Relatório divulgado no início de 1994 mostrava que, no ano anterior, apenas a Moldávia, país do Leste Europeu com 2,7 milhões de habitantes, havia registrado inflação acima da apurada no Brasil, que andava na casa dos 2.500% anuais, segundo o IGP-M. Poucos meses depois, em junho de 1994, o mesmo indicador mostrava inflação acumulada superior a 4.850% em 12 meses. Para quem nasceu naquela época – ou seja, tem 30 anos agora –, é impossível imaginar um país no qual os preços eram remarcados diariamente. A geração do tetracampeonato mundial brasileiro, da morte de Ayrton Senna e do caso Escola Base foi também a geração do Plano Real, a primeira a viver com inflação civilizada.
Quando decidiram entrevistar uma série de economistas, das mais variadas escolas de pensamento, o (atualmente) professor Ciro Biderman, o consultor Luis Felipe Cozac e o empresário José Marcio Rego testemunhavam o nascimento do Plano Real, o sétimo programa de estabilização em oito anos, com a criação da décima moeda brasileira – que se tornaria a mais longeva da história. Inspiraram-se no livro Conversations with Economists, do professor holandês Arjo Klamer. O insight havia surgido em um restaurante japonês na Zona Oeste de São Paulo, após conversa entre dois deles e algumas doses de saquê: por que não uma versão brasileira? Ideia comprada com entusiasmo pelo professor Luiz Carlos Bresser-Pereira, que ajudou a viabilizar os contatos, seguido de um período extenso de preparação para as entrevistas.
Assim, surgiu Conversas com Economistas Brasileiros, lançado em 1996 e que acaba de ganhar nova versão (Editora 34), no marco dos 30 anos do Real, embora o livro não tenha sido pensado com esse objetivo. Todas as entrevistas foram realizadas em 1995, de abril a novembro, com um time absolutamente diversificado de pensadores. Os prefácios (à primeira e segunda edições) foram escritos pelo ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, que esteve presente no relançamento, em junho, em uma livraria de São Paulo, ao lado de Persio Arida, ex-presidente do Banco Central (BC) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Os autores puseram à prova o Fla-Flu nacional dos economistas em relação a três temas básicos: papel do Estado, inflação e desenvolvimento econômico. Basta ver os nomes dos entrevistados, entre acadêmicos, ex-ministros e ex-presidentes do BC: Affonso Celso Pastore, André Lara Resende, Celso Furtado, Delfim Netto, Edmar Bacha, Eduardo Giannetti, Bresser-Pereira, Luiz Gonzaga Belluzo, Maria da Conceição Tavares, Mário Henrique Simonsen, Paulo Nogueira Batista Jr., Persio Arida e Roberto Campos.
Estavam ali dos chamados desenvolvimentistas até os liberais, ainda que essas denominações, no Brasil, mostrem-se flexíveis. Luis Cozac, um dos autores, conta que três fatores principais nortearam a escolha dos entrevistados: ligação com um centro universitário específico, o aspecto geracional e a relevância da atividade intelectual. Professor e ex-presidente do BC, Pastore resistiu. “Segundo ele, o Brasil nunca produziu teoria econômica. Apenas tinha bons analistas”, disse Cozac. Na entrevista, Pastore é taxativo: “Não existe pensamento econômico no Brasil”.
CONTRAPONTO – As mais de 500 páginas do livro trazem o esperado contraponto de ideias, com ironias, referências ao “deus mercado”, abordagens metodológicas e comentários políticos respeitosos, bem diferente dos dias atuais.
Sobre desenvolvimento econômico:
“Primeiro, ninguém sabe direito como é que faz”. (Delfim)
“A única explicação inteligível de desenvolvimento econômico é essa, crescimento do produto real per capita”. (Simonsen)
“Desenvolvimento econômico só tem sentido dentro de uma visão mais ampla, de desenvolvimento humano”. (Bacha)
Sobre Estado:
“O governo é que não tem capacidade de planejar a longo prazo porque sofre de pressões políticas e da doença da descontinuidade”. (Roberto Campos)
“A verdade é a seguinte: o Estado é a mais importante instituição criada peo homem, e não se pode dispensá-lo. Na Europa do Leste viu-se o que acontece quando o Estado se degrada”. (Celso Furtado)
“As características do nosso processo inflacionário provocaram um protagonismo dos economistas”, afirmou Cozac, que, de certa forma, foi uma testemunha ocular da história: em sua primeira semana de aula da graduação (Economia, USP), surgiu o Plano Cruzado; no Mestrado, veio o Plano Collor; na defesa do Mestrado, o Real. Até então, ele compara, o Brasil era não apenas o país dos 150 milhões de técnicos de futebol, mas também dos economistas – todo mundo tinha a solução perfeita para a seleção e para a alta de preços.
MOEDAS – Paradoxalmente, quem estava à frente do único plano bem sucedido não era economista. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso era o ministro da Fazenda quando o plano foi lançado, no governo Itamar Franco – vice de Fernando Collor, que sofreu impeachment em 1992. FHC saiu para candidatar-se a Presidência e foi substituído por Rubens Ricupero e, em seguida, Ciro Gomes. Eleito, escolheu Pedro Malan para comandar a economia. E ele permaneceu durante os dois mandatos de FHC, de janeiro de 1995 a dezembro de 2002.
Assim, Cozac passou por várias moedas entre cruzeiros e cruzados, novos ou não. Seu filho, de 26 anos, por apenas uma. A ponto de perguntar um dia, curioso, do que se tratava o tal “dragão da inflação” de que ouvira falar. Atualmente, metade da população brasileira – mais de 102 milhões de pessoas – tem até 35 anos.
O professor e economista só lamenta, hoje, que ainda existam riscos à estabilidade. “Há um péssimo uso da experiência. Mostra que os aprendizados não se consolidaram. O mais grave é esquecer o valor que tem a democracia.” Cozac cita uma frase gravada no Estádio Nacional de Santiago, que virou cárcere de presos políticos na ditadura instalada em 1973, no Chile: “Um povo sem memória é um povo sem futuro”.
Para ele, o momento atual é de debate “entre surdos”, ou tribos. O país dos 200 milhões de influencers, define. “Entre os que falam no deus mercado e fazem ataques ao rentismo e os que dizem que o Estado não tem de falar nada. Entre esses dois extremos improdutivos, a verdade está no meio do caminho”, disse. O Estado precisa de eficiência e a a iniciativa privada, de regras estáveis. O fato é que, 30 anos depois, o Brasil fechou o ano passado com inflação de 4,62%. A Moldávia, 4,2%.
Planos Econômicos no Brasil