Morre Delfim Netto, aos 96 anos: economistas falam de seus méritos, suas contradições e elogiam sua grandeza

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Economista morreu nesta segunda-feira em São Paulo. Ele deixou esposa, filha e um neto
Valter Campanato/Agência Brasil
  • Personagem dos mais influentes da economia e da política no Brasil dos últimos 60 anos, ele transitou dos militares à proximidade com Lula
  • Economista foi o maior expoente da política econômica do regime militar, com contribuições positivas e legados controversos
Por Da Redação

Como toda figura que alcançou a projeção e a grandeza que Antônio Delfim Netto alcançou, é tarefa improvável escapar de uma jornada marcada por acertos, erros e muita ambiguidade. Uma extensa ponte que o levou de ministro da ditadura a interlocutor de Lula. E o próprio economista, que morreu nesta segunda-feira (12) em São Paulo, aos 96 anos, assumia isso. Internado havia uma semana no Hospital Albert Einstein, era viúvo de Mercedes Saporski Delfim (que morreu aos 93 anos, em 2011) e estava casado com Gervásia Diório. Deixa uma filha (Fabiana Delfim) e um neto (Rafael).

Três falas de Delfim dadas à Folha de S.Paulo refletem esse personagem de extremos. Numa entrevista de 2014, defendeu atuações da ditadura – “Nunca houve milagre. Milagre é efeito sem causa. O crescimento do Brasil naquele período foi consequência da grande arrumação que houve no setor econômico produzida no governo Castelo Branco”. Em outra, dada em 2002, pouco antes da posse de Lula, afirmou que o então presidente “está ameaçado de se transformar num grande estadista”, mostrando outra de suas características mais marcantes: a ironia. Delfim se aproximou de Lula e só se afastou do líder petista no começo do segundo governo de Dilma Rousseff – “Dilma deveria ter acordado antes da sociedade”, afirmou à Folha em 2016 sobre os primeiros protestos (de três anos antes) que levaram à queda da ex-presidente.

A DC NEWS ouviu economistas e consultores sobre esse personagem que mudou e moldou a economia brasileira das últimas seis décadas. A seguir, trechos desses comentários sobre Delfim Netto.

Por: Bruna Lencioni, Bruna Galati, Edson Rossi, Naira Zitei, Victor Marques e Vitor Nuzzi.

ALBERTO AJZENTAL, doutor em economia e professor da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). “Delfim Netto é uma figura central na história econômica do Brasil, com uma influência que se estende por quase seis décadas, atuando direta ou indiretamente em diversos governos. Sua carreira é marcada por uma ambiguidade notável. Embora tenha sido um dos responsáveis pelo crescimento durante o milagre econômico, suas políticas também contribuíram para problemas estruturais que afetaram o Brasil nas décadas seguintes. Sua capacidade de adaptação e de aproximação com diferentes líderes políticos, de direita e esquerda, evidencia sua influência e versatilidade, mas também levanta questões sobre a coerência e consistência de sua visão econômica ao longo dos anos.”

JAYME CARVALHO, economista e planejador financeiro. “O professor Delfim Netto tem uma contribuição acadêmica e também de conhecimento muito grande. E deixou sua marca não só em economia, mas também na política. Como ministro do governo militar, foi responsável pelos planos econômicos que levaram a um crescimento econômico acelerado, mas por um modelo econômico que não se renovou. A questão do fazer o bolo crescer para depois dividir. É difícil falar se isso daí é um tema somente econômico ou não também político, das condições que ali estavam colocadas que não foram compostas, como a redemocratização, que não dependia dele. Mas a grande verdade é que o crescimento econômico que o Brasil viveu naquelas décadas trouxe temas de desequilíbrios que depois voltaram na década seguinte como inflação. De qualquer forma, o professor teve uma carreira brilhante, foi um grande intelectual e manteve nos últimos anos a sua contribuição na discussão política e econômica do país.”

