Duas vezes presidente do Banco Central (BC), no pré e no pós Plano Real, o economista Gustavo Loyola, 71 anos, criou em sua gestão o Comitê de Política Monetária (Copom), responsável pela taxa básica de juros, que tanto bate-boca tem causado no atual Governo Lula. Algo que Loyola considera incompreensível, já que a economia brasileira vai relativamente bem. Mostra, segundo ele, “pouco entendimento” por parte do presidente da República sobre as ações do BC, além de prejudicar o próprio combate à inflação, ao piorar as expectativas. O mercado também cumpre a função de obrigar o governo a ter transparência. “Isso fortalece o sistema, evita que você tenha crises terminais.”
Para ele, o principal problema segue sendo o fiscal, com políticas menos austeras e o que o ex-presidente do BC chama de “espírito gastador” do atual presidente do Brasil. É, assim, o que Loyola chama de pé manco do tripé macroeconômico. O endividamento talvez não traga a inflação de volta, mas impede o país de crescer. Em entrevista exclusiva à DC NEWS, Gustavo Loyola, diretor-presidente da Tendências Consultoria, fala ainda das origens e crises do Plano Real, que acaba de completar 30 anos, e aponta aspectos positivos da Reforma Tributária em discussão no Congresso.
DC NEWS – O senhor foi presidente do Banco Central (BC) no período imediatamente anterior e no imediatamente posterior à implementação do Plano Real. Qual foi a mudança do ambiente institucional nesse intervalo?
Gustavo Loyola – Na minha primeira presidência, o país tinha saído do Plano Collor, que foi muito traumático. Eu tinha sido diretor do BC nesse período. Na época, estavam a ministra Zélia (Cardoso de Mello) e o presidente do BC era Ibrahim Eris, e depois continuei com o ministro Marcílio (Marques Moreira), e o Francisco Gros na presidência do BC. Com o impeachment de Fernando Collor, o presidente Itamar (Franco) me chamou para comandar o BC. Foi, eu diria, um período bastante tumultuado. Só durante a minha curta gestão (de novembro de 1992 a março de 1993), tivemos dois ministros da Fazenda (Gustavo Krause e Paulo Haddad), e teria ainda um terceiro depois que eu saí (Eliseu Resende), para só depois vir Fernando Henrique Cardoso.
DCN – Não havia, então, qualquer expectativa de que um plano pudesse surgir nesse período?
Loyola – Nós que estávamos no governo na época não cogitamos isso. Pelo menos, não no Banco Central. Eu acabei saindo, com o ministro Paulo Haddad. Depois, me sucedeu no BC Paulo Cesar Ximenes, já trabalhando com Eliseu Resende. Logo depois, houve a saída do Eliseu e, aí sim, o convite ao então ministro (das Relações Exteriores) Fernando Henrique Cardoso, para assumir o Ministério da Fazenda. E ele teve condições de formar uma equipe e, mais do que isso, teve força política junto ao presidente Itamar para elaborar e executar o Plano Real.
DCN – Um momento único…
Loyola – O plano veio aproveitando uma oportunidade ímpar, em que você tinha todas as condições para fazer uma tentativa de estabilização que desse certo. O Plano Real teve suas bases teóricas sobre trabalhos dos economistas da PUC do Rio. Alguns deles já haviam estado em planos anteriores, mas com abordagem diferente da feita no Real, que não passou por congelamento de preços, e sim pela criação de uma moeda intermediária, a URV (Unidade Real de Valor), e ao mesmo tempo evitando uma série de erros que haviam sido cometidos nos planos anteriores.
DCN – A URV foi o diferencial?
Loyola – Sem dúvida. A criação da URV fez com que o plano prescindisse de um congelamento. Porque os preços se ajustavam àquela moeda. Os salários, os contratos, os preços. Tudo era corrigido pela URV. Nos planos anteriores, a expectativa de que pudesse haver um congelamento acelerava muito a inflação. No momento em que havia o congelamento, muitos preços estavam defasados em relação a outros. Você não conseguia manter por muito tempo. Com a URV, todos os preços estavam ajustados, e isso facilitou bastante a queda da inflação. Lembrando que, nos primeiros meses, ainda houve uma inflação razoavelmente alta, para os padrões atuais. E o Plano Real enfrentou crises no seu início.
DCN – Que crises foram essas?
Loyola – A primeira foi a chamada Tequila, a crise no México, final de 1994 para 1995. Uma divergência no BC em relação á condução da política cambial levou à saída do presidente do BC na época, que era Persio Arida, um dos autores do plano. Aí, eu voltei ao BC, em junho de 1995, quando o Plano Real completava um ano. O câmbio tinha começado a ter um processo de deslizamento, dentro de uma onda estreita, mas você tinha algumas questões a serem resolvidas, do ponto de vista normativo, relacionadas à indexação, por exemplo. Outro problema que caiu no meu colo nesse período foi exatamente a crise bancária. A gente teve de lidar não apenas com os bancos estaduais, que estavam sob intervenção do BC, mas com problemas de alguns dos maiores bancos privados do país.
