavam uma vaga para a semifinal da Copa disputada no México. A rivalidade se acirrou depois da chamada Guerra das Malvinas, apenas quatro anos antes, quando os argentinos se renderam aos ingleses no conflito pela posse das ilhas. O jogo estava 1 a 0 para a Argentina, com o famoso gol de mão marcado por Diego Maradona (que cunhou a expressão “la mano de Dios”). Minutos depois, o camisa 10 pega a bola e vai enfileirando os britânicos, incluindo o goleiro Peter Shilton, para marcar o segundo gol.
A partida terminou 2 a 1 para os argentinas. A jogada de Maradona arrebatou o narrador Victor Hugo Morales que em sua transmissão, entre berros, cunhou a expressão “barrilete cósmico” para se referir ao autor do gol: “Barrilete cósmico, ¿de qué planeta viniste para dejar en el camino a tanto inglés?”. Explica-se: antes da Copa, o ex-treinador argentino César Luis Menotti referiu-se a Maradona como “barrilete”, talvez querendo dizer que ele não se mantinha no peso ideal. Uma das traduções possíveis é “pipa”. O jornalista e o ex-técnico, campeão mundial em 1978, tinham divergências: Morales defendia o trabalho do treinador da seleção argentina na Copa de 1986, Carlos Bilardo. E estava certo, já que o time foi campeão mundial naquele ano, derrotando a Alemanha na final.
A narração empolgada de Morales virou caso de estudo. Detalhe: ele é uruguaio. Mas já era bastante conhecido na Argentina, onde trabalhava. Antes da Copa de 1986, durante um voo, foi flagrado por Maradona lendo um livro de Julio Cortázar e passaram horas conversando. Conta-se que o escritor Eduardo Galeano e o então jogador Sócrates se encontraram, por admiração mútua, e depois perguntaram ao uruguaio como foi: “Eu só queria falar de futebol e ele só queria falar de política”. Sempre lembrado pela obra As Veias Abertas da América Latina, Galeano publicou Futebol ao Sol e à Sombra, com pequenas e profundas crônicas sobre o tema.
Marca registrada: sempre duas camisas de times penduradas na janela (Barrilete/Divulgação)
HOMENAGEM – “Nós queríamos homenagear Maradona”, afirmou Carlos, para justificar o nome do estabelecimento. A admiração se estende a Pelé, mas nesse caso, explica, faltou um apelido adequado. Mas no Instagram da Barrilete há uma imagem, feita com inteligência artificial, de Pelé e Maradona juntos em um carro, cada um com a camisa da sua seleção, para promover a Copa São Paulo de futebol júnior, chamada de Copinha. A Barrilete pôs o carro na estrada e foi até o interior para mostrar seus livros. O logotipo da livraria também tem origem esportiva: Carlos e Diego se inspiraram na sombra projetada no estádio Azteca, no México, com a posição do sol. A tática dos neoempreendedores – um era advogado, outro continua defensor público – se completa com a busca de obras para abastecer as prateleiras (duas) e estantes (duas), além de engradados de cerveja onde mais livros são colocados para venda. Atualmente, são quase 500 títulos.
Carlos considera que o mercado livreiro-futebolístico está em ascensão. “Esse mercado vem crescendo. Mas não dá para comparar com Argentina, com Espanha, mesmo com o Uruguai”, afirmou. “A literatura de ficção está engatinhando.” Ele cita como exemplo o livro O Drible, romance escrito por Sérgio Rodrigues. O leitor também vai encontrar clássicos como O Negro no Futebol Brasileiro, de Mario Filho, inúmeras biografias, inclusive de atletas menos conhecidos, histórias de clubes e rivalidades, análises sociais, estatísticas – como uma edição de 2022 do almanaque El Clásico (Barcelona x Real Madri, da Espanha), publicado pela editora Corner e escritor por um brasileiro (Claudio Gioria). Os nomes das seções da livraria são autoexplicativos: Crônicas/Contos/Romances, Formação Tática, Sociedade, Base, Modalidades (um pequeno espaço para outros esportes), Boleiros, História, Seleções, Clubes, Campeonatos. Os sócios mantêm contato com editoras daqui e de fora, para manter o local abastecido. “É um trabalho de garimpagem.” Há também uma caixa para troca de livros, apelidada de “Troco e me voy”. Um trocadilho com a expressão “toco e me voy”: o jogador passa (toca) a bola para alguém e se desloca (vai) para recebê-la de volta.
A história toda começa durante as viagens de Carlos pela América do Sul. Mesmo são-paulino, ele foi a Montevidéu no final de 2021 para ver a decisão da Copa Libertadores da América entre Palmeiras e Flamengo (o time paulista venceu por 2 a 1). Na capital uruguaia, encontrou uma livraria que só tratava de futebol. “Atravessei o Rio da Prata e vi mais duas em Buenos Aires.” Nesse trajeto, ele largou o trabalho de mais de dez anos como advogado para se arriscar em um negócio desconhecido. Sem experiência, passou a fazer cursos de administração e gestão. “Mas estou aprendendo na prática, no dia a dia.” Segundo ele, grande parte do faturamento vem das venda de cerveja, especialmente em dias de jogos. É outra marca da Barrilete: todo dia, duas camisas são penduradas na janela que dá para a rua. Todas da coleção de Carlos (tem 300), que também costuma atender no balcão devidamente uniformizado. Na semana que passou, podiam ser vistas as do Brasil e da Argentina (que se enfrentaram pelas eliminatórias da Copa), depois as de Corinthians e Palmeiras (decisão do campeonato paulista), Gil Vicente e Benfica (campeonato português) e, no último sábado (29), América-RJ e Arsenal (Inglaterra). Nesse dia, a livraria e a editora Onze Cultural promoveram o lançamento de 1960, do jornalista José Trajano. Carlos tem suas referências: cita a livraria Folha Seca, do Rio de Janeiro, e a Pontes, em Campinas, interior paulista, que mantêm espaços dedicados ao futebol.
Um desafio, diz o livreiro, é atrair gente que gosta de futebol, mas não está acostumada à leitura. Por enquanto, segundo ele, a maior parte dos clientes que aparece na Barrilete vem de outros bairros. (Quem foi para lá recentemente foi outra livraria alternativa, a Na Nuvem, que até o ano passado estava em Campos Elíseos.) Outro objetivo é estimular as conversas, independentemente do time, até para mostrar que é possível falar de futebol sem brigar. “Aqui a gente não é clubista. A gente quer a convivência com todo mundo.” Eles também pensam em criar uma seção para livros usados. Outra ideia é passar a servir refeições. Mais adiante, pode ser que a livraria mude até de endereço, para um espaço maior, mas sair do Bixiga está fora de questão. Os dois sócios já viviam ali, sempre frequentavam bares, cantinas e os ensaios da Vai-Vai. Por sinal, há uma bandeira da escola em uma das paredes, junto de uma fotografia do corintiano Adoniran Barbosa. “A gente quer fazer parte desse movimento de valorização do Centro”, afirmou Carlos.