Breno Medeiros, ministro do TST, sobre IA: “Há de se implementar políticas públicas de requalificação no país”

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Ministro do TST fala sobre a IA e adverte para necessidade de requalificar população
Crédito: Divulgação TST
Por Bruna Lencioni e Vitor Nuzzi

O ministro Breno Medeiros, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), disse, em entrevista à agência DC News, que a inteligência artificial é um desafio para a sociedade, não só porque tende a substituir empregos que são, por definição, repetitivos, mas também por exigir qualificação. “Há, decerto, de se implementar políticas públicas a fim de garantir que a requalificação seja amplamente acessível, em um país de visíveis desigualdades como o nosso Brasil. O investimento em educação e inclusão são passos essenciais para se enfrentar os novos desafios sociais”, afirmou.

Medeiros também fala sobre CLT, a pejotização, o teletrabalho, a Reforma Trabalhista de 2017 e das relações de trabalho entre motoristas e motociclistas com as companhias de aplicativos, e também elenca os principais processos que tramitam no TST. Entre eles estão: a morte de trabalhadores, adoecimento, humilhações e degradação do ambiente de trabalho.

Até maio deste ano, o acervo do TST tinha quase 600 mil processos, 5,7% a mais em um ano, e mais de 400 mil ações pendentes de julgamento. Confira a entrevista.

DC News – A Reforma Trabalhista (Lei 13.467) de 2017 ainda causa controvérsia. Alguns pontos estão sendo questionados inclusive no Supremo Tribunal Federal. Na sua avaliação, a lei conseguiu proporcionar a esperada segurança jurídica entre as partes?

Breno Medeiros – Estamos trilhando um caminho de desafios e novidades, o que, naturalmente, faz gerar incertezas e insegurança e, sem dúvida, há questionamentos após a assim chamada ‘Reforma Trabalhista’, o que é natural em uma lei que modificou mais de 200 dispositivos. No entanto, as questões apresentadas, perante o STF, são pontuais e algumas já foram resolvidas, como a que gira em torno dos honorários advocatícios, onde o Supremo entendeu inconstitucional o desconto dos honorários da parte contrária (empregador) de quem ganhou uma parte da ação (empregado), sendo este beneficiário da Justiça gratuita. Mas não podemos perder de vista que a reforma trouxe, sim, segurança jurídica na medida em que esclarece pontos, antes interpretativos (por exemplo: prevalência dos acordos coletivos de trabalho sobre as convenções coletivas, matéria que era alvo de interpretações díspares no âmbito dos tribunais do trabalho), amplia direitos quando dá maior alcance para a figura do grupo econômico para fins de responsabilização e, moderniza a legislação inserindo na CLT o conceito e a regulamentação do teletrabalho como modalidade de prestação de serviços.

DCN – Ainda em relação a esse tema, ministros do STF já criticaram posicionamentos do TST, inclusive na jurisprudência. O sr. acredita que essa relação está pacificada?

Medeiros – A Constituição Federal cidadã de 1988 imprimiu um viés constitucional aos direitos sociais, entre eles diversos direitos trabalhistas, o que faz com que o Supremo Tribunal Federal, como guardião constitucional, seja a instância final para a solução de diversos casos e fixação de jurisprudência. Por outro lado, o STF, como um tribunal de última instância, apresenta em seus julgados teses vinculantes genéricas que, sem dúvida, devem ser seguidas pela magistratura nacional. Assim, por vezes, o magistrado, e aqui se insere o TST, interpretando a decisão do STF, confere decisão ao caso em concreto que entende estar em consonância com a mesma, o que comporta as chamadas “Reclamações Constitucionais”, que podem ser julgadas procedentes, quando o STF entende que a decisão não segue sua jurisprudência ou improcedentes, quando de acordo com o fixado. Essa sistemática é legítima e traz o real balizamento nos casos concretos das decisões abstratas tomadas pelo STF nos temas de repercussão geral. Como são muitas as situações reais enfrentadas nas relações de trabalho, é natural um grande número de reclamações constitucionais em matéria trabalhista no STF, mas isso não quer dizer que haja um desrespeito pelas decisões da mais alta Corte deste país, pelo contrário, apenas se busca delimitar o alcance da decisão do STF no tema. Creio, assim, que com o tempo, eventuais críticas serão coisa do passado.

DCNA CLT, que completou 80 anos em 2023, segue válida?