DCN – O que teve de ser feito?
Loyola – Fizemos um esforço enorme para que houvesse um processo menos danoso possível à economia popular, à economia como um todo. Programas como o Proer (programa destinado aos bancos privados), por exemplo, privatizações, e também toda a mudança da legislação bancária, de maneira a impedir que esse tipo de crise voltasse a existir. E houve a criação de mecanismos importantes, como o Fundo Garantidor de Crédito. Do ponto de vista macroeconômico, a gente tinha um regime de âncora cambial, e a política monetária era fixada para manter essa âncora de pé. Foi também na minha gestão, em 1996, que decidimos dar os primeiros passos na recuperação dos instrumentos de política monetária, com a criação do Copom (Comitê de Política Monetária). Em 1997, a gente começou a ter sinais de uma crise séria na Ásia, e aí evidentemente esse foi um processo que exigiu um ajuste muito forte de juros.
DCN – Isso só foi possível porque havia suporte político…
Loyola – Houve um círculo virtuoso. O Plano Real, ao dar certo, viabilizou uma candidatura de quem tinha estado na liderança do projeto. Era uma garantia de continuidade. Esse era o desejo majoritário dos brasileiros. Mesmo em 1998, quando o plano já havia sofrido algumas crises fortes, inclusive na Ásia, o presidente foi reeleito ainda no primeiro turno. Existia uma base forte no Congresso, com três grandes partidos dando suporte ao presidente Fernando Henrique (PSDB, PFL e PMDB). Com essa base, foi possível implementar as principais medidas do plano e algumas reformas importantes, como agências, Lei de Responsabilidade Fiscal.
DCN – Alguma ficou de fora?]
Loyola – Algumas não foram possíveis, como a Reforma da Previdência, que só veio depois. Evidentemente, esse segundo mandato teve esse problema da crise asiática, depois a crise da Rússia. Aí sim, tivemos um momento bastante importante do plano, crítico. E aí associado à mudança do regime cambial, que passou a ser de taxas flutuantes, e a adoção de uma nova âncora monetária, o regime de metas. Esse regime foi bastante bem-sucedido.
DCN – Como foi a passagem do governo Fernando Henrique Cardoso para o governo Lula?
Loyola – Sim. Esse foi outro grande momento, com a eleição de Lula. Havia muita dúvida sobre se as bases do plano seriam mantidas. Inclusive, porque quase todos os economistas do PT haviam sido contra o plano. Havia um discurso oposicionista muito forte em relação à política econômica. Felizmente, prevaleceu o bom senso e o presidente Lula preservou o plano, nomeando Antonio Palocci ministro da Fazenda e alguns auxiliares que haviam trabalhado no governo anterior. E colocando Henrique Meirelles para comandar o Banco Central.
DCN – Um Lula compromissado com aquela agenda econômica?
Loyola – Lula manteve no seu primeiro mandato e até meados do segundo uma política fiscal austera. Tivemos inclusive o Brasil chegando à condição de grau de investimento. Depois, o país passou muito bem pela grande crise financeira de 2009.
DCN – Hoje, o Brasil está novamente com essa discussão de meta fiscal, gastos públicos. O senhor falou em “comemoração preocupada” para os 30 anos do Plano Real.
Loyola – Durante (a segunda metade do) segundo mandato de Lula e, principalmente, quando Dilma Rousseff assumiu o governo, tivemos um afrouxamento muito forte do chamado tripé que mantinha o Plano Real de pé. A questão mais grave é a fiscal. Houve abandono das metas fiscais, de superávit, inclusive a adoção da chamada contabilidade criativa. Na política monetária, a gente teve uma leitura mais frouxa do regime de metas, em que o Banco Central mostrou um grau maior de tolerância em relação ao cumprimento da meta, e intervenções no mercado de câmbio. Além de políticas creditícias de bancos públicos que claramente tiravam a força da política monetária.
DCN – E o resultado…
Loyola – Esse processo foi muito danoso para o Brasil. Não apenas porque perdemos o nosso grau de investimento, mas porque nos levou a uma das piores recessões que o país já teve. Não apenas profunda, mas demorada. Para você ter uma ideia, o Brasil só estava recuperando o mesmo nível de PIB às vésperas da pandemia. Com a saída da presidente Dilma e a entrada do vice Michel Temer tivemos recuperação da credibilidade do Banco Central e uma gestão mais austera no Ministério da Fazenda. O Brasil começou a voltar de novo aos trilhos. Mas não houve tempo para essa retomada. Houve a tentativa do teto de gastos, que foi uma inovação importante, já que a Lei de Responsabilidade Fiscal havia sido enfraquecida demais, por várias interpretações equivocadas. E aí tivemos todas as dificuldades que vieram na esteira da pandemia.
