A economista Lucy Sousa entrou no mercado financeiro em 1980. Aos 23 anos, ela acabara de concluir o curso de Economia na Universidade de São Paulo (USP) e havia sido contratada para atuar como trainee no Unibanco – atual Itaú Unibanco. Era a única mulher do departamento. No time de analistas, a situação era praticamente a mesma. À época, a instituição tinha vinte especialistas na área. “Eram 18 homens e apenas duas mulheres”, disse Lucy, em entrevista à DC NEWS. Ou seja, apenas 10% eram mulheres. Quase 45 anos depois, o cenário é praticamente o mesmo. De acordo com os dados da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais do Brasil (Apimec Brasil), da qual Lucy é presidente do Conselho, hoje as mulheres representam apenas 15% do total de quase 2,6 mil analistas certificados pela instituição no Brasil (390).
Para a economista de 67 anos, esses números refletem o machismo estrutural que ainda impera no Brasil e que leva à falta de oportunidades para mulheres no mercado financeiro – como em diversos outros campos. “Esse cenário ainda está longe de ser realmente transformado”, afirmou Lucy, que é doutora em Economia pela Universidade de Campinas (Unicamp) e também graduada em ciências sociais e em filosofia. Na entrevista a seguir, a presidente do Conselho da Apimec fala da atuação feminina no mercado, de situações de machismo das quais ela própria foi vítima em sua carreira, dos erros mais comuns cometidos por investidores e analistas. E admite: “Eu também já cometi erros como investidora”.
DC NEWS – O porcentual de mulheres atuando no Brasil como analistas no mercado financeiro ainda é muito baixo (15% do total de quase 2,6 mil analistas certificados pela Apimec no país). Na sua avaliação, a quê se deve esse cenário?
Lucy Sousa – São várias razões. Penso que a principal é a falta de incentivo para que mulheres atuem num setor tão dominado pelos homens. É um segmento muito fechado para nós, mulheres. Existe um olhar machista já por parte do empregador ou do responsável por fazer a seleção para as vagas. Quase sempre, eles preferem contratar homens a mulheres. Ou seja, já começamos a disputa por uma vaga no mercado de trabalho em desvantagem. Por isso, até hoje a situação não é muito diferente de quando comecei minha carreira, há mais de 40 anos. A gente contava nos dedos a quantidade de mulheres no mercado financeiro. E hoje é a mesma coisa.
DCN – E por que isso acontece?
Lucy – Mais uma vez, por vários motivos. Penso que o mais forte é a ideia equivocada que os homens têm de que a mulher não vai se dedicar ao trabalho tanto quanto eles. E isso acontece muito em virtude da maternidade. Na cabeça machista, a mulher precisa empenhar mais tempo e esforços para cuidar dos filhos, quando, na verdade, essa deveria ser uma preocupação tanto da mãe quanto do pai.
DCN – A senhora já se sentiu atingida por esse machismo estrutural?
Lucy – Claro. Acho muito difícil encontrar uma mulher brasileira que não tenha passado por isso. Ainda mais no mercado financeiro.
DCN – Pode contar uma situação em que a senhora tenha passado por algo assim?
Lucy – Foram várias situações, por toda a minha carreira. Quando eu era mais jovem, por exemplo, acontecia bastante de eu telefonar para marcar uma reunião com o executivo de alguma empresa e a pessoa perguntar se eu era a secretária de um outro executivo que participaria do encontro. Pelo simples fato de eu ser uma mulher, deduziam que eu não poderia ser a pessoa que teria aquela reunião. Sem falar nas gracinhas, piadinhas machistas, que tive de ouvir durante toda a minha carreira, em reuniões nas quais eu era a única mulher no meio de vários homens. Mas nunca me deixei abalar e tentava me impor.
DCN – A senhora também tem formação em ciências sociais e em filosofia. Que relação essas áreas do conhecimento têm com a economia?