Medeiros – A redação original da CLT remonta a 1943, mas as constantes alterações legislativas promovidas de lá para cá, bem como a sedimentação da jurisprudência em súmulas e orientações jurisprudenciais ao longo desse tempo pelo Tribunal Superior do Trabalho, contribuíram em muito para o aprimoramento das relações de trabalho. Nesse interregno, atribuo à Reforma Trabalhista, nos termos da Lei 13.467/2017, a inserção dos avanços mais significativos, pois a CLT necessitava de ajustes e atualizações para acompanhar as transformações econômicas e sociais ocorridas, como a regulamentação do teletrabalho, que, frente às exigências do mundo contemporâneo, assumiu e incorporou essa nova realidade organizacional, primando pela saúde e bem-estar do trabalhador e incentivando o autogerenciamento. O mais importante progresso na seara jus trabalhista foi a recente disposição legal (Lei 13.467), aliada, é claro, à maturidade de nosso enredo e realidade social, reformulando e ressignificando a legislação.

DCN Que avaliações são possíveis de se fazer sobre os avanços nas relações de trabalho nos últimos 50 anos?

Medeiros – As relações de trabalho na atualidade passam por um movimento significativo, movimento esse próprio do mais ‘social’ dos direitos – o Direito Trabalhista – que deve responder aos novos anseios e efervescências da coletividade.

Nos últimos 50 anos experimentamos a globalização, a digitalização, o nascimento da gig economy (trabalho temporário e freelance) – tudo desassossegando e impulsionando o mercado produtivo.

Hoje nos deparamos com os desafios da robótica e da inteligência artificial – marcos da Revolução 4.0 – e experimentamos o trabalho remoto, a flexibilização, a terceirização, o dinamismo das interações empregado/empregador. Há muito pouco tempo não poderíamos sequer imaginar a realidade socioprodutiva que hoje bate à nossa porta.

DCN – Que avanços ainda são desafiadores?

Medeiros – Creio que as inovações tecnológicas produzidas pela Quarta Revolução Industrial trouxeram consigo não apenas desenvolvimento, mas também importantes desafios. Destaco aqui a questão do trabalho sob demanda em aplicativos, conhecida como ‘Uberização’ do trabalho, que figura hoje como uma das mais importantes plataformas de prestação de serviços. Muitos são os debates em torno da regulamentação dessa atividade, estando o mote das discussões voltado para a natureza da relação de trabalho entre o motorista/entregador e a plataforma. Esta é uma questão crucial para a continuidade do modelo de negócios no Brasil, uma vez que a caracterização do vínculo de emprego implicaria a inviabilidade do negócio, conforme cálculos disponíveis no Senado Federal. Tenho reiteradamente comentado a respeito em minhas palestras, mostrando os perigos de um enquadramento celetista para essas novas formas de trabalho sem que se pondere todos os efeitos econômicos de um regulamento dessa natureza, partindo-se da premissa de que o Direito acompanha as transformações sociais e não o contrário.

DCN – O governo apresentou uma proposta de regulamentação do trabalho por aplicativos, mas o projeto tem dificuldade para avançar no Congresso. Na Justiça do Trabalho, já tivemos decisões favoráveis e contrárias ao vínculo empregatício. Qual sua opinião a respeito?

Medeiros – A 5ª Turma do TST, a qual presido, já teve oportunidade, mais de uma vez, de decidir que não há vínculo empregatício, nos moldes da CLT, entre motorista e o aplicativo, isso dada a autonomia daquele na prestação de seus serviços. Mas, sem dúvida, há a necessidade se estabelecer, via legislação, direitos mínimos a este trabalhador, buscando a saúde e segurança, previdência e renda compatível, observadas as características peculiares da profissão. Todavia, não é tarefa fácil, pois os países que se propuseram a regulamentar enfrentaram diversos percalços e ainda não consolidaram suas posições, tamanha a complexidade do problema. Talvez, por isso, a dificuldade enfrentada pelo parlamento nacional, onde o projeto de lei apresentado sequer tem apoio dos próprios motoristas de aplicativo, segundo pesquisas divulgadas na imprensa nacional.

DCN Até maio, o acervo do TST tinha quase 600 mil processos, 5,7% a mais em um ano, e mais de 400 mil ações pendentes de julgamento. Por que a Justiça do Trabalho recebe tantas reclamações?

Medeiros – É sabido que a Justiça do Trabalho está abarrotada de processos e muitos institutos processuais foram criados para agilizar o processamento de ações nesta seara, a exemplo do instituto da transcendência, um recurso que filtra as matérias que efetivamente ensejam exame colegiado, bem como do Incidente de Recurso de Revista Repetitivo – que debate matérias recorrentes de forma aprofundada para servir de paradigma. Esses institutos vieram para otimizar o trabalho jurisdicional.

E mais. Partindo-se da premissa de que o maior grau de litigiosidade do Poder Judiciário brasileiro decorre do Direito do Trabalho, podemos destacar algumas particularidades que envolvem essa proposição. Primeiramente, temos que o Direito do Trabalho, em sua gênese, objetiva a proteção do hipossuficiente – o empregado – em face do poder econômico do empregador, dada a notória desigualdade das forças que atuam nessa relação.