DCN – E desde então, como foi o cenário em sua análise?
Loyola – Embora os resultados fiscais apresentados no final do governo Bolsonaro tenham sido bons e a gente tenha conseguido uma importante reforma, que foi a da Previdência, quando Lula assume agora ele encontra uma situação de repressão fiscal. Você tinha os salários reprimidos, despesas adiadas, dívidas de precatórios… Além disso, Lula veio com um espírito gastador. Esse governo atual não tem a mesma pegada, aquele mesmo compromisso com austeridade fiscal que teve durante o primeiro mandato. Esse novo arcabouço, que é relativamente frouxo, comparado ao teto de gastos, não está sendo cumprido.
DCN – Esse déficit primário, que agora voltou ao zero, é factível?
Loyola – Eu acho muito difícil que seja. Por exemplo, ao reintroduzir a política de reajuste real do salário mínimo, o governo indexou também benefícios da Previdência, ao mesmo tempo em que indexou os benefícios (de prestação continuada) ao salário mínimo. Você criou um piso muito elevado para essas despesas. Houve também aumento do número de brasileiros atingidos por esses programas. Além disso, você teve uma série de medidas, aumento de salários, alguns programas de subsídios, e o governo que teve a ilusão – ou a estratégia – de achar que equilibraria o déficit pelo lado da receita.
DCN – Erro antigo?
Loyola – Desde o início, o ministro (Fernando) Haddad vem tentando criar medidas para aumentar a receita, e não tem conseguido. O Congresso já deu sinais claros de que não aceita certas medidas de aumento de impostos. Talvez, o caso mais flagrante tenha sido o da reoneração da folha (de pagamento). Embora o governo tenha tido sucesso em algumas medidas, elas não são suficientes. É interessante que as receitas do governo estejam até crescendo em um ritmo bom. Só que as despesas estão aumentando, e a gente vê sempre iniciativas – e aqui a responsabilidade não é só do governo, do Executivo, é do Legislativo também – para aumentar as despesas. Por exemplo, essa proposta de Rodrigo Pacheco (presidente do Senado) de renegociação das dívidas dos estados. Vai gerar um ônus sobre o Governo Federal e dar mais espaço para os estados gastarem.
DCN – E os gastos obrigatórios tendem sempre a crescer.
Loyola – Exato. Já tendiam a crescer, naturalmente, e essa indexação que o governo introduziu acelerou o processo. Esse é um defeito congênito que você tem no Brasil desde a Constituição de 1988, que é o excesso de vinculações e a falta de flexibilidade no orçamento brasileiro. E isso tem se agravado ao longo do tempo.
DCN – E a Reforma Tributária? O senhor está otimista com o que está saindo do Congresso?
Loyola – Acho um avanço. A ideia da criação de um valor agregado, a eliminação dos impostos em cascata, isso é uma modernização importante. A gente sabe que em um regime federativo como o Brasil é difícil fazer isso. Mas encontrou-se um sistema que funciona. A mudança da tributação do destino para a origem é importante. Agora, a gente vê uma série de aspectos em que os benefícios da reforma vão diminuindo pelo aumento da complexidade. Por exemplo, embora possa ser justificado que você tenha alíquotas diferenciadas, esse tipo de situação tem de ser minimizada para evitar inclusive interpretações, incertezas, insegurança jurídica. A Câmara colocou uma trava nisso. Mesmo assim, a reforma pode estar perdendo em termos de certificação. Mas ela é positiva.
DCN – Mas longe do fim…
Loyola – Tem estado que quer voltar com o regime de substituição tributária, que é absolutamente incompatível com a reforma. Então, ainda tem uma luta grande. Se for bem feita, vai ser muito positiva para o Brasil.
DCN – A reforma pode aumentar o poder de compra?
Loyola – Vai simplificar para as empresas e pode trazer um sistema mais justo de tributação do consumo, que no Brasil acaba onerando muito pesadamente as famílias de baixa renda, que são mais consumidoras de bens do que de serviços. Mas o objetivo dessa reforma não é tanto a questão distributiva, é mais para tornar o sistema mais racional e incentivar, aí sim, o crescimento da economia, os investimentos, criar empregos.
DCN – E como reduzir as desigualdades nisso?