JULIANA INHASZ, economista, coordenadora e professora do Insper. “Ele sabia dialogar e era uma pessoa de boa comunicação e fino trato. Tinha, por ofício, habilidade de transitar entre grupos distintos sendo respeitado em todos: era talvez uma das únicas figuras consultadas por ambos os lados e ideologias. Justamente por suas características, compôs a equipe econômica de diversos governos, direta ou indiretamente, em momentos diversos da economia brasileira. É fato que não foram as controvérsias de diversos momentos de nossa história que fizeram com que ele negasse os desafios, encarados do governo militar ao governo de Lula. Certamente parece contraditório atuar em universos tão distintos. No entanto, dada sua inclinação desenvolvimentista, a atuação plural permitiu experimentar diferentes políticas em diferentes contextos. Foi, sem dúvidas, enriquecedor.”

LUCIANO NABAKASHI, professor doutor do Departamento de Economia da FEARP/USP. “Delfim Netto fez o que era possível para estimular a economia sob as possibilidades dentro de uma ditadura. Acredito que a [posterior alta da] inflação não foi 100% causada pelas medidas do seu governo, pois tivemos dois choques do petróleo, em 1973 e 1979, além da mudança na política monetária dos Estados Unidos, movimentos que afetaram muito os países endividados. Visto isso, os componentes externos foram muito relevantes no sentido da [explosão da] inflação. Acima de tudo, Delfim Netto foi, em muitos momentos, pragmático. Por isso aparece como protagonista de algumas contradições, já o cenário político e econômico se alterou muito do período da ditadura para a redemocratização. Mesmo assim, ele continuou sendo muito influente diretamente ou indiretamente nos governos seguintes [ao período militar] e também na formação da opinião pública. Foi sempre se adaptando à realidade, uma realidade que foi se alterando muito naquele período.”

LUIS FELIPE LEBERT COZAC, economista e professor, um dos autores do livro Conversas com Economistas Brasileiros. “Delfim Netto teve uma importância relevante na minha formação como economista na USP. Ele já não dava mais aulas durante a minha graduação, nos anos 1980, mas sempre aparecia e nos brindava com palestras brilhantes. Mas tenho lembranças anteriores, que permitiu os quadros de humor do também saudoso Jô Soares. O multifacetado Delfim inspirou diversos personagens do comediante. Mais tarde, tive a oportunidade de entrevistá-lo, no ano de 1995, para um projeto que depois se tornou o livro Conversas com Economistas Brasileiros. A lista de entrevistados sempre foi motivo de divergência entre os autores e entre os próprios entrevistados, mas o nome de Delfim Netto sempre foi uma unanimidade. Se os critérios eram contribuição intelectual para o debate acadêmico e para as políticas públicas, o professor Antônio Delfim Netto cumpria com louvor e rigor os pré-requisitos. E ele nos brindou com uma didática, divertida e instigante entrevista, que evidencia toda sua erudição, perspicácia e capacidade de convencimento.”

MARCEL SOLIMEO, economista-chefe do Instituto de Economia Gastão Vidigal da Associação Comercial de São Paulo (ACSP). “Delfim foi meu professor, meu colega na Associação Comercial durante muitos anos e meu amigo. Fez carreira em todos os segmentos possíveis da sociedade. Mas o mais importante é que ele era muito estudioso e muito espirituoso. Deixou esse legado, o de um estudioso que tinha suas posições e as justificava claramente, às vezes com alguma ironia. Pessoas com posições sempre são polêmicas. O que detonou a inflação da época [não foi por ele] foi o preço do petróleo lá fora. O país tinha de comprar petróleo. Ele deu uma contribuição muito positiva, foi o período em que o Brasil mais cresceu. Tinha grande conhecimento de política econômica e ao mesmo tempo era muito pragmático. Tomava medidas de quem conhecia o lado de cá.”