Lucy – Como economista, eu sentia que precisava complementar meus conhecimentos com questões mais humanas. Comecei minha carreira durante a Ditadura Militar. Era impossível não perceber o impacto social e humano do regime na sociedade e como isso afetava também a economia do país e das pessoas. Estudar ciências sociais e filosofia foi fundamental para a minha carreira. Especialmente, na minha atuação como analista de investimentos.
DCN – Como assim?
Lucy – O analista de investimentos não pode entender apenas de números, de economia, do mercado financeiro. Não pode apenas saber que tal empresa tem potencial de valorização ou de queda na Bolsa. É preciso, também, entender o perfil do investidor, como cada pessoa se comporta no mercado. Se o investidor é mais arrojado ou conservador. É preciso ter sensibilidade social para saber como lidar com cada tipo de investidor e até mesmo para fazer análises corretas e não cometer grandes erros.
DCN – E que tipo de erro os analistas de investimentos mais cometem?
Lucy – Acredito que há dois erros mais comuns. O primeiro é se deixar levar por suas opiniões pessoais – e voltamos à questão da filosofia e das ciências humanas. Isso acontece quando o analista deixa que sua visão técnica seja afetada por suas preferências políticas ou corporativas. O analista pode resistir a aceitar um cenário econômico simplesmente por gostar de determinada empresa, de um político ou de um empresário. O analista não pode idolatrar ninguém. O foco tem de ser sempre a questão técnica. Eu costumo dizer aos meus alunos e aos analistas mais jovens que eles podem ter suas opiniões políticas e preferências pessoais, mas não podem deixar isso interferir na sua análise.
DCN – E qual o outro erro?
Lucy – Focar apenas no próprio resultado. Alguns analistas só pensam em bater a meta estabelecida pela corretora na qual trabalha. Daí, ele fala para seus clientes realizarem determinada operação, pensando apenas em bater a própria meta.
DCN – Em relação a isso, há algum tipo de punição que pode ser aplicada a analistas que tenham a conduta irregular comprovada?
Lucy – Sim. Se ficar comprovado que o analista agiu de má fé, há uma série de punições previstas no Código de Processos da Apimec, que podem ir de uma advertência até a suspensão definitiva do credenciamento desse profissional.
DCN – Como o investidor pode se proteger desse tipo de situação?
Lucy – Com conhecimento. É muito importante que o investidor, principalmente o investidor de varejo, a pessoa física, procure conhecer um pouco do mercado financeiro, da conjuntura econômica do país. Só assim, ele terá ferramentas para evitar esse tipo de coisa.
DCN – E do lado do investidor? Quais são os erros mais comuns cometidos?
Lucy – No mercado financeiro, existe o famoso efeito manada. Ou seja, tem muita gente comprando ou vendendo uma determinada ação, e o investidor de varejo entra na onda, sem ter a menor noção das razões daquele movimento. O indivíduo não tem conhecimento técnico, não entende os fundamentos da empresa, mas entra na operação apenas porque tem muita gente fazendo o mesmo. Esse é um erro clássico. Outro é não saber a hora de sair de uma operação. A ação está subindo, mas o cara não vende, achando que vai valorizar para sempre. E o contrário também acontece bastante. A ação está caindo e o investidor não vende, porque acredita que, em algum momento, vai voltar subir. Às vezes, isso não acontece e o prejuízo só aumenta. Dou um conselho aos investidores: saiba a hora de sair da operação, seja ganhando ou perdendo.
DCN – Como investidora, a senhora já cometeu algum desses erros?
Lucy – Claro. Mas eu não sou o melhor exemplo de investidora. Não tenho muita paciência, virtude fundamental para um bom investidor.
DCN – Pode contar uma situação em que a senhora se deu mal como investidora?
Lucy – A pior de todas aconteceu há muito tempo, uns 15 ou 20 anos. Eu tinha ações de uma empresa, num montante que daria para comprar um apartamento. Essas ações começaram a cair, mas eu não vendi, acreditando que voltariam a subir. O papel continuou caindo, e eu não vendia. Resumindo, desvalorizou tanto, que aquele dinheiro que era suficiente para comprar um imóvel só deu para dar entrada num apartamento. Nunca mais cometi esse tipo de erro.