Loyola – Onde você tem de trabalhar para ter um sistema mais progressivo, que penalize menos os que têm menor renda, é no Imposto de Renda. Por outro lado, onde você tem de trabalhar para melhorar a distribuição de renda, falando de política fiscal, é na parte das despesas. Deixar de dar benefícios para grupos da sociedade que não precisam deles.
DCN – Como ex-presidente do BC, o que o senhor pensa das críticas do presidente da República à política de juros? Atrapalha o combate à inflação?
Loyola – Sem dúvida. O presidente tem a caneta na mão. Não no sentido de demitir o presidente do Banco Central hoje. Mas ele já indicou dois e daqui a pouco vai indicar o novo presidente do BC e outros diretores. Na medida em que ele tem um discurso que mostra pouco entendimento do que o Banco Central está fazendo ele sinaliza que vai escolher para o cargo pessoas que têm perfil pouco independente. O BC pode perder sua independência.
DCN – Haverá afrouxamento na política de juros?
Loyola – Não acredito que o atual Copom vá mudar sua posição por causa dos ataques do presidente Lula, que só fazem piorar as expectativas. Recentemente, o real se desvalorizou muito por causa de três fatores, dois domésticos e um externo. Domesticamente, você teve primeiro o anúncio de que o governo não iria cumprir o déficit zero, e depois voltou atrás. E o segundo é a questão do Banco Central. Hoje, no mercado, essa é a grande dúvida, sobre quem será o sucessor de Roberto Campos Neto (atual presidente do BC). Resumindo, o governo deu um tiro no próprio pé. O presidente Lula piorou as condições da economia e inclusive pode ter impedido que os juros caíssem mais. E no campo externo relacionado à política monetária americana, às incertezas sobre a queda de juros nos Estados Unidos. Isso tendeu a valorizar o dólar.
DCN – Mas ao mesmo tempo os demais indicadores macroeconômicos vão relativamente bem?
Loyola – A economia está indo bem. Os indicadores de emprego estão bons, de crescimento de vendas de comércio e indústria, a inflação não está caindo para o centro da meta, mas está sob controle. Você tem um ambiente econômico que está longe de estar em crise. É difícil entender por que o presidente da República e alguns de seus auxiliares mais próximos começaram essa campanha contra o Banco Central. É algo irracional.
DCN – O Conselho Monetário Nacional criou o sistema de meta contínua para a inflação. É uma mudança importante, ou seis por meia dúzia?
Loyola – Tem uma notícia boa embutida nisso que, no calor de toda essa confusão sobre o Banco Central, acabou passando despercebida. A gente acabou com essa discussão de cada mês de junho ter de definir qual é a meta da inflação para daqui a dois anos. Está fixado que a meta de inflação é 3%. Ao mesmo tempo, manteve alguns gatilhos, alguns critérios, para assegurar o cumprimento da meta. Acho que essa meta contínua tem méritos. A política monetária é contínua.
DCN – A sua consultoria, a Tendências, está trabalhando com quais resultados para juros, PIB e inflação?
Loyola – Os juros, a gente trabalha com a manutenção desse nível até o final do ano. No ano que vem, pode ter alguma queda, mais 1 ponto percentual, algo assim. Para o PIB, crescimento de 1,8%. Para o ano que vem, pode ficar também em torno de 1,8% a 2%, a depender obviamente de fatores externos. Nossa expectativa de inflação para este ano é próxima a 4%. Para o ano que vem, um pouco abaixo, talvez 3,5%. Ainda acima da meta, mas dentro do intervalo de tolerância.
DCN – Nosso pé manco do tripé ainda é o fiscal?
Loyola – Sim. Não é um risco imediato. Ainda não estamos às vésperas disso. Não é apenas o risco de descontrole do endividamento público, que pode trazer de volta a inflação. Mas a situação fiscal tem evitado ou impedido que o Brasil possa crescer mais, possa ter juros mais baixos, ter mais confiança na economia. Acaba sendo um freio para o país crescer. O fiscal é o pé manco do tripé.
DCN – Compromete conquistas vindas desde o Plano Real?
Loyola – O Plano Real foi um grande ganho, mas os seus frutos ainda são incompletos. A distribuição de renda melhorou, mas poderia ser ainda melhor. O Brasil ainda é um país muito desigual. Tudo isso porque a gente tem um sistema de contas públicas inadequado. Além disso, existe uma coisa em economia que a gente chama de “armadilha da renda média”. Os países conseguem sair da pobreza, mas quando chega a um determinado nível de renda há uma dificuldade de ultrapassar e ser um país rico. Nos últimos anos, você encontra dois ou três países que fizeram isso. É uma travessia que a Coreia do Sul, por exemplo, fez. E que exige um trabalho de gerações, não apenas de gestão econômica, mas investimento em educação. Esse é o grande desafio para o Brasil sair dessa armadilha.