Por ser um direito protetivo, o número de litígios acaba sendo naturalmente maior em relação a outros ramos do Direito, até porque as matérias costumam ser plúrimas, envolvendo várias garantias distintas entre si numa mesma ação, ao contrário do que se vê em outras searas. Importante, noutro giro, destacar que não é apenas a Justiça do Trabalho que se ressente do número de demandas para julgamento; esse é um fenômeno que acompanha o Poder Judiciário como um todo. Não representa, a meu ver, um ‘problema’, mas isto sim, e, especialmente, a maior maturidade social, que, em meio ao nosso Estado Democrático de Direito, a todos assegura a discussão digna e equânime de créditos e questões. Exige-se, por derivante, a maior e constante capacitação dos julgadores.

DCN – Recentemente, o TST fez acordos com empresas ou instituições para reduzir o número de processos. Essa iniciativa tem dado resultado?

Medeiros – É cediço que o Tribunal Superior do Trabalho tem buscado parcerias estratégicas com empresas para reduzir a quantidade de processos que tramitam na Corte. Recentemente, o TST firmou acordos de cooperação técnica com algumas organizações com o fito de otimizar a eficiência do sistema judiciário e promover uma jurisprudência estável, garantindo, em última análise, a previsibilidade e confiança nas relações trabalhistas. Cita-se, como exemplo, acordos firmados com a Petrobras, Correios, Caixa Econômica Federal. O mote maior é o decréscimo das ações judiciais e a priorização do julgamento de temas repetitivos. Ainda é cedo para se estabelecer, em números, o resultado dessa iniciativa, mas, à margem de dúvidas, será positivo, útil e proveitoso para as partes e para o próprio Poder Judiciário.

DCN – A pejotização do trabalho é um problema na sua opinião?

Medeiros – Conforme cediço, a assim chamada pejotização do trabalho é uma prática em que profissionais estabelecem uma pessoa jurídica (PJ) para prestar serviços a uma empresa, estratégia essa que visa reduzir encargos trabalhistas e impostos. Revela-se como a solução para situações específicas, em que o prestador dos serviços detém um nível de qualificação e autonomia acima da média. É preciso compreender que nem todos os profissionais se submetem a um contrato de trabalho em que suas potencialidades sejam absorvidas pelo empregador; nessas hipóteses, a pejotização é um modelo de trabalho legítimo, que, no entendimento do STF, se insere no permissivo constitucional de formas alternativas da relação de emprego.

Em meu livro eu classifico essas novas formas de trabalho na vertente 5.0, mais conectadas com as transformações produzidas pelo frenético desenvolvimento tecnológico que estamos assistindo, cuja força de trabalho vem sendo constituída por representantes da Geração Z, caracterizada por indivíduos que experimentaram uma imersão digital aguda e possuem habilidades multidisciplinares. Longe de ser um problema, a pejotização, se bem aparelhada e legitimamente instituída, exsurge como um patamar válido de regramento laboral, abraçando importante segmento social, que, à margem de dúvidas, muito contribui para o bom desenvolvimento econômico-social.

DCN – O senhor é ministro em um momento em que as relações de trabalho estão se alterando – o trabalho híbrido é um exemplo. E estamos vivenciando a inteligência artificial entrando forte em todo ecossistema do trabalho. Como o senhor avalia isso?

Medeiros – O teletrabalho é uma modalidade de prestação de serviços então inexistente em 1943, sendo contemplada apenas na Reforma Trabalhista de 2017. Introduziu um olhar visionário e atingiu o seu auge durante a pandemia da Covid-19, a partir de março de 2020, quando fomos todos surpreendidos ante a necessidade premente de isolamento social.

Para aquele momento, tais novas modalidades e arquétipos laborais representaram um ás na manga da economia, quando mantidos ofícios e domínios tanto pelo teletrabalho, como pelo trabalho sob demanda em aplicativos. No entanto, ao fim dessa experiência, muitos CEOs das gigantes da economia, como Google, Netflix, Spotfy, IBM, Microsoft etc chegaram à conclusão de que o modelo de trabalho não foi tão benéfico assim quando analisado em termos de produtividade e qualidade de vida.

Na verdade, o modelo híbrido acabou sendo o mais indicado, por possibilitar uma melhor gestão da equipe, uma conexão mais forte com os colegas e uma flexibilização da jornada de trabalho. De qualquer forma, o teletrabalho não foi feito para qualquer perfil de trabalhador indiscriminadamente, havendo que se identificar aqueles capazes de se autogerir.

DCN – Sobre a IA?