PEDRO AFONSO GOMES, presidente do Conselho Regional de Economia (Corecon-SP). “Na véspera da comemoração do Dia do Economista (13 de agosto) nos deparamos com a notícia do falecimento do professor, economista e ex-ministro Antônio Delfim Netto. Era associado do Corecon-SP desde 1948. Uma questão constante em sua vida foi o amor ao conhecimento e a ajudar. Assim como uma marca era sua capacidade de análise e de pegar todos os detalhes de um determinado problema. Era impressionante. Às vezes, não enxergávamos toda a questão e ele ia com sua lupa para ajudar a entender. Há várias opiniões sobre a atuação de Delfim Netto e não podemos ver isso de outra maneira, pois nossa profissão é de humanas que usa os elementos das ciências exatas. Então, sempre vai haver divergências. Mas o que deve ficar muito forte para nós, como exemplo de professor, é que nesses quase 80 anos de estudo da economia, o que ele nunca deixou de fazer foi analisar e escutar as outras pessoas para poder argumentar.”

RAFAEL CORTEZ, doutor em ciências políticas pela USP e sócio da Tendências Consultoria. “Delfim Netto é exemplo de alguém reconhecido por sua rara inteligência, cultura e capacidade técnica, atributos que devem ser analisados à luz dos desafios mais amplos que o país enfrentou. A modernização da economia brasileira, caracterizada por uma combinação de crescimento expressivo e um regime autoritário, reflete o duplo caráter do trabalho de Delfim Netto. Ele foi um dos principais representantes da política econômica do regime militar, com suas contribuições positivas e legados controversos. Sua abordagem foi questionada no contexto democrático subsequente, e isso é um aspecto importante a ser considerado. O impacto de suas políticas e o debate sobre a trajetória de desenvolvimento econômico do país foram marcados por esse contexto histórico específico. Delfim Netto junto de figuras importantes, como Mário Henrique Simonsen, Pedro Malan e outros, contribuíram significativamente em diversas fases do debate econômico. E a diversidade de visões é essencial. Essa pluralidade pode ter ajudado a ajustar a política econômica mais rapidamente. Portanto, ao interpretar o legado de Delfim Netto, é essencial reconhecer sua importância em qualquer análise. Porque sua influência e experiência são indiscutíveis.”

RENAN PIERI, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). “Delfim Neto foi um dos expoentes economistas da sua geração, uma das primeiras de economistas do Brasil. Uma mente brilhante academicamente. Ele chegou a fazer sua tese de doutorado usando técnicas de estatística que, para a época, era algo desafiador e avançado. Além disso, foi um dos líderes do departamento de economia da USP, que alavancou a formação de muitos economistas no Brasil. Na política, teve papel proeminente na elaboração de planos econômicos durante os anos do chamado milagre econômico, participou ativamente da política interna e externa na década de 1970 e após o fim da ditadura manteve um papel ativo e relevante até o final de sua carreira. Por outro lado, ele também enfrentou questões éticas. Com o devido distanciamento, as gerações futuras poderão analisar melhor sua trajetória. Como economista e professor de economia, costumo refletir sobre o que chamo de Dilema Delfim Netto. Se uma pessoa bem-informada e comprometida com o país se depara com um golpe militar, deve ela se opor ao regime e marcar sua posição como antagonista, ou abraçar seu cargo e tentar melhorar o país, mesmo em um contexto adverso? Esse é um benefício da dúvida que dou ao Delfim Netto. Embora existam relatos de que ajudou a libertar pessoas investigadas pela ditadura, como professores e pensadores, a verdade é que ele também teve uma parcela de responsabilidade na manutenção do regime. No final, não sabemos qual Delfim será lembrado. Talvez o mais justo seja ser lembrado em toda a sua complexidade.”

