SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A atuação do Brasil na guerra hoje em curso na Faixa de Gaza é restrita à esfera diplomática. Mas em 1967, quando a Guerra dos Seis Dias irrompeu, o país se viu literalmente no meio do fogo cruzado no território palestino –e chegou a perder um soldado.
O gaúcho Sérgio Luiz Dias era um dos mais de 400 militares brasileiros que estavam na faixa naquele momento. Integrante do 20º contingente do Batalhão Suez, ele e seus colegas representavam o país na primeira Força de Emergência da ONU, criada com o intuito de manter a paz no Oriente Médio depois da Guerra de Suez.
De 1957 a 1967, o Brasil enviou 6.300 homens para a área. Além das tropas brasileiras, ainda havia militares do Canadá, Colômbia, Dinamarca, Finlândia, Índia, Indonésia, Noruega, Suécia e Iugoslávia.
Dias afirma que, a despeito de os chamados capacetes azuis terem conseguido impedir um novo conflito no local por mais de uma década, a tensão nunca chegou a ceder. “Colegas de outros contingentes contavam que sempre tinha aquele terror, ‘a guerra é amanhã’, ‘a guerra é amanhã'”, diz. “Logo na minha vez foi acontecer.”
Hoje com 78 anos e vice-presidente da Associação Batalhão Suez, que reúne veteranos dos contingentes, ele tinha 20 quando foi enviado para Gaza. Estava lá havia menos de quatro meses quando, em maio de 1967, o presidente do Egito à época, Gamal Abdel Nasser, ordenou a dissolução da força de paz da ONU e a retirada de suas tropas do território palestino.
“Deram para nós até 20 de junho para nos retirar”, conta Dias. “Só que esqueceram de combinar com os judeus.” Em 5 de junho, as tropas de Israel começaram a bombardear o Egito e iniciaram incursões por terra em Gaza e no monte Sinai.
Quase todos os outros países tinham retirado suas tropas antes daquela data. Os canadenses, por exemplo, foram embora em 48 horas, segundo o ex-militar. “Abandonaram tudo, saíram de lá com a roupa do corpo. E o contingente deles era o maior que havia, com 800 homens. Tivemos que assumir o trabalho deles.” Quando estourou o conflito, os únicos batalhões que tinham restado na faixa além deles eram o indiano, o sueco e o iugoslavo.
Dias se recorda de ver dois aviões israelenses sobrevoando o quartel do Batalhão Suez, localizado do lado da fronteira com o Egito, na cidade de Rafah, por volta das 8h. Em seguida, ouviu os tiros de artilharia antiaérea e os bombardeios.
Ele e os demais soldados brasileiros foram então ordenados a fazer as malas. Antes de saírem, no entanto, um outro cabo, Carlos Adalberto Ilha de Macedo, percebeu que tinha esquecido os documentos no bolso de uma roupa que ficou na lavanderia, e voltou ao local para buscá-lo.
Dias conta que, ao procurar o colega, que coincidentemente tinha sido seu vizinho em Porto Alegre, encontrou-o caído. “Vi que ele tinha levado um tiro no canto da boca que saiu pela nuca do lado direito. Aí perdi a noção do perigo e saí em campo aberto, correndo, para buscar socorro para ele. Mas quando o trouxe para a enfermaria, ele já estava praticamente morto.”
O gaúcho Sérgio Luiz Dias, que integrou o Batalhão Suez, que serviu na Faixa de Gaza em 1967, em retrato tirado na época ORG Arquivo pessoal retrato de homem com pano palestino típico na cabeça **** Uma das funções de Dias era enterrar os mortos. Ele conta que decidiu enterrar o colega em uma biblioteca do quartel, por ser um lugar amplo e protegido. “Jogamos tudo fora, livros, prateleiras. Quebramos o piso e cavamos a sepultura dele ali.”
Dias depois, quando os soldados do Batalhão Suez aguardavam, na Cidade de Gaza, o navio que os levaria de volta ao Brasil, pediram a seus superiores para percorrer os cerca de 30 quilômetros que separam a capital e Rafah para exumar o cadáver de Ilha, como o cabo era conhecido. Dias diz que ele mesmo construiu o caixão de madeira em que o corpo do militar foi transportado e entregue à família em Porto Alegre.
O lugar onde ficava o posto de comando brasileiro em Gaza continuou a ser chamado de campo Brasil muito depois da saída do Batalhão Suez. Quando um conjunto habitacional foi erguido na área, recebeu dos palestinos a alcunha de Al-Brazil. O bairro foi completamente destruído durante a invasão mais recente de Israel à área neste ano.
Dias conta que, quando chegou a Gaza, depois de quase dez anos de presença brasileira na faixa, a convivência entre os militares do país e os palestinos era tão arraigada que a maioria dos funcionários do campo Brasil já falava português. “Até ríamos, porque tinha palestino com sotaque carioca”, relembra.