Medeiros – Quanto à inteligência artificial, eis um novo desafio! A IA tende a substituir empregos que são, por definição, repetitivos, previsíveis e que não demandam criatividade ou pensamento crítico – tarefas mecânicas e rotineiras – (caixas de banco, caixas de supermercados, frentistas de postos de gasolina – realidade esta, inclusive, já presente no nosso dia a dia), casos em que a função laboral transita para a obsolescência. Com efeito. Estudos variados apontam para uma substituição significativa do elemento humano por máquinas inteligentes, ao passo em que, igualmente, indicam a criação de novos empregos, empregos esses que demandam habilidades cognitivas complexas, de modo a encaixar o empregado em atividades de análise de dados, ética da IA e/ou suporte técnico, exemplificativamente. A mão de obra mundial há de se especializar.

DCN – A IA claramente vai alterar a realidade dos postos de trabalho e, com essa alteração, chega a necessidade de qualificação. Como o senhor avalia isso?

Medeiros – Sem dúvida que teremos a deslocação de postos de trabalho e, por derivante, a exigência de requalificação profissional. Exige-se a necessidade de atualização constante – cursos, plataformas on-line, e-learning – que, longe de representar um prejuízo, possibilita, isto sim, um empregado mais apto, capaz e atento ao mercado de trabalho, uma vez que autoriza que os trabalhadores aprendam no próprio ritmo e de qualquer lugar.

Há, decerto, de se implementar políticas públicas a fim de garantir que a requalificação seja amplamente acessível, num País de visíveis desigualdades como o nosso Brasil. O investimento em educação e inclusão são passos essenciais para se enfrentar os novos desafios sociais.

DCN – Com a modernização do mundo e as alterações nas relações de trabalho, pode-se dizer também que há uma mudança também nos tipos de processos? A que se refere a maior parte das ações trabalhistas que hoje estão em andamento nas instâncias superiores como o TST?

Medeiros – A modernização e as mudanças nas relações de trabalho têm impactado diretamente na demanda processual que aporta neste órgão trabalhista superior, por isso a adaptação e a busca por soluções justas e eficientes são desafios constantes no nosso dia a dia. No que toca à temática mais abordada, as indenizações civis seguem listadas – acidentes, morte de trabalhadores, adoecimento, humilhações e degradação do meio ambiente de trabalho. Pedidos de danos morais e materiais são frequentes. Outrossim, o pleito de honorários advocatícios, tanto quanto de assistência judiciária gratuita, estatisticamente, está no topo da lista de assuntos mais recorrentes, especialmente após a Reforma Trabalhista e as alterações legislativas respectivas. Cito, também, reclamatórias que abordam o adicional de insalubridade, aqui pontuando a importância de conscientização do empregador na busca da neutralização dos agentes reconhecidamente insalubres. Enfim, fato é que a jurisprudência e a legislação continuam a evoluir, acompanhando as transformações sociais e tecnológicas.

DCN – Humilhações e degradação do ambiente de trabalho ainda são problemas latentes, portanto.

Medeiros – Sim. Temos ainda que lidar com variados comportamentos que reduzem a autoestima do colaborador no seu ambiente de trabalho, tais quais insultos, ridicularização ou exposição pública de erros, dentre tantos outros. Há de se pontuar, igualmente, ocorrências que afetam a qualidade de vida no trabalho, a exemplo da sobrecarga laboral, ou condições inadequadas para a prestação dos serviços demandados. Pontilha-se, por emblemático, o assédio moral, que, a par de promover a degradação do meio ambiente do trabalho, afeta a esfera íntima e o ânimo do trabalhador, podendo levar, inclusive, à exteriorização de morbidades psicológicas e/ou psiquiátricas. Relembro que é responsabilidade do empregador assegurar um espaço hígido e saudável para o desenvolvimento das atividades laborais.

DCN – Ainda temos muito o que aprender sobre relações de trabalho? Os empregadores, eu digo. É algo cultural?

Medeiros – O Direito do Trabalho, assim como todas as relações sociais, evolui com o tempo. Cabe aos empregadores como sujeitos do capital perceberem que o mercado passou a se atentar para as relações empresariais com seus steakeholders, dentre estes, seus empregados. A nova geração não quer só saber se o produto é saudável ou de qualidade, mas se na cadeia de produção foram observados os princípios laborais, que nada mais são que uma tradução do princípio da dignidade da pessoa humana. Todos aprendemos diariamente e hoje temos a Agenda 2030 da ONU como norte, sendo que os direitos sociais se encontram entre os três mais importantes, ao lado do meio ambiente e da governança. E tenho visto, com satisfação, que a maioria do empresariado está atenta a este novo ambiente de direitos e negócios.

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