VANDYCK SILVEIRA, economista, CEO da Humaitá Digital e comentarista econômico da BM&C News. “Delfim Netto foi das maiores figuras das vidas econômica e política brasileiras. E como toda grande figura, teve diversos matizes. Foi um grande pensador. Colocou o Brasil na rota do milagre econômico. Abraçou uma série de ideias de proteção a uma indústria nascente, com investimento alto de capital. No entanto, as políticas que ele elaborou e executou durante o período militar foram a gênese do fechamento econômico brasileiro. Levou a um protecionismo a setores empresariais, em especial o industrial. Errou ao imaginar que o forte crescimento apenas bastaria. Isso levou a um modelo baseado e dependente de consumo interno. A conta não fechou porque o país tem uma população paupérrima. Ficamos preso nesse modelo. Nem crescemos para distribuir riqueza, que era o sonho de Delfim Netto, nem conseguimos ser o Japão, depois a Coreia do Sul e mesmo a China. De toda forma, não dá para jogar a culpa só nele. Havia um contexto global naquela época. Mas o que aconteceu de diferente por aqui foi que parte da classe política se uniu ao protecionismo de setores empresariais, com fortes subsídios e isolado do mundo. Isso é que foi nefasto. Não foi ele o responsável por isso. Essas coisas foram consequências não intencionais de políticas de crescimento feitas naquele momento. Ele contribuiu demais para este país, mesmo tendo vencido a data de validade de seu modelo. O que ele depois reconheceu. Também por isso, e acima de tudo, o professor Delfim Netto foi fundamental para a disseminação da ciência econômica no Brasil e um grande pensador.”

VITORIA SADDI, economista, sócia da SM Futures, foi diretora da mesa de derivativos do JP Morgan e professora na University of Southern California e no Insper. “Com a morte do Delfim Netto fecha-se um ciclo de economistas que pensaram o Brasil pelo Brasil. Roberto Campos (1917-2001), Mário Henrique Simonsen (1935-1997), depois o Affonso Celso Pastore (1939-2024) – em outro campo ideológico, que não comungo, eu citaria Maria da Conceição Tavares (1930-2024) e Celso Furtado (1920-2004) – e agora o Delfim. Eles iniciaram o pensamento econômico brasileiro. Toda essa ideia de desenvolvimento pela substituição de importações, tudo disso vem muito do Delfim. Além da esfera pública e política, ele participou do debate acadêmico em todas as frentes. Lembro que durante meu mestrado eu ia comprar livros de economia na Livraria Cultura e o Humberto, vendedor que nos atendia, dizia: “Ih, o Delfim já levou tudo”. Ele comprava de caixa fechada. Era uma pessoa voraz, e estava sempre na fronteira do conhecimento. Uma pessoa muito aberta a ideias e ao debate. E apesar de suas visões e do que ele fez com o Brasil, sempre foi uma pessoa enormemente respeitada pelos economistas. Se não deu certo é preciso olhar inúmeros outros fatores. Porque ele sempre pensou o Brasil. Que era preciso ter produtividade no longo prazo, uma indústria forte. Isso hoje é visto como algo dado, mas naquela época não existia. Por isso ele foi um pilar entre os economistas e lançou muitas ideias. Uns concordam, outros discordam… no entanto, foi uma pessoa louvável por diversos motivos, inclusive por se manter atualizado. Eu era fã dele. Hoje se encerra um ciclo.”

ULISSES RUIZ DE GAMBOA, economista da Associação Comercial de São Paulo (ACSP). “A preocupação de Delfim Netto era o desenvolvimento e o crescimento econômico. Acho que isso aproximou ele dos governos petistas. Era também um grande intelectual. muito espirituoso, culto. Tinha uma biblioteca fantástica. E foi um dos grandes professores da Universidade de São Paulo, um dos responsáveis por colocar a USP como uma das principais universidades latino-americanas. E não dá para dizer que ele foi o responsável pela hiperinflação [dos anos 1980-1990]. Tivemos pelo menos 40 anos de hiperinflação. Problemas de inflação temos pelo menos desde 1942. Era um problema não resolvido. Até o Plano Real, na verdade, se olharmos em perspectiva. O que ocorreu foi uma escolha de política econômica. Frente ao choque de petróleo, houve um embate entre ele e o (ex-ministro) Mário Henrique Simonsen. Ou segurava a inflação, no que chamamos de política contracionista, e provocava uma recessão ainda maior, ou deixava a inflação crescer. Prevaleceu o ponto de vista do Delfim